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Relato

Crescer na... Covilhã

"No final dos anos 60, a Covilhã era um dos principais centros de lanifícios da Europa e , por esse motivo, é uma cidade de características muito próprias".
criança dentro de um carro

Crescer na Covilhã nos anos 70/80 era crescer com a Mania. A Mania que somos os melhores, os mais chiques, os mais interessantes, os mais cultos, os mais "rijos", os mais elegantes, os mais bonitos, os mais viciosos, os mais "à frente" ou qualquer outra mania de grandeza que a nossa imaginação possa alcançar. Não admira que isto acabe mal.

Capítulo 1 – Aleitamento e Doutrinamento

No final dos anos 60, a Covilhã era um dos principais centros de lanifícios da Europa e, por esse motivo, é uma cidade de características muito próprias. Uma cidade onde convivem grandes fortunas e pessoal técnico especializado (bastantes espanhóis e ingleses), com uma classe operária muito interventiva. Estamos nos anos finais da ditadura e um ar novo (e sempre fresco dada a altitude) começa a respirar-se na cidade. Nos primeiros anos da nossa existência éramos doutrinados para uma série de regras e costumes que marcavam a nossa vida para sempre:

- As mães estão em casa e os pais no trabalho;
- O desporto favorito do covilhoco é falar dos outros (bem ou mal não interessa, mas se for mal melhor);
- A "culpa" nunca morre solteira;
- Às 5 da tarde lancha-se e toma-se o chá, aos domingos leva-se o tacho para o Arroz à Valenciana comido em família alargada e só nós é que conseguimos fazer e comer o famoso "pastel de molho" (que mais ninguém conhece no Planeta);
- Somos do Sporting da Covilhã e do Sporting de Portugal, alguns poucos podiam ser do Benfica (para haver alguém de quem dizer mal) e havia o Jorge Paulo Rato que era do Porto;
- No Inverno, tínhamos uma semana extra de férias por causa da neve e fazia-se ski, no Verão, ia tudo para a praia para a Figueira da Foz que ficava "ali mesmo ao lado";
- O Espanhol era a nossa segunda língua materna, o que fazia de nós bilingues de nascimento;
- A TV era a cores na Covilhã (os canais espanhóis) e a preto e branco no resto do País.

E pronto, agora só faltava decidir se ias para um infantário público, para o Colégio das Freiras ou para o Orfeão/Conservatório da Covilhã e o teu destino estava traçado. Eu fui para o Orfeão.

Capítulo 2 – Educação e Vicio

No Orfeão tinhas uma educação que misturava as actividades curriculares oficiais com uma formação musical e cultural bastante diversificada. No Conservatório começavas aos 4 anos com as aulas de Solfejo e Piano. A minha falta de ouvido musical havia de perseguir-me durante os 11 anos que lá andei.

Para lá do Conservatório, havia o Coro, a secção de cinema e o pátio de jogos e festas. Aí, sobretudo nos Santos Populares, comecei aos 10 anitos com a malta mais velha a passar discos uns atrás dos outros, uma actividade que mais tarde viria a ser conhecida como DJ e que ainda hoje pratico, sempre que surge uma oportunidade. Já o piano e a composição musical, são assuntos que ficaram arrumados e esquecidos.

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Primeira audição de piano no Conservatório. Foto cortesia do autor.

Quando de repente passo deste mundo idílico para a Escola Primária dos Penedos Altos, ao mesmo tempo que o País passava da ditadura para a democracia, foi um choque demasiado grande do qual ainda hoje tento recuperar-me. Nos Penedos Altos estudavam os "queques" do bairro acomodado que dava nome à escola, junto com os "duros" do extra radio operário, composto pelo núcleo Lameirão-Borralheira-Aldeia do Carvalho. Os "duros" deixavam logo bem claro aos "queques" como é que a coisa funcionava no pátio da escola durante os recreios.

Para terem uma ideia da coisa, basta ver a típica cena dum filme americano do género presidiário, em que o novato branquinho e arranjadinho chega ao pátio da prisão pela primeira vez e lhe explicam o funcionamento da coisa. Havia que cair nas boas graças do "Ti Tó" ou do "Ti Vítor" (faziam-se chamar assim dado já terem 12 ou 13 anos e continuarem a frequentar a segunda classe), pagar as "portagens" e tudo corria bem. As meninas viviam num mundo à parte e nessas não se tocava. Embora esta fosse a escola mais hardcore, no resto das escolas da cidade as coisas não variavam muito. Não admira que com uma educação "Goodfellas" como esta haja covilhanenses que, por um lado, cheguem a primeiro-ministro e anos mais tarde acabem com os ossos na prisão.

Desde muito pequenos e creio que sem se aperceberem disso, os nossos progenitores inculcavam em nós bases sólidas para entrar no mundo do vício. Desde darem-nos dinheiro para comprar uma grama de açafrão, que se vendia em pacotinhos nas farmácias para o molho do já mencionado "pastel de molho" (hoje uma actividade proibida), os primeiros "garotos" de café na esplanada do Montalto, às empadas e bolinhos comprados nas traseiras das casas de senhoras que assim fugiam, e bem, ao fisco (quem se lembra da grande Dona Rufina?), as moedas para estourar na Casa Amarela ou outro dos inúmeros salões de jogos recreativos que inundavam a cidade, até ao surrealismo das noites passadas à porta do Casino da Figueira da Foz à guarda do porteiro de turno, enquanto os nossos pais tentavam a sorte (e alguns se arruinavam) nas "máquinas".

Com um background destes, mas do que é que eles estavam à espera?

Capitulo 3 – Adolescência e (Ir)realidade

E era assim, já bem formados, viciados e doutrinados que lá íamos para a Escola Industrial ou para o Liceu, onde mais uma vez a escolha não era completamente inocente e condicionava bastante o teu futuro.

A partir daqui são caminhos mais ou menos comuns:

- As tardes/noites nas Esplanadas do Primor, do Montalto e anos mais tarde do Verdinho;
- As sessões de cinema míticas do Teatro Cine no meio de mais de mil pessoas onde se podiam comer as "Gominolas Made in Spain" compradas nos intervalos ou beber um cházinho no bar;
- As farturas (com um cházinho) da Feira de S. Tiago e os Santos Populares nos pátios das dezenas de Associações Recreativas e Culturais;
- As noitadas do festival da Eurovisão em casa dos amigos que tinham TV a cores (com um cházinho);
- Os fins-de-semana de Verão na Serra para fugir do calor, em caminhadas/escaladas, a banhos nas barragens, nos churrascos do Vale do Rossim, ou pernoitando nas casas de latão que alguns privilegiados tinham na Nave de Santo António (com um cházinho, claro);
- As viagens a Ciudad Rodrigo, Fuentes de Oñoro e, de vez em quando, a Salamanca para abastecer de caramelos, chocolates, callos, anchovas e outros enlatados (e um ou outro cházinho de importação);
- E claro está, as idas e vindas pela sinuosa estrada do Tortosendo, onde muitos amigos perderam a vida, para entrar no mítico Numero Uno, que era muito provavelmente a melhor discoteca à face da terra e que, por si só, mereceria um artigo (aqui não dávamos no cházinho, era mais no charrinho). Os que lá foram sabem do que é que estou a falar. Para os que não foram, fica aqui uma possível sequência de quatro músicas que podíamos perfeitamente dançar na pista "da esquerda" num qualquer sábado à noite de 1985.

E, de repente, a meio dos anos 80, eis que chega a decadência económica e industrial dos têxteis, e a maioria das grandes fábricas da cidade começa a fechar, uma atrás da outra.

Felizmente, ao mesmo tempo chegou a IUBI (hoje Universidade) e com ela gente dos mais variados cantos do País, que por um lado se integrava e por outro ajudava a mudar a realidade social de uma cidade demasiado virada para si mesma.

Mas, nem isso nos salvou. Conforme tinha avisado no início, as nossas manias muito próprias e um encadear de corruptos deslumbrados à frente dos destinos da cidade, que continuam à solta, levaram a que hoje a Covilhã seja uma cidade sem vida, sem alma e qualquer dia sem gente que possa lá crescer e contar como foi.


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Crescer na Covilhã nos anos 70/80 era crescer com a Mania. A Mania que somos os melhores, os mais chiques, os mais interessantes, os mais cultos, os mais "rijos", os mais elegantes, os mais bonitos, os mais viciosos, os mais "à frente" ou qualquer outra mania de grandeza que a nossa imaginação possa alcançar. Não admira que isto acabe mal.

Capítulo 1 – Aleitamento e Doutrinamento

Crescer em... Leiria

No final dos anos 60, a Covilhã era um dos principais centros de lanifícios da Europa e, por esse motivo, é uma cidade de características muito próprias. Uma cidade onde convivem grandes fortunas e pessoal técnico especializado (bastantes espanhóis e ingleses), com uma classe operária muito interventiva. Estamos nos anos finais da ditadura e um ar novo (e sempre fresco dada a altitude) começa a respirar-se na cidade. Nos primeiros anos da nossa existência éramos doutrinados para uma série de regras e costumes que marcavam a nossa vida para sempre:

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- As mães estão em casa e os pais no trabalho;
- O desporto favorito do covilhoco é falar dos outros (bem ou mal não interessa, mas se for mal melhor);
- A "culpa" nunca morre solteira;
- Às 5 da tarde lancha-se e toma-se o chá, aos domingos leva-se o tacho para o Arroz à Valenciana comido em família alargada e só nós é que conseguimos fazer e comer o famoso "pastel de molho" (que mais ninguém conhece no Planeta);
- Somos do Sporting da Covilhã e do Sporting de Portugal, alguns poucos podiam ser do Benfica (para haver alguém de quem dizer mal) e havia o Jorge Paulo Rato que era do Porto;
- No Inverno, tínhamos uma semana extra de férias por causa da neve e fazia-se ski, no Verão, ia tudo para a praia para a Figueira da Foz que ficava "ali mesmo ao lado";
- O Espanhol era a nossa segunda língua materna, o que fazia de nós bilingues de nascimento;
- A TV era a cores na Covilhã (os canais espanhóis) e a preto e branco no resto do País.

E pronto, agora só faltava decidir se ias para um infantário público, para o Colégio das Freiras ou para o Orfeão/Conservatório da Covilhã e o teu destino estava traçado. Eu fui para o Orfeão.

Capítulo 2 – Educação e Vicio

No Orfeão tinhas uma educação que misturava as actividades curriculares oficiais com uma formação musical e cultural bastante diversificada. No Conservatório começavas aos 4 anos com as aulas de Solfejo e Piano. A minha falta de ouvido musical havia de perseguir-me durante os 11 anos que lá andei.

Crescer em… Portimão

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Para lá do Conservatório, havia o Coro, a secção de cinema e o pátio de jogos e festas. Aí, sobretudo nos Santos Populares, comecei aos 10 anitos com a malta mais velha a passar discos uns atrás dos outros, uma actividade que mais tarde viria a ser conhecida como DJ e que ainda hoje pratico, sempre que surge uma oportunidade. Já o piano e a composição musical, são assuntos que ficaram arrumados e esquecidos.

crescer-na-covilha-body-image-1440680906

Primeira audição de piano no Conservatório. Foto cortesia do autor.

Quando de repente passo deste mundo idílico para a Escola Primária dos Penedos Altos, ao mesmo tempo que o País passava da ditadura para a democracia, foi um choque demasiado grande do qual ainda hoje tento recuperar-me. Nos Penedos Altos estudavam os "queques" do bairro acomodado que dava nome à escola, junto com os "duros" do extra radio operário, composto pelo núcleo Lameirão-Borralheira-Aldeia do Carvalho. Os "duros" deixavam logo bem claro aos "queques" como é que a coisa funcionava no pátio da escola durante os recreios.

Para terem uma ideia da coisa, basta ver a típica cena dum filme americano do género presidiário, em que o novato branquinho e arranjadinho chega ao pátio da prisão pela primeira vez e lhe explicam o funcionamento da coisa. Havia que cair nas boas graças do "Ti Tó" ou do "Ti Vítor" (faziam-se chamar assim dado já terem 12 ou 13 anos e continuarem a frequentar a segunda classe), pagar as "portagens" e tudo corria bem. As meninas viviam num mundo à parte e nessas não se tocava. Embora esta fosse a escola mais hardcore, no resto das escolas da cidade as coisas não variavam muito. Não admira que com uma educação "Goodfellas" como esta haja covilhanenses que, por um lado, cheguem a primeiro-ministro e anos mais tarde acabem com os ossos na prisão.

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Desde muito pequenos e creio que sem se aperceberem disso, os nossos progenitores inculcavam em nós bases sólidas para entrar no mundo do vício. Desde darem-nos dinheiro para comprar uma grama de açafrão, que se vendia em pacotinhos nas farmácias para o molho do já mencionado "pastel de molho" (hoje uma actividade proibida), os primeiros "garotos" de café na esplanada do Montalto, às empadas e bolinhos comprados nas traseiras das casas de senhoras que assim fugiam, e bem, ao fisco (quem se lembra da grande Dona Rufina?), as moedas para estourar na Casa Amarela ou outro dos inúmeros salões de jogos recreativos que inundavam a cidade, até ao surrealismo das noites passadas à porta do Casino da Figueira da Foz à guarda do porteiro de turno, enquanto os nossos pais tentavam a sorte (e alguns se arruinavam) nas "máquinas".

Com um background destes, mas do que é que eles estavam à espera?

Capitulo 3 – Adolescência e (Ir)realidade

E era assim, já bem formados, viciados e doutrinados que lá íamos para a Escola Industrial ou para o Liceu, onde mais uma vez a escolha não era completamente inocente e condicionava bastante o teu futuro.

A partir daqui são caminhos mais ou menos comuns:

- As tardes/noites nas Esplanadas do Primor, do Montalto e anos mais tarde do Verdinho;
- As sessões de cinema míticas do Teatro Cine no meio de mais de mil pessoas onde se podiam comer as "Gominolas Made in Spain" compradas nos intervalos ou beber um cházinho no bar;
- As farturas (com um cházinho) da Feira de S. Tiago e os Santos Populares nos pátios das dezenas de Associações Recreativas e Culturais;
- As noitadas do festival da Eurovisão em casa dos amigos que tinham TV a cores (com um cházinho);
- Os fins-de-semana de Verão na Serra para fugir do calor, em caminhadas/escaladas, a banhos nas barragens, nos churrascos do Vale do Rossim, ou pernoitando nas casas de latão que alguns privilegiados tinham na Nave de Santo António (com um cházinho, claro);
- As viagens a Ciudad Rodrigo, Fuentes de Oñoro e, de vez em quando, a Salamanca para abastecer de caramelos, chocolates, callos, anchovas e outros enlatados (e um ou outro cházinho de importação);
- E claro está, as idas e vindas pela sinuosa estrada do Tortosendo, onde muitos amigos perderam a vida, para entrar no mítico Numero Uno, que era muito provavelmente a melhor discoteca à face da terra e que, por si só, mereceria um artigo (aqui não dávamos no cházinho, era mais no charrinho). Os que lá foram sabem do que é que estou a falar. Para os que não foram, fica aqui uma possível sequência de quatro músicas que podíamos perfeitamente dançar na pista "da esquerda" num qualquer sábado à noite de 1985.

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Crescer na... Ericeira

E, de repente, a meio dos anos 80, eis que chega a decadência económica e industrial dos têxteis, e a maioria das grandes fábricas da cidade começa a fechar, uma atrás da outra.

Felizmente, ao mesmo tempo chegou a IUBI (hoje Universidade) e com ela gente dos mais variados cantos do País, que por um lado se integrava e por outro ajudava a mudar a realidade social de uma cidade demasiado virada para si mesma.

Mas, nem isso nos salvou. Conforme tinha avisado no início, as nossas manias muito próprias e um encadear de corruptos deslumbrados à frente dos destinos da cidade, que continuam à solta, levaram a que hoje a Covilhã seja uma cidade sem vida, sem alma e qualquer dia sem gente que possa lá crescer e contar como foi.


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