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Relato

Crescer em… Portimão

A promessa de um tsunami arrasador que toda a gente se acotovelou para ver melhor, é o exemplo derradeiro de que Portimão sempre se preparou para grandes coisas que nunca chegaram a acontecer.
criança com boné
Foto cortesia do autor.

Em plenas férias grandes, conceito que a vida adulta nos arrebata, dava por mim a suar forte e feio à beira-mar, junto dos meus amigos, enquanto via passar as moças. Estava um daqueles inícios de tarde em que o calor é tanto que os cães nem ladram. Nisto, reparei que vários jipes da GNR invadiam em fila o imenso areal da Praia da Rocha. A ordem era para evacuar os banhistas. Vinha aí uma onda gigante.

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Crescer em... Leiria

O alerta tinha sido dado a partir de aviões e embarcações: uma parede de água erguia-se onde parece que o mar acaba. Os telefones começaram a tocar. O pânico instalou-se. Estava, sem dúvida, a formar-se uma onda gigante, observavam muitos, de olhos postos no horizonte; tão grande que poderia engolir a cidade, previam os mais aflitos; salve-se quem puder, gritavam os profetas de fim de mundo em vésperas de fim de século - eles que até então eram vistos como loucos e, naquele dia, estavam finalmente certos.

Por uma qualquer razão, nenhum agente da GNR quis dar-nos explicações. Estranhámos, contudo era de calcular que não havia tempo a perder e fomos corridos da praia sem oferecer resistência.

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A praia da Rocha. Foi mais ou menos ali em frente que nada aconteceu. Foto cortesia do autor.

Quem nasceu nos anos 80 e passou a adolescência em Portimão sabe que a tendência era ser malandro. Faltar às aulas para jogar à bola; beber como se o álcool estivesse para acabar; montar o cerco às "bifas" nos bares da Rocha e engatá-las sem ser preciso perguntar-lhes o nome. De maneira que, naquele 23 de Agosto de 1999, o dia em que o Mundo ia acabar - ou pelo menos Portimão -, fizemos questão de ser os últimos a sair da praia. Era o nosso ponto de honra. Salvo erro, ainda parei no cimo da escadaria que liga a praia à avenida e tirei cuidadosamente a areia dos pés, que, como toda a gente sabe, pode irritar a pele naquela tira de borracha que separa o dedo grande dos restantes.

Aproveitámos para enganar o estômago no Burger Ranch, uma cadeia de hambúrgueres cuja primeira loja foi aberta na avenida principal da Praia da Rocha, em 1992, um ano depois dos Íris lançarem o disco "Tá o Mar Fête num Cão" (os Íris são da Fuzeta e um dia foram tocar ao nosso liceu).

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Crescer na... Covilhã

O restaurante em causa fica mesmo à beira da falésia e escolhemos uma mesa no primeiro andar, com vista privilegiada sobre (sob?) a onda. A lotação estava esgotada. Antes ainda tirei a minha Yamaha Target vermelha e preta do local onde a tinha deixado, junto à escadaria e estacionei-a uns metros para trás, na avenida, não fosse o tsunami levá-la.

A excitação inicial era grande na nossa mesa do Burger Ranch, Bugas para a malta. Houve quem tivesse apontado a onda a avançar lá ao fundo, ameaçadora; eu próprio vi qualquer coisa que se parecia com isso, enquanto enchia uma mão de batatas fritas a pingar de ketchup e as devorava sem tirar os olhos do horizonte. Correu a informação de que a onda já tinha rebentado e feito estragos em Albufeira. Depois seria Portimão.

O tempo passou. Dez, 15, 20 minutos: nada. Meia hora, 40 minutos, 60: coisa nenhuma. Impacientes e desconfiados, achámos que a melhor coisa a fazer era sair do Bugas e descer a escadaria à lufa-lufa até à praia. Numa correria desvairada atacámos o mar e gritámos "olha a onda!", saltando por cima da primeira que apareceu. Dava-nos pelo tornozelo. Isto para dizer que a onda gigante era uma onda de calor. Ilusão de óptica. Nada de especial.

Crescer na... Ericeira

Só mais tarde, a ver o telejornal, dei conta da dimensão que aquilo tomou. A notícia de uma onda gigante, que, a ser verdade, teria empurrado Portimão para junto do Rasmalho, levou gente a fugir de restaurantes sem pagar a conta um pouco por toda a costa algarvia. No caso de Portimão, consta que os mais cautelosos se meteram a caminho de Monchique. Em sentido contrário, outros houve que saíram de casa e rumaram à costa, de modo a poderem ver a onda de perto. A tudo isto assistiram as autoridades com atenção, sem lhes ocorrer que evacuar milhares de pessoas das praias, mas deixar boa parte delas ali perto à espera de uma onda de 40 metros de altura, não as protegeria grande coisa.

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A promessa de um tsunami arrasador que toda a gente se acotovelou para ver melhor é o exemplo derradeiro de que Portimão sempre se preparou para grandes coisas que nunca chegaram a acontecer. A cidade anda a preparar-se para o funeral de um equilibrista nocturno na Praia da Rocha desde que me entendo. Todos os anos cai alguém da falésia, na parte de trás dos bares, que tem um muro de brincar, sem protecção, mas de alguma forma ninguém morre. Há coisa de um mês tombou pela arriba um puto irlandês. A queda é sempre feia, são dezenas de metros e os relatos foram de que o puto se partiu todo. No dia seguinte reapareceu na noite da Rocha todo ligado, pronto para outra.

Não sou do tempo em que Portimão era uma comunidade piscatória; em que se apanhavam mexilhões e caranguejos ali onde construíram a Marina; em que da Praia da Rocha se via a serra de Monchique. Cresci a compreender, isso sim, que Portimão era o corre-corre da rua das lojas; a costa, praias que parecem mentira; a revista do Boa Esperança; o Festival da Sardinha; o campo de motocross nas traseiras da minha casa; a ginjinha no Porta Velha; os shots no Madeirão; os carochos do Palácio; o Luis Marreco a andar de bicicleta todo nu. Enfim, a verdadeira capital do Algarve, sem precisar de realmente o ser para andar sempre nas bocas do mundo.

Hoje, a terra ainda conserva alguns desses traços de identidade, mas fica a sensação de se ter transformado numa cidade indefinida depois da aposta no turismo de massas, na urbanização de apartamento, supermercado e praia, no quanto mais melhor - honrosas excepções ao dinheiro (bem) investido no Museu da cidade, instalado numa antiga fábrica de conservas e no Teatro Tempo, cuja dinâmica de ofertas culturais teve o condão de pôr muito boa gente da terra a pensar pela própria cabeça.

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A rua das lojas em hora de ponta, e o fantástico croissant da Panificadora (fotografia de Ivo E., via Yelp.)

Muita gente culpa o Aqua pela falta de gente nas ruas. Faz algum sentido. Construído há quatro anos, o centro comercial deixou a rua das lojas nas últimas. Com o ritmo de outros tempos sobra talvez a loja da Panificadora Portimonense, na rua da Hortinha, onde as empregadas trabalham desde que me entendo. Uma delas gosta muito de mim. Uma vez pedi-lhe um daqueles croissants incríveis de massa folhada e ela deu-me dois. Explicou que tinham saído muito encolhidos da cozedura e de qualquer forma eu tinha jeito de ser um rapaz que se alimentava bem.

O que já se perdeu foi o Palácio - danados para a brincadeira, os portimonenses deram nome de construção real ao seu bairro mais degradado. Situado na periferia, a caminho de Alvor, o Palácio recebeu dezenas de famílias que ali sobreviviam em barracas desde os anos 70. Droga da pesada era o prato do dia.

Em 2009 demoliram-no. A ideia era construir ali um complexo desportivo, complexo esse que nunca passou da vedação ao terreno. Quanto à diáspora dos janados, parece ter-se concentrado na zona velha da cidade, hoje em dia um mercado de consumo e tráfico de droga a céu aberto e à luz do dia, como pode atestar qualquer pessoa que passeie por aquelas ruas.

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A rotunda de Portimão. Foto cortesia do autor.

Além da falta de rumo, vai faltando dinheiro na câmara para pôr a autarquia a funcionar. Mas, quanto a isso, há motivos para ter confiança. No outro dia a presidente da câmara, a Isilda Gomes, e o proprietário de um dos restaurantes mais icónicos da terra, o Dona Barca, meteram-se à estrada com um assador, rumo a Lisboa, e estiveram a assar sardinhas nas traseiras da RTP.

Foram ao programa do Herman José promover oFestival da Sardinha. Quando o Herman perguntou à nossa presidente que história é essa de a câmara de Portimão estar falida, ela respondeu que vai tudo bem, porque há pouco tempo pagou 3,6 milhões de euros a credores. Ainda bem. Assim já haverá dinheiro para pagar a jardineiros que cuidem das nossas rotundas. De outro modo pode sempre pôr-se a pastar um ou outro burro, que boa vontade não lhes falta.


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