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Desporto

Em campo era o Coluna quem mandava

Vamos ter saudades do Sr. Coluna.

Antes de Eusébio surgir para ocupar o terceiro lugar da Santíssima Trindade da cultura popular portuguesa (com Amália e Nossa Senhora de Fátima) e do futebol mundial (com Pelé e Di Stéfano), já o Benfica começara a lançar as bases para o sucesso que viria a ter na década de 60. Contudo, em 1954, nada faria prever que a contratação de um jovem avançado africano esconderia, na verdade, o recrutamento de um atleta sobre-humano, um líder nato mas sereno, capaz de segurar o barco durante a era de ouro do clube. Um mito maior do que a circunstância.

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“Varela não atava as chuteiras com cordões, mas com as veias”. A frase é habitualmente atribuída ao brasileiro Nelson Rodrigues e refere-se a Obdulio Varela, o médio uruguaio que levou a sua equipa a cometer o maior atentado terrorista do pós-II Guerra: vencer o Brasil na final da “Copa”, em pleno Maracanã. Desse jogo, pouco sobra que se veja. Há muito tempo de vídeo da multidão arrebatada, alguns momentos casuais do jogo e, claro, os golos. Entre os três, o mais marcante é o da vitória dos uruguaios, um remate frouxo de um ângulo quase nulo, que, por artes do Capeta, conseguiu mesmo entrar. No entanto, o verdadeiro tesouro perdido foi o jogo de Varela — o chamado jogo dentro do próprio jogo. Seria um prazer poder ver hoje Varela ao pormenor: o olhar sereno sob a turba de brasileiros loucos, os confrontos físicos intensos, os esgares de dor e o suor a descer pela cara, as movimentações em campo, o general a vociferar ordens aos outros dez companheiros e a vingar a batalha das Termópilas. Em meados da década de 60, alguém se lembrou de, durante um jogo do Manchester United, focar uma câmara num só jogador durante os 90 minutos. O jogador era

George Best

. Mais tarde,

Zidane recebeu o mesmo tratamento

. Mário Coluna também merecia o seu próprio filme.

Sobre Coluna, coincidem os relatos no essencial: que era a alma da equipa, que era o motor do ataque e um esteio na defesa. Se Eusébio era o terror das defesas, Coluna era a autoridade em campo. Na nossa memória colectiva da selecção portuguesa de 1966, mais rapidamente encontramos golos do Pantera, arrancadas fulminantes de Simões ou José Augusto, Hilário a limpar a zona ou Morais a distribuir paulada em Pelé. A esse crivo de “melhores momentos” facilmente escapam detalhes que, na verdade, separam os deuses dos jogadores terrenos. Muitos dos aspectos que definem jogadores desta casta só podem ser entendidos directamente a partir da bancada, que é a posição ideal para tirar as medidas reais a um jogador.

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Há jogadores que dividem uma equipa em duas partes: uma que deve ganhar bolas e entregar-lhas; e outra que deve esperar que ele, dentro daquela redoma magnética intocável, decida exactamente quem vai ficar com ela e o que é que, infalivelmente, os outros devem fazer em relação a isso. Coluna era desses. E quando se achegava à frente, não se coibia de rematar. Em ambas as finais europeias ganhas pelo Benfica, Coluna marcou. Numa delas, contra o Barcelona, o golo surge de um remate imparável à porta da grande área, já após uma jogada em que perdera os sentidos e que foi, aliás, uma dessas raras ocasiões em que os outros jogadores puderam olhá-lo de cima para baixo.

Numa altura em que os esquemas tácticos estavam um pouco partidos entre os quatro da defesa e os quatro ou três do ataque, mais importante era a função de um médio com estas características. Jaime Graça, seu parceiro no meio-campo da selecção de 66, conta como foi: “Era ele que conduzia a forma de nós ocuparmos os espaços no campo. ‘Vai mais à frente, miúdo’, ou ‘Vem mais atrás’. Ele levava o jogo todo a dar indicações.” Consta que até o treinador Otto Glória dizia aos outros jogadores que, em campo, quem mandava era o Coluna. A âncora de uma equipa ganhadora não é a melhor posição para ganhar Bolas de Ouro (

Matthäus

, Masopust ou Beckenbauer são excepções felizes), mas ainda é uma das maiores razões que me levam ao estádio ao domingo à tarde.

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O poder de Coluna não era meramente simbólico. Afinal, no balneário ele era o Sr. Coluna. Qualquer história sobre o relacionamento dos colegas de equipa com ele comprova o respeito — mais do que isso, a deferência — no trato com Coluna. O facto que melhor ilustra o poder patriarcal de Coluna sobre toda a equipa é essa curiosidade que Eusébio não se cansava de contar: no início dos anos 60, o Pantera estava prestes a tornar-se numa vedeta do futebol europeu, mas era ainda o Sr. Coluna quem geria o seu salário e lhe “cedia” uma semanada. Eusébio podia ser um génio em potência, mas o Sr. Coluna já andava naquilo há mais anos e, para além disso, já tinha lutado boxe, já tinha jogado basquetebol e já tinha estabelecido o recorde moçambicano no salto em altura. Respeitinho. António Simões

diz que nem ao fim de décadas ganhou coragem para o tratar de um modo diferente

. “Nunca consegui tratar o Mário [Coluna] por tu, depois de ‘senhor’ refugiei-me a tratá-lo pelo nome. Mas o Mário nunca mudou, chamou-me sempre ‘miúdo’”.

Ainda assim, o poder de Coluna sobre a equipa e sobre o clube não foi mais além. Por alturas da morte de Eusébio,

um artigo no Público

 recordava o papel do africano na sociedade portuguesa: “o negro era quase sempre ridicularizado com evidente crueldade, em livros, imagens, campanhas publicitárias e anedotas.” Depois, com a guerra colonial, o africano seria “o inimigo, o ‘turra’”. A ascensão de Eusébio, ao invés de provocar um sobressalto na sociedade portuguesa (isto é, se o sucesso de Eusébio chocasse tanto como a vitória de Jesse Owens perante Hitler), serviu para alimentar a teoria bacoca do lusotropicalismo. Uma vez que o regime português não era ostensivamente racista, o colonialismo português era disfarçado como uma espécie de pedagogia da civilidade aos povos africanos, esses bárbaros. Hilário, também moçambicano e jogador do Sporting,

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em entrevista ao sociólogo Nuno Domingos

, revelava o que lhe diziam as pessoas do seu bairro quando assinou pela filial de Lourenço Marques (Maputo) do clube de Portugal: “Assinaste contrato com esses racistas?”

A necessidade de maquilhar o colonialismo português abriu as portas aos negros no desporto português — para os prender nele. Eusébio bem tentou ir para o Inter de Milão, mas o regime não deixou acabar a festa do golo. Coluna ficou igualmente tentado pelas propostas do Vasco da Gama e do Flamengo, mas o seu “amigo Salazar” (a expressão é sua) nunca o permitiria. Foi já depois da morte do ditador que o Sr. Coluna saiu do Benfica. E foi o Olympique de Lyon que teve a sorte de assistir aos últimos momentos da carreira do

Monstro Sagrado

, um homem de apelido muito eloquente.