Analisando os arquivos do FBI sobre o Wu-Tang Clan

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Analisando os arquivos do FBI sobre o Wu-Tang Clan

A agência investigativa norte-americana entendeu que expoentes do rap podiam ter a ver com o aumento da criminalidade em Nova York — e por isso classificou o grupo como "uma grande organização criminosa".

Esta matéria foi originalmente publicada na edição impressa de outubro da VICE US.

O FBI sempre teve um tesão pelo gangsta rap, especialmente pelas forças criativas por trás dos sucessos mais icônicos e provocadores do gênero.

Em 1989, por exemplo, o diretor-assistente de assuntos públicos do bureau mandou uma carta para Brian Turner, presidente da Priority Records, a gravadora do NWA, contestando a letra da hoje infame música de protesto do grupo "Fuck tha Police".

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"Os oficiais da lei dedicam suas vidas a proteger nossos cidadãos, e discos como o do NWA. são desencorajadores e degradantes para esses oficiais corajosos e dedicados", escreveu Milt Ahlerich do FBI. "A música tem um papel significativo na sociedade, e eu queria que vocês tivessem consciência da posição do FBI em relação com essa música e sua mensagem. Acredito que minhas visões reflitam a opinião de toda a comunidade dos agentes da lei."

Mais de 20 anos depois, o FBI foi um passo além e ligou diretamente o rap e a "cultura gângster rap" a um aumento de afiliações a gangues e na criminalidade, uma acusação sem base feita em 2011 num relatório da Central de Inteligência Nacional de Gangues do FBI.

"As forças da lei de várias jurisdições também atribuem o aumento da filiação a gangues na região à cultura gângster rap, à facilitação de comunicação e recrutamento através da internet e redes sociais, à proliferação de membros de gangues geracionais e à falta de recursos para o combate a gangues", dizia o relatório. "Músicas de gângster rap, muitas vezes compostas por jovens, estão sendo usadas para lavar dinheiro através de um negócio aparentemente legítimo."

LEIA: "Documentos Mostram como o FBI Tentou Ligar o Wu-Tang Clan a Dois Assassinatos"

Por décadas, o FBI sondou artistas lendários como Jimi Hendrix, The Doors, Beatles e Greateful Dead. O bureau até lançou uma investigação separada sobre "Louie Louie" do Kingsmen, para saber se a letra incompreensível da música violava as leis de obscenidade previstas nos EUA.

Ainda assim, as investigações do FBI contra artistas negros — particularmente grupos de rap — se destacam. Recentemente a VICE fez um pedido via Freedom of Information Act (FOIA) para o FBI, para que a agência libere os arquivos sobre grupos de rap e rock mainstream (incluindo Slaughterhouse, Army of the Pharaohs, Blink-182 e Radiohead). Enquanto esperamos por esses arquivos (se eles existirem), vale a pena revisitar um dos arquivos de caso mais notórios da coleção de "cultura popular" do FBI: o arquivo sobre Ol' Dirty Bastard e o Wu-Tang Clan.

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Entre 1999 e a morte de ODB em 2004, o FBI trabalhou com o Departamento de Polícia de Nova York para investigar o Wu-Tang Clan por uma variedade de supostos crimes federais. Eles nunca fizeram nenhuma acusação formal, mas o FBI usou recursos consideráveis numa tentativa de derrubar o Wu. Em 2012, em resposta a pedidos do FOIA, o FBI liberou um arquivo de 95 páginas sobre ODB e "WTC", que era como a agência se referia ao grupo. As alegações inflamatórias levantadas no arquivo (tráfico de drogas, laços com gangues, assassinato) já foram discutidas antes, mas pouca atenção foi dada para a amplitude da investigação do FBI e como ela começou.

1. Essa página é uma comunicação eletrônica que foi usada para abrir o caso. Ela indica que a investigação se originou em Nova York e resultou de um encaminhamento do NYPD, que estava investigando o assassinato de dois traficantes. A polícia suspeitava que RZA do Wu-Tang Clan tinha sido o mandante e Raekwon o cúmplice.

2. A classificação "281F" mostra que o FBI tinha rotulado o Wu-Tang Clan como "uma grande organização criminosa".

3. "OC/DI" é a sigla do FBI para crime organizado/investigação de drogas.

4. As edições no FOIA são usadas pelo FBI para proteger a privacidade de um indivíduo. Nesse caso, as edições protegem o detetive do NYPD que pediu assistência ao FBI e a pessoa(s) que as agências acreditava estar "financiando" os supostos crimes do Wu-Tang Clan.

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5. O último parágrafo dessa página contém os trechos mais explosivos. Os detetives do NYPD pediram ajuda do FBI para montar uma acusação RICO contra a "organização" Wu-Tang Clan. O Congresso americano passou essa legislação, a Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act, em 1970 para facilitar que a promotoria federal desmantelasse famílias mafiosas.

O arquivo aponta que Ben Campbell, então promotor federal de Nova York (que já acusou figuras infames da Cosa Nostra e terroristas da Al-Qaeda), "está disposto a acusar o WTC". Em outras palavras, segundo esses arquivos e as investigações preliminares do FBI e do departamento policial de Nova York, o Wu-Tang Clan, um grupo de rap internacionalmente famoso que já vendeu milhões de discos, também era uma organização criminosa envolvida em conspirações como venda de drogas e execuções.

6. Essa página mostra a requisição do FBI para uma viagem a Allentown, na Pensilvânia, onde a RA "agência regional" poderia "fornecer e comparar informações relacionadas com a movimentação de drogas da gangue Bloods e o Wu-Tang Clan".

7. Sem dúvida essa é uma das páginas mais importantes e pouco analisadas do arquivo do FBI para o Wu-Tang Clan. Ela revela que em abril de 2000, menos de seis meses depois que o FBI lançou a sondagem, o bureau procurou a assistência da Unidade FAST do FBI de Nova York para investigar o grupo e "negócios ou entidades controladas pelo WTC". A inclusão da equipe FAST mostra a seriedade da investigação. É impossível encontrar qualquer coisa sobre a Unidade FAST numa busca simples no Google. Mas graças ao advogado que nos ajudou com o FOIA, Jeffrey Light, descobrimos o que "FAST" significa: financial analysis strategic targeting [algo como direcionamento estratégico de análise financeira].

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Uma referência à equipe foi feita durante uma audiência do subcomitê do Senado americano em 25 de junho de 1990, sobre "áreas com alta intensidade de tráfico de drogas" em Nova York. Segundo uma transcrição da audiência, David J. Ripa, o assistente regional do Serviço Alfandegário americano, do Departamento do Tesouro, testemunhou que a Unidade FAST foi desenvolvida "como parte das investigações e inteligência contra lavagem de dinheiro em Nova York… em coordenação com a missão e objetivos do FinCen [Financial Crimes Enforcement Network, uma rede contra crimes financeiros do Tesouro americano].

"Essa equipe revê relatórios de casos, apreensões e evidências, e utiliza vários recursos para desenvolver grandes alvos de investigação e/ou buscas de interdição. A equipe FAST, que é formado por analistas alfandegários, agentes e inspetores complementados por fontes investigativas do Imposto de Renda, HHS [o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA], o DEA, a promotoria do Brooklyn, a Polícia Estadual de Nova York e a promotoria do Distrito de Manhattan, fornece um mecanismo para identificação, avaliação preliminar, coleta de inteligência e disseminação de uma variedade de grupos investigativos do Serviço Alfandegário e forças-tarefa de várias agências — ou seja, a força-tarefa do distrito sul, a força-tarefa de Long Island e a força-tarefa do Serviço Alfandegário/Polícia Estadual de Nova York".

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8. A segunda e a terceira páginas dessa parte do arquivo identificam todos os negócios incorporados pelo Wu-Tang Clan, incluindo empresas de empresariamento e produção, gravadora e marca de roupas. Fica claro que o FBI tinha suspeitas de que o Wu-Tang Clan lavava dinheiro de drogas por meio desses negócios. E o último parágrafo dessa página diz que Campbell, o promotor federal de Nova York, tinha pedido a ajuda da Unidade FAST. Ele também aponta que um agente especial designado para o "RIS" (que suspeitamos ser um erro de digitação de IRS, a agência de imposto de renda dos EUA, já que nenhuma agência federal sabia dizer o que era o RIS, e não há referência a isso em mais nenhum documento) tinha a missão de "identificar o fluxo de dinheiro por meio das ações e entidades controladas pelo WTC e vai trabalhar em conjunção com a Unidade FAST".

9. A menção ao esquadrão C-30 do FBI de Nova York aqui é digna de nota. Segundo um relatório do Departamento de Justiça, o Squad C-30 era parte de uma força-tarefa anticrimes violentos cuja missão era "desmantelar as atividades de gangues de rua violentas identificadas pela Estratégia de Gangues do FBI, operando dentro dos cinco condados de Nova York".

10. Em julho de 2004, o FBI fechou seu arquivo e investigação "281F", "crime organizado", contra o Wu-Tang Clan, apontando que o Squad C-30 lidaria com a sondagem. O arquivo do FBI diz que um agente especial designado na classificação "267C", que é homicídio relacionado a drogas, estava no comando do caso.

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O arquivo do FBI sobre o Wu-Tang Clan ressurgiu no final de 2015 num caso de dois barões da droga de Staten Island – irmãos que foram condenados por tráfico, um deles acusado do assassinato dos traficantes de drogas que o NYPD e o FBI suspeitava ter sido ordenado por RZA e Raekwon. Com a sentença dos irmãos se aproximando, o advogado de um deles disse no tribunal que seu cliente, Anthony Christian, não era responsável, e fez referência aos cinco anos de investigação do FBI sobre o Wu-Tang Clan.

"Esses relatórios [do FBI] parecem sugerir que outra pessoa era culpada por esses assassinatos. Não estou sugerindo que o Wu-Tang cometeu esses crimes. Mas o FBI estava", disse o advogado Michael Gold. "O que estou tentando verificar é a crença declarada num arquivo oficial de que o Wu-Tang ordenou esses homicídios."

Apesar da tentativa de um ano de Gold de fazer os promotores federais reabrirem a investigação sobre o suposto papel do Wu-Tang Clan, RZA e Raekwon nos assassinatos, o juiz federal Eric Vitaliano rejeitou os apelos da defesa. Em julho passado, Christian foi sentenciado à prisão perpétua por assassinato e outras acusações.

Enquanto isso, RZA, Raekwon e o Wu-Tang Clan foram inocentados. A lição aqui para o FBI, NYPD, Christian e seu advogado? É melhor não mexer com o Wu-Tang Clan.

Tradução: Marina Schnoor

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