Dia 27: Inserir moeda para jogar de novo

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Milhões de Festa

Dia 27: Inserir moeda para jogar de novo

Que saudades de Barcelos.

O último dia terá de acontecer eventualmente e acontece no dia de descanso do Senhor, com a alvorada a coincidir com a chamada da igreja para a missa do galo, afinal primeiro concerto dominical. Não pensemos que é o último dia, não pensemos com muita força, deixemo-nos levar pelo cheiro a panado para o almoço, mas rápido, que ainda há muito chapinhar por fazer sem deixar que a digestão no-los tire. Chegámos bem a tempo de ver os Jack Shits esfregar o seu rock sem merdas na fronha dos banhistas e, não muito tempo depois, Zacarocha atira a plateia para a piscina e desenvolve uma ambiência descontraída como quem está a filmar um videoclipe em câmara lenta. Cabe às Thug Unicorn encerrarem o Palco Piscina na edição deste ano, e por entre Drake, a "Niggas in Paris", Die Antwoord, Rihanna e a canção do genérico das Navegantes da Lua (!), asseguraram festão em terra e na água, fazendo os corpos bailar como se a segunda-feira não fosse existir. Mas nem tudo foram rosas, já que ao Palco Taina chegaram notícias pouco animadoras: os Morte Incandescente haviam cancelado o concerto receando uma insolação, e já não poderíamos ouvir black metal às cinco da tarde. Felizmente contámos com o jazz desgarrado dos Comet is Coming, nome que afinal de contas bem podia representar o receio do fim do prazo que se desenvolvia por detrás das nossas mentes. O recinto abre de forma imponente com dois colossos da guitarra portuguesa, Filho da Mãe e Norberto Lobo, unidos pela paixão e pela esquizofrenia de duas personagens que se fazem rodear de enormes pedaleiras e se complementam. O fuzz cortado pela destreza das cordas é desenvolto em tom misto de desafio e de colaboração, uma essência sobre a outra para se misturarem depois como uma, como se de improviso se tratasse e o público fosse apanhado e abençoado com este teste. Aos portugueses se seguiram mais portugueses, desta feita no Palco Vodafone FM com a simpática Sequin e os seus dois espadachins. Sabendo que o seu reportório pop delicodoce se espalhou pelos ouvidos do público de forma viral e repetitiva durante este último ano que passou desde que tocou na piscina, facto comprovado com os lábios que sincronizaram as letras, para este salto para um palco maior a alentejana havia preparado três pequenas surpresas, três pequenos aperitivos em forma de novas malhas, com a promessa de novos lançamentos portanto. A esta se seguiram os Young Magic, trio de pop electrónica atmosférica e etérea que nesta sua incursão por paragens barcelenses se fez valer dos fortes batimentos conferidos pela bateria e sintetizadores, proporcionando uma base sob a qual Melati Malay — ela que também se ocupava ocasionalmente das guitarras — projectava a voz, construíndo um cenário sonhador com o auxílio das explosões luminosas do palco. Se isto pode soar um pouco aborrecido, é porque algumas (demasiadas?) vezes foi mesmo, mas algumas canções foram especialmente agradáveis de escutar ao disco. E isso às vezes é o que chega. Se nesta edição do Milhões não faltaram sons e ritmos africanos a inundar-nos os ouvidos, é bastante provável que os Jagwa Music tenham feito a melhor actuação dentro desse género. Seis membros constituíam o grupo proveniente da Tanzânia: um encontrava-se responsável pelas vozes, outro pelos teclados (sob a forma de um pequeníssimo sintetizador), e os restantes distribuíam-se pelas mais variadas e loucas percussões, entre tambores, pandeiretas e bancos de madeira. Produzindo uma contagiante batucada, e acompanhados pelo vocalista — que nem um Kanye West da África Oriental — declamando linhas incompreensíveis, os Jagwa Music passaram de incógnita a uma das surpresas mais agradáveis do festival, até porque a dança de nádegas da sua percussionista feminina nos demonstrou que talvez a Blaya tenha ali uma concorrente à altura. No que toca ao capítulo de dar tudo no Milhões deste ano, poucos indivíduos terão dado mais do que o Isaiah Mitchell, que após as suas presenças na Casazul e no Taina subia agora a palco para finalmente mostrar os seus Earthless, namoro antigo da organização do festival e um dos concertos mais aguardados desta edição. E, para não destoar, os norte-americanos deram tudo num dos melhores e mais fantásticos concertos desta edição, uma viagem incessante pelo espaço cósmico sem quaisquer travões e puxando de arrastão todos aqueles que naquele anfiteatro se concentraram. Viram-se headbangs, air guitars e ainda pessoal deitado na relva a disfrutar de cada nota que saía dos solos titânicos a mil à hora de Mitchell. O considerável atraso que se verificava nos horários das actuações da noite em nada inibiu o trio de levarem o tempo necessário e de, inclusivamente, regressar a palco para um encore bonacheirão. No final ouviam-se aplausos, centenas deles. Mais que merecidos, claro. As palavras não serão suficientes para descrever este concerto, portanto vão ter que se fiar em nós: foi incrível, apenas e só. Por entre solos de saxofone e batidas enérgicas os Melt Yourself Down encerraram o Palco Milhões por este ano, e fizeram-no da maneira mais festiva que tal acontecimento tristonho poderia merecer. Num clima entusiasmado, alternado entre momenos mais ponderados e quase jazzísticos até aos mais frenéticos e de balbúrdia folclórica absoluta, propuseram-se a trazer a celebração e a euforia de regresso a Barcelos e, a julgar pelos saltos, danças e rodas humanas na plataia, tiveram o maior sucesso com isso, principalmente junto de todos aqueles a quem ainda sobrava uma pinga de energia após três dias tão intensos quanto os últimos. Atenções totalmente viradas para a magia a acontecer a partir daqui no único palco restante, pois é tempo de dançar e de pular e de deitar tudo para trás das costas e obedecer ao ritmo dos lasers sonoros dos Frikstailers, duo sul-americano que exibe uma penugem garrida nas cabeças e as agita com vontade por cima dos óculos luminosos com que hipnotizam a pista. A noite é fria mas não aqui dentro. Aqui não há um metro quadrado inerte, excepto quando DJ Nigga Fox, porteiro de serviço e encarregado de mandar fechar o festival, convida a plateia a invadir o palco, e por momentos quase estamos num concerto em que há mais gente lá em cima que cá em baixo. A noite depressa se torna dia enquanto lentamente assenta sobre o nosso, um dos corpos arrastados pelo cansaço e pela porrada de felicidade dos últimos dias, a ideia de que o Milhões de Festa chegou mesmo ao fim. A alegria vira angústia, os abraços apertados sucedem-se, as tendas desaparecem gradualmente das relvas do campismo. Mal saímos da cidade de Barcelos e já temos saudades. Que filha da mãe de edição, senhores. Até para o ano então.

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