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A Myriam Zaluar entregou uns panfletos e acabou em tribunal

Quantas pessoas são necessárias para compor uma "manifestação"?

Meia dúzia de pessoas organizaram-se para entregar uns panfletos político-informativos e acabaram a ser tratadas como rebeldes. A Myriam Zaluar, uma dessas pessoas, acabou identificada, não por liderar o que quer que seja, mas apenas porque teve o azar do seu bilhete de identidade estar por cima dos restantes. A ideia do mini-protesto, composto pela própria e por mais três pessoas, era sensibilizar para a vergonha dos falsos números oficiais do desemprego (17,7 por cento), mas como a Myriam não fez o pré-aviso de 48 horas que se exige às manifestações de milhares de pessoas, acabou acusada de “desobediência qualificada”. Encontrei-a ontem à tarde, no Largo Camões, em Lisboa.

VICE: Achas que todo este processo foi político ou estavas, simplesmente, no lugar errado, à hora errada?
Myriam: Olha, já pensei várias coisas a esse respeito. Acho que tem um bocadinho dos dois. Acho que não estava dirigido especificamente à minha pessoa porque, de facto, seria muita coincidência e eu não sou assim tão importante. Mas acho que é uma clara tentativa de intimidação dos movimentos, das pessoas, etc. O meu processo não é o único, já houve uma série de outros entretanto. Acho que se inscreve numa tentativa mais ou menos desajeitada de intimidar as pessoas em geral. E sim, nesse sentido acho que é um processo político. Mas que outras tentativas de intimidação houve?
Olha, posso falar-te do caso da Paula Montez, que é uma activista com alguns anos disto. Costuma estar nas manifestações a fotografar, não faz mal a uma mosca, e foi, supostamente, identificada… Por atirar pedras.
Ninguém acredita nisso. E a própria forma como foi notificada é kafkiana. Posso-te falar do João Falcão Machado, curiosamente um jornalista. É engraçado como os jornalistas são particularmente visados nestes casos. Não será, talvez, por acaso. O João Falcão Machado foi também constituído arguido por ter organizado uma manifestação e, lamentavelmente, deixou-se levar por aquele turbilhão de coisas, no qual eu também poderia ter ido, porque eles tentam intimidar-nos para que, a troco do arquivamento do processo, paguemos um determinado montante a uma instituição de solidariedade social. Ele com o cansaço, e com uma série de outros problemas, acabou por pagar. Propuseram-te o mesmo?
Propuseram-me pagar determinado montante a uma instituição de solidariedade à minha escolha. O valor do montante é completamente aleatório. Por exemplo, no caso do João foram 400 euros que ele pagou aos bombeiros, se não me engano. Mas é absolutamente vergonhoso que se consiga levar uma pessoa que está desempregada, que tem uma idade que já não lhe permite grandes esperanças no futuro, a ter de ir às suas poupanças para dar 400 euros que fazem falta para viver e para comer. Quem mais foi intimidado?
Na sequência da recente greve de 14 de Novembro, no episódio das pedras, houve uma série de pessoas que foram perseguidas, inclusivamente o próprio Que se lixe a troika. Nas duas conferências de imprensa anunciadas pelo Que se lixe a troika, a polícia apareceu e identificou. Tiveste o caso da Mariana Avelãs, que foi arquivado e bem, e agora vamos ver o que vai acontecer. No outro dia, uma semana antes da manifestação, estávamos a pintar um mural em Campolide e também apareceu a polícia. Foram lá perguntar o que é que se passava, pediram a identificação e foram-se embora. É toda uma série de pequenos episódios que vão demonstrando isto. Voltando a ti. Explica-me o episódio que levou à tua acusação.
O episódio explica-se muito rapidamente. No dia 1 de Março do ano passado houve um primeiro plenário de desempregados que veio dar nascimento ao Movimento Sem Emprego. Eu estive presente nesse plenário e queria-se fazer uma acção e queríamos dar visibilidade a uma coisa que estava a nascer. Na altura, o que tentámos fazer foi denunciar o embuste relativo às estatísticas sobre os desempregados. Hoje fala-se em 17 por cento, mas quais serão os números reais? Devem ser mais.
Ninguém sabe. Ninguém sabe quantos desempregados há em Portugal. Eu não faço parte das estatísticas e há muitas outras pessoas que também não. Inúmeras pessoas não fazem parte das estatísticas. Ou porque fazem biscates, ou porque trabalharam uma hora em determinado momento e já não contam como desempregados, ou porque o próprio IEFP faz regularmente limpezas nas listas e caso as pessoas não compareçam deixam de estar nas listas. Foi isso que vos mobilizou.
Sim. A ideia era levar muita gente a um centro de emprego e pôr as pessoas a inscreverem-se. Ainda que essa inscrição não seja real porque só te podes inscrever no centro de emprego da tua área de residência, pensámos fazer uma coisa mediática e que chamasse a atenção para denunciar a situação. Mas, na prática, o que se passou para seres identificada?
Na prática o que aconteceu é que no dia combinado, à hora combinada, não estava lá ninguém. Às três da tarde cheguei com outra rapariga e levava meia-dúzia de panfletos. Estavam lá mais duas pessoas que tinham estado no plenário e o resto eram jornalistas e polícias. Fomos imediatamente abordados pelo polícia que perguntou quem é que se responsabilizava por aquilo. Ainda perguntámos “por isto, o quê?” e ele respondeu que se tratava de “uma manifestação”, quando na verdade não era manifestação nenhuma, era uma acção simbólica. Entretanto, entregámos os nossos bilhetes de identidade e ele disse que bastava uma pessoa. Como o meu cartão era o primeiro, foi o meu nome que ficou. Quantos eram nesta altura?
Nesta altura éramos uns quatro. Depois apareceram mais uns quantos. Lembro-me muito bem disso. Depois o polícia disse que não podíamos entrar e eu perguntei: “Como é que é isto? Um cidadão não pode entrar num centro de emprego?”. E o polícia respondeu que podia, mas não daquela forma. Depois o homem foi lá dentro, acho que foi falar com a directora do centro de emprego, e nós ficámos cá fora a distribuir panfletos. Quando voltou disse que nós já podíamos entrar, mas sem panfletos. E um por um. Sem panfletos e um por um?
Sim. E eu disse que já não me interessava entrar. Para mim, a acção tinha acabado ali. Distribuímos mais uns panfletos e viemos embora. Foi só isso?
Foi só isso. O que veio depois deve ter sido uma surpresa para ti, não?
Exactamente. Uns dias mais tarde, sei lá, um mês talvez, tocaram à minha campainha a dizer que tinham notificações da polícia. Tinha de ir prestar declarações na qualidade de denunciada, mas a notificação não explicava de quê. Um amigo chegou a sugerir que fosse por causa da carta que escrevi ao Passos Coelho. Depois liguei para o número que estava indicado na carta e percebi o que se passava. O que achaste daquela onda de solidariedade que se verificou nas redes sociais que resultou nas cem pessoas à tua espera, à saída do julgamento (que até acabou por ser adiado)?
Tocou-me. Obviamente. Eu também lá estaria se em causa estivesse outra pessoa que não eu. Não era por mim que as pessoas lá estavam: estavam lá pelo que tinha acontecido. Fiquei comovida, pá. É sempre bom sentirmos que as pessoas estão ao nosso lado e nos apoiam quando estamos em dificuldades. Mas fazes uma leitura política do que se passou? Parece-te que as pessoas estão atentas, não direi à “asfixia democrática”, mas aos impedimentos democráticos?
Sim. As pessoas estão definitivamente a acordar. Repara, neste caso, quando se soube que eu ia a julgamento, tinha passado pouco tempo desde o 15 de Setembro e tudo estava fresco na cabeça das pessoas. Como foi feita essa mobilização?
Por duas ou três vezes as atenções estiveram, de certa forma, viradas para mim, por causa de algumas tomadas de posição públicas, as pessoas sabiam quem eu era. Presumo que isso também tenha ajudado. De repente, já não era só uma jornalista desempregada e desconhecida, era aquela que tinha escrito uma carta ao Passos Coelho, fui constituída arguida e fui uma das pessoas que subscreveu o apelo para aquela que veio a ser a maior manifestação dos últimos 40 anos. E que agora vai a julgamento por causa de uma distribuição de panfletos. Por outro lado, a coisa em si já era suficientemente escabrosa para que as pessoas se mobilizassem. Acabas por fazer uma leitura política de tudo isto, mas o teu advogado diz que casos como este são “vulgares na justiça portuguesa”.
O meu advogado disse isso? Sim.
É assim: como nós já falámos, isto tem-se vulgarizado. Como já vimos, houve o caso da Joana, do João, eu sei que acontece todas as semanas. Mas eu não diria “vulgares”. Eu acho é que se estão a vulgarizar. Como o meu advogado disse hoje na audiência, “este processo é lixo”. É lixo. O meu advogado sabe que isto é um abuso e que não se pode incomodar as pessoas por coisas destas. Ele tem plena noção de que é um processo político, não é outra coisa. Trata-se de uma tentativa de desmobilizar as pessoas. Na sessão de hoje ouviste a delegada do Ministério Público pedir a tua absolvição. Como foi o testemunho da polícia?
O polícia pôs os pés pelas mãos. Disse que tinha sido chamado para ir ali porque ia decorrer uma manifestação. Portanto, chegou ali e havia pouca gente. Referiu que as pessoas se estavam a portar da maneira mais ordeira possível, distribuíram panfletos e depois houve ali uma discussão semântica sobre o que é que é uma manifestação. Pois, esse é outro dos problemas. Explica-me isso.
Quanto às interpretações da lei não me quero esticar muito porque não sou da área. Mas pelo que entendi, há duas leis que estão em oposição. A primeira, anterior à Constituição da República que limita o direito à manifestação, e a outra que é a própria Constituição da República e que, segundo múltiplos juristas, revoga a anterior e que diz no artigo 45 que as pessoas são livres de se manifestar pacificamente. Hoje fiquei a saber, pela delegada do Ministério Público, que ainda que a lei anterior não tivesse sido revogada pela Constituição, as manifestações só devem ser comunicadas no espaço de 48 horas no caso de perturbarem a ordem pública, ou o trânsito, se houver a previsão de um número de manifestantes volumoso — o que não era o caso. Do ponto de vista jurídico há aqui uma indefinição. A tua sentença será no dia 5 e já sabes que irás ser absolvida. Ficaste, de alguma forma, constrangida?
Olha, vou-te dizer uma coisa: em todo este processo só houve um momento de constrangimento para mim. Foi no dia em que cantámos a “Grândola” na Assembleia. Eu, como já era arguida, pensei: “Epá, isto pode trazer-me problemas, que grande merda o julgamento não estar já despachado.” Se o julgamento tivesse já despachado podia ser constituída arguida de novo sem grande problema. Agora, ser arguida por cima de arguida não dava muito jeito e se calhar era chato. Pronto, foi o único momento em que senti algum constrangimento à minha intervenção e à minha acção política. De resto, não. E eu tenho um bocado mau feitio e quanto mais me calam, mais alto eu berro, quanto mais me tentam prender, mais eu esperneio. Fotografia por Nuno Barroso