Boxe LGBT: crimes de ódio, HIV e luta contra estereótipos

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Boxe LGBT: crimes de ódio, HIV e luta contra estereótipos

A comunidade LGBT encontrou no boxe uma forma de se defender.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma VICE Sports.

No final de 2010, tinha 23 anos e era funcionário de um bar no Soho, em Londres, Inglaterra. Durante um dia entediante de expediente, um homem vestido com roupas desportivas entrou no estabelecimento e, com estardalhaço, anunciou que ensinaria homens gay a lutar. Não recebeu nenhuma resposta entusiasmada dos dois clientes idosos que viravam cervejas ao meio-dia. Impávido, voltou-se para mim e ergueu, orgulhoso, um poster com as seguintes palavras: "Em busca do rei do ringue".

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Dermot, um heterossexual promotor de boxe, tinha uma ideia genial: os homens gay eram um mercado pouco explorado. Pouco explorado por bons motivos, imaginei eu. Sempre gostei de me manter em forma, mas nunca olhei para o boxe como um desporto que me fosse receber bem. Um mundo patriarcal, longe das luzes das discotecas, drag queens e das canções da Rihanna típicas da cena gay. Fiz um comentário qualquer engraçadinho sobre a minha cara e Dermot continuou a sua busca noutro lugar.

Uma semana depois, decorreu uma vigília em Trafalgar Square para lembrar o aniversário do assassinato de Ian Baynham. Baynham, de 62 anos, estava de mãos dadas com o seu parceiro quando Joel Alexander, de 20 anos, o atirou ao chão com um murro. De seguida, quando ele estava caído no chão, Ruby Thomas, de 19 anos, pontapeou-o várias vezes na cabeça.

No dia seguinte à vigília, mandei um e-mail a Dermot. Depois de meses a treinar em ginásios por toda a cidade, lutei no Pink Collar Boxing, no Scala, em King's Cross, em Abril de 2011. Foi o primeiro e, pelo que sei, o único evento de boxe apenas para homossexuais realizado até agora.

"As coisas chegaram a tal ponto que comecei a não gostar de sair, porque tinha medo de ser atacado. Um dia, pensei: 'Isto é ridículo. Sou demasiado jovem para passar a vida escondido no sofá'".

O Pink Collar já não existe, mas, hoje em dia, treino no clube de boxe KnockoutLGBT em Holloway, Londres. No Verão de 2014, lembrei-me do motivo pelo qual inicialmente pensei que poderia precisar disto. Numa sexta-feira, por volta da meia-noite, beijei um rapaz em Shoreditch. Uns gajos de cabeça rapada passaram por nós num carro, não gostaram da nossa demonstração de afecto e atiraram-nos uma lata cheia de cerveja, que por pouco não nos acertou. O condutor saiu do carro e começou a caminhar de forma ameaçadora na nossa direcção.

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Como eu estava com alguém que queria proteger, fui direito a ele no meio da rua. Quando, inesperadamente, se viu confrontado por um homossexual, balbuciou algo do género "bicha de merda". Voltou para o carro e foi-se embora. Apesar de todos os meus treinos, fiquei chocado, a tremer, e senti que acabei por ter muita sorte. É difícil entender como alguém que não te conhece pode odiar-te tanto.

Nem todos têm a mesma sorte que eu. Os crimes de ódio são a principal razão pela qual Phil Bradby, organizador da Knockout LGBT, advogado e director de uma empresa, acabou por envolver-se no boxe.

"Quando tinha vinte e poucos anos, saí para beber num bar gay em Southend", diz. "Um gajo do outro lado da rua viu-me a sair do bar e começou a gritar insultos homofóbicos. Depois, correu na minha direcção e começou a esmurrar-me. Não tinha ideia de como podia defender-me e não queria piorar as coisas, então, simplesmente, fiquei ali a apanhar".

Não foi a única vez. "Um ano depois, fui novamente atacado e acabei com um olho negro", conta. E acrescenta: "As coisas chegaram a tal ponto que comecei a não gostar de sair, porque tinha medo de ser atacado. Um dia, pensei: 'Isto é ridículo. Sou demasiado jovem para passar a vida escondido no sofá'. Então, matriculei-me no karaté. Até agora já treinei karaté, muay-thai e boxe inglês. É óbvio que me dá mais confiança saber que se alguém tentar alguma coisa, sei defender-me".

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Outros membros da Knockout LGBT contaram-me que queriam experimentar algo diferente. "Eu queria extravasar as minhas frustrações", diz Damian Giles, de 36 anos, que durante algum tempo, depois da morte do pai, sofreu de depressão. "Mas, para além disso, também queria ser desafiado por uma coisa que ninguém, tendo em conta a minha personalidade pacífica, esperaria que eu fizesse. Encontrei um verdadeiro grupo de homens gay, muitos dos quais posso agora chamar de grandes amigos".

Reacções contrárias ao clube vieram, estranhamente, de dentro da própria comunidade gay. Comentários online incluíam acusações de que os membros do clube estavam a tentar "parecer hetero", ou de que seriam homossexuais que se odeiam a si próprios e, por isso, procuram a masculinidade.

"É um exemplo clássico de homofobia e bullying na comunidade gay", explica o editor de moda Darcy Rive, de 26 anos. "É desolador que, precisamente quando a comunidade está, finalmente, a afirmar-se na sociedade, alguns homens gay sintam que precisamos de encaixar-nos em determinados critérios de comportamento aceitável para homossexuais. Qualquer hobby é um hobby, não interessa se é praticado por um heterossexual, por alguém do universo LGBT, ou por alguma pessoa de género não-binário".

"O Professor". Fotografia por Richard Sawdon Smith

Os membros da Knockout treinam por muitos motivos diferentes, mas o que dizer dos que querem lutar num ringue à séria? Permita-me que te apresente o "Professor".

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"Sempre gostei de ver combates de boxe na televisão e fantasiava com o glamour do ringue e com a capacidade de, potencialmente, poder vencer uma luta – queria aquele cinturão de vencedor!", diz Richard Sawdon Smith, 52 anos, professor e pró-reitor de Arte e Media da Universidade de Artes de Norwich.

"Tenho reflectido sobre as razões psicológicas mais profundas e a origem do meu desejo de bater em alguém ou de que alguém me bata. O meu amigo Simon Witney ofereceu-me alguns pensamentos sobre como isso tem a ver com o facto de eu ser um homem gay seropositivo. Não acho que se possa, ou se deva, evitar a questão da violência em todos os níveis das nossas vidas, do nascimento em diante, não importa o quão perigoso isso possa ser. Para muitos de nós, o HIV re-encena todo o tipo de características sombrias das nossas relações com os nossos corpos e desejos. E isto parece conduzir-nos directamente ao projecto actual de praticar boxe".

"É triste que ainda sinta a necessidade de praticar boxe por algum motivo que não seja o puro gosto pelo desporto".

Mas o estatuto de seropositivo de Richard quase se tornou uma barreira nas suas lutas. "A minha quarta luta foi contra um jovem heterossexual chamado David. Ele recebeu uma mensagem de um amigo gay no Facebook que lhe dizia que era melhor reavaliar a ideia de lutar comigo, porque eu era seropositivo", diz Richard. "Levei o David a tomar um café e expliquei-lhe que nunca ninguém tinha contraído o HIV num combate de boxe. Se eu considerasse isso um risco, nunca me teria oferecido para lutar. Concordou em ir para casa e pensar no assunto e acabou por aceitar o combate – e eu acabei por lhe dar uma sova!".

"A violência molda a nossa sociedade e deixa-a obcecada", disse o dramaturgo Edward Bond em 1972 – e o sentimento mantém-se actual. De muitas maneiras, está ligado às pressões de interpretar aquela versão irrealmente "forte" e emocionalmente reprimida de um homem.

É triste que ainda sinta a necessidade de praticar boxe por algum motivo que não seja o puro gosto pelo desporto. O número de ataques homofóbicos em Londres cresceu 30% no ano passado. A história mostra como em épocas de crise económica, quando as vidas das pessoas se tornam mais instáveis, os ataques contra as minorias crescem. Já este ano, um professor gay foi brutalmente atacado em North Yorkshire e um homem em Londres sofreu ferimentos graves num ataque dentro do seu próprio apartamento. Eu quero defender-me.

Mas o boxe não faz com que eu - ou qualquer outro - seja mais corajoso. Na verdade, talvez a coragem seja acreditar em si mesmo, respeitar os outros e não dar o primeiro murro.