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Música

Discos: The Jack Shits

Estes gajos são reais.

The fine art of bleeding

Experimentáculo Records

Observando a capa do disco de estreia dos The Jack Shits, somos surpreendidos por uma saudável espalhafúrdia  urbano-campestre em que o decadente e o sórdido se cruzam sobre o olhar vazio de uma caveira híbrida. Perante este cenário, haverá uma grande hipótese de que nada de aprumadinho saia daqui. E supondo que um Jack é capaz de armar muito estrilho, imagine-se três Jacks. Mas com um nome de baptismo que soa tão aleatório quanto possível, propositadamente ou não, as atenções viram-se para o conteúdo; da mesma forma que nos pode incitar a um breve momento de devaneio sobre grupos rock imaginários (tipo, La Bazuca Sónica, Black Maracas, The Voodoo Fuzzers ou Bambo Lambo's — agora experimentem vocês).

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Mas estes merdas são reais, bem reais. Entre o Barreiro e a Marinha Grande contam-se cerca de 173 quilómetros, uma distância considerável para a vida natural de ensaios e gravações de qualquer banda. Ora, uma das tragédias de uma banda rock é exactamente a impossibilidade — ao invés de vários produtores na área da electrónica, e não só — de criar ou completar faixas e ideias à distância, através da simples troca de ficheiros wav e mp3. Claro que em termos práticos é algo tangível, contudo qualquer criatura de bom senso opinará que se trata de uma imensa punhalada em décadas e décadas de criação e ética rock n' roll onde o fogo do momento se completa com o nervo, intensidade e algum improviso. Uma tragédia afinal feliz pois só assim se pode assegurar a chama que contém "The Fine Art Of Bleeding + Chicken Scratch Boogie", um disco naturalmente parido com o esforço extra de quem o quer mostrar ao mundo.

Esta edição especial reúne não só o álbum propriamente dito como também o EP que o antecedeu. Uma versão

dois em um

, perfeitamente funcional e generosa, que apresenta da melhor forma a nova empreitada de Nick Nicotine (baqueta de Nicotine's Orchestra/The Act Up's/ Bro-X e tantos outros) e de Diogo Augusto e Samuel Silva (Sonic Reverends e Saguaros). Gente mais que habituada a esta má vida e nem por isso interessada em abrandar por um segundo que seja. Pela frescura e carácter de urgência que evocam, até soam a uma banda debutante, e talvez esse recomeço constante (em projectos diferentes e infinitas colaborações) seja mesmo o segredo para uma constante, mas igualmente consistente, surpresa criativa.

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Com uma atitude

straight from the old blues

e o típico frenesim do garage rock, caminham ombro a ombro, por 18 faixas sem recurso a qualquer tipo de truque ou anacronismo a sabotar o terreno. Canções que surgem em 2014 e que no entanto poderiam ter saído da arca em 1994. Ou, quem sabe, daqui a mais uma década. Intemporal como convém, electrizante como apenas pode ser. Ainda que boa parte do repertório enverede por uma abordagem directa, bem esgalhada de guitarras em chicote e bateria em ricochete, ressalta também uma ligeira vontade de ir além do efeito "bota fogo". Bom exemplo disso é a semi-balada de serviço "You Don't Belong To Me", a mais bonita de 2014 para já. Para a antologia de ataque ficam "Goddamn", "Wild Dog" ou "Bring It Home", onde nem faltam os coros punk espertigados à saída do pub.

Paixão e suor passam, irremediavelmente, por aqui. Poderíamos afirmar tratar-se de mais uma pedrada certeira no rock (digno desse nome) nacional, mas estaríamos a reduzir o campeonato que merecem. Reza a justiça divina que se uns merecem o Céu, outros merecerão o Inferno; os The Jack Shits merecem tão simplesmente a terra que pisam. Só assim, nós, reles humanos ainda meio vivos, conseguimos acompanhar-lhes o passo.