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Como negro, o que aprendi ao viajar pelos lugares mais racistas dos EUA

Encontrei pessoas que acreditam que os negros ainda deveriam ser escravos e que a supremacia branca é a saída para atual crise que vive o país.
Wilbert, numa encenação da Guerra Civil Americana.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

Nos últimos meses, me enfiei num Ford Fleetwood velho com meus amigos Abdullah Saeed e Martinade Alba para numa vagem para o VICELAND, o VICE Does America. A ideia dos produtores era ter um negro, um muçulmano e uma imigrante hispânica dirigindo de Los Angeles a Washington antes das eleições presidenciais de 2016, para descobrir em que direção o país estava indo.

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Éramos o grupo heterogêneo perfeito para realizar esse programa de viagem de temática política, considerando que nossas biografias tocavam as três das questões mais polêmicas dos EUA hoje. Martina, que deu muito duro para conseguir ganhar a vida neste país, podia falar sobre o sistema de imigração disfuncional dos EUA. Abdullah, um punk paquistanês-americano que curtemaconha, representava a verdadeira diversidade do islã num momento em que os muçulmanos frequentemente são vistos com medo e desconfiança. E eu trazia a voz dos homens negros americanos, numa época em que o país está começando a se perguntar se a vida dos jovens negros realmente importa.

Na época, como agora, eu sentia que os EUA está se despedaçando. O mundo está esquentando, literal e figurativamente. Os protestos estão explodindo por toda parte diante das injustiças raciais contínuas e ganhando impulso, mas acabaram desencadeando uma militarização da polícia e a retórica xenofóbica de Donald Trump. E a era Obama, com todas as suas promessas iniciais e realidades tristes, está chegando ao fim, enquanto cresce um sentimento intenso de incerteza sobre o futuro.

Abdullah, Martina e Wilbert vestidos para um rodeio mexicano.

Enquanto saíamos do QG da VICE em Los Angeles, o clima me parecia sinistro. Não sabíamos onde estávamos nos metendo. Martina, Adbullah e eu moramos no Brooklyn nova-iorquino, uma bolha jovem, próspera e progressista se comparada ao resto do país. Aumentando essa sensação de incerteza, nossos produtores esconderam deliberadamente os lugares para onde estávamos indo e as pessoas que íamos conhecer. A gente não sabia o que esperar.

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Depois de passar 30 dias dirigindo aquele carro sufocante por vários estados e conhecendo dezenas de personagens extremos de todos os caminhos, tenho que dizer que os EUA não é menos misterioso para mim hoje do que quando começamos essa jornada. Mas ver meu país de perto me deixou constantemente perplexo. Não tenho palavras para descrever o que senti vendo o sol surgir por cima das areias vermelhas de Monument Valley ou como é passar a mão nas folhas das árvores do mangue enquanto navegávamos por um bayou preguiçoso na Louisiana.

Também fiquei tocado com as comunidades unidas que encontrei, que conseguiram abraçar os EUA mantendo seu próprio modo de vida. Conheci mexicanos-americanos no Texas que realizam um rodeio chamado charreada, um evento metade Wyatt Earp metade Emilliano Zapata. Conheci um clube de motoqueiros lakota que abraçam a história ilustre de sua tribo e o estilo de vida fora da lei dos "Um Por Cento". Essas pessoas têm histórias que só podem ser contadas neste país.

LEIA: "Qual o país mais racista da Europa?"

Infelizmente, também fiquei desencantado com o ódio racial que vi de costa a costa. Como um batismo de fogo, uma das nossas primeiras paradas foi um set pornô de filmes inter-raciais temáticos de corno, onde vi o antigo estereótipo do homem negro como uma besta selvagem transformado em entretenimento XXX. Enquanto eu assistia a uma atriz branca e dois irmãos bombados lambuzados de óleo mandando ver, o diretor branco me disse que o público-alvo desses filmes são basicamente sulistas brancos, uma demografia que exige o máximo de degradação e estereótipos sexuais possível. Tem uma certa lógica terrível nisso tudo: você só acha esse tipo de cena sexy se tem medo ou repulsa por homens negros, se os vê não como pessoas, mas como algum tipo de tabu indomável.

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Foi fascinante para mim ver como esse tipo de pornografia se baseia na dinâmica de raças da era da escravidão. O homem negro como um agressor sexual contra uma mulher branca, estereótipo que era frequentemente usado como a principal desculpa para subjugar os negros, também obscurece a história do estupro na escravidão americana, uma prática que era rotina no país naquela época. Como nos distanciamos tanto da verdade nas nossas ideias uns sobre os outros?

Pensei muito sobre a história real e imaginada da escravidão na minha viagem pelo país. Muitas e muitas vezes, cruzei com abordagens distorcidas de sua prática e ramificações, o que me levou a pensar que mesmo 150 anos depois da Guerra Civil Americana, a raiz do experimento americano primordial continua aqui. O que mais me perturbou foi o tipo de nostalgia cheia de ódio que algumas pessoas ainda têm. Elas fetichizam eras passadas que foram definidas pela brutalidade e subjugação dos meus ancestrais.

Lubrificantes no set de um filme pornô.

Nossa parada seguinte foi em Nevada, na casa de Cliven Bundy, um rancheiro rico que confronta o governo federal há décadas pelo uso de terras que são propriedade federal. Bundy virou notícia nacional em 2014, quando teve um impasse armado com o governo por causa das terras, caso em que os federais acabaram recuando. O caso o transformou numa celebridade nacional, especialmente para aqueles envolvidos no movimento de "liberdade", tornando todas as suas opiniões, sobre estado de direito até as relações de raça nos EUA, dignas de notícia. Foi nessa época que Bundy disse que achava que os negros estavam melhor na época da escravidão, porque não dependiam do governo para fornecer pensões.

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Quando entrei em sua casa rústica de madeira, o idoso frágil foi bastante simpático. Abdullah, Martina e eu nos sentamos no grande sofá da sala dele enquanto a esposa de Bundy trazia um prato com pedaços de melancia da cozinha. Claro, não comi nenhum. Mas tentei fazer ele entrar numa conversa sobre o que queria dizer com seus comentários infames. Apesar de ter se desculpado comigo pessoalmente pelo que disse no passado, Bundy manteve a ideia de que as coisas seriam melhores num país onde os homens negros fossem obrigados a trabalhar, nunca fossem compensados pelo trabalho e não tivessem direito à dignidade e participação na nossa democracia.

Receber mesmo que uma desculpa bamba de um cara que não recuou diante de agentes federais armados devia ter me feito me sentir melhor. Em vez disso, me senti mal ao ir embora do rancho dele, porque sabia que ele era apenas o rosto de um movimento muito maior. Milhares, se não milhões de pessoas dessa nação compartilham as visões dele, e me irrita pensar como este país já caótico seria se eles conseguirem o que querem, possivelmente através da eleição de alguém como Donald Trump.

Wilbert, Abdullah e Martina no rancho de Bundy, aprendendo a atirar.

Por mais estranha que minha interação com Bundy tenha sido, a maior reverência ao Sul de antes da guerra que encontrei na minha viagem foi em Jacksonville, Alabama. No final da nossa jornada, os produtores nos largaram no meio de uma encenação da Guerra Civil Americana, com a promessa de que os participantes eram apenas fãs de história. Enquanto marchávamos pela colina onde as batalhas deviam acontecer, vi todos os marcos do antigo sul, como várias bandeiras dos confederados tremulando ao vento.

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"pessoas estão desesperadas para legitimar a horrível história americana de supremacia branca. Fiquei chocado ao ver essas pessoas apontando para esse passado como algo que deveria retornar."

Eu suspeitava que as coisas pudessem ficar feias, mas tentei usar minha melhor atitude. Vesti uma roupa de lã quente dos infernos para parecer um soldado da União, e marchei com formações militares, atirando balas de festim com os cosplayers confederados. Mas sempre que havia uma pausa na ação, eu ouvia as pessoas dizendo todo tipo de merda — que a escravidão não era ruim para os negros, que os negros escravizados não sofriam violência, que os negros escravizados amavam os confederados e lutaram pelo sul no exército "integrado"… Ouvindo essa última parte, eu sabia que a gente tinha que sair dali. Os produtores queriam que a gente passasse a noite no acampamento de encenação, mas não tinha como eu dormir no mesmo lugar com pessoas que realmente acreditam que a massa de negros escravizados apoiava por vontade própria suas correntes. A ideia era ainda mais repreensível do que o que eu tinha ouvido de Bundy.

Declarações assim faziam parecer que essas pessoas estão desesperadas para legitimar a horrível história americana de supremacia branca. Fiquei chocado ao ver essas pessoas apontando para esse passado como algo a aspirar, algo que deveria retornar. Elas gastam milhares de dólares em fantasias e equipamento para chegar o mais perto possível de realmente voltar no tempo. Era demais para mim.

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LEIA: "Um dia com os racistas da Carolina do Sul"

De novo e de novo na nossa viagem, vi o quanto esses americanos brancos têm saudades de um passado distante — um tempo que, na maioria das vezes, eles parecem entender muito mal. Foi só depois dessa viagem que percebi que o abismo entre essas fantasias nostálgicas e o momento moderno dos EUA foi o que tornou o país um lugar tão feio e cheio de raiva hoje, especialmente nas campanhas políticas.

Lembrei de uma citação do romance clássico de Don DeLillo White Noise: "Nostalgia é um produto da insatisfação e da raiva. É um ajuste de queixas entre o presente e o passado. Quanto mais poderosa é a nostalgia, mais perto estamos da violência". Também me lembrei de Beenie Man, que disse basicamente a mesma coisa de forma resumida: "Quando tu vives no passado, tu perdes".

"Eu não queria ser jovem e negro nos EUA num tempo que não fosse o agora, porque hoje pelo menos tenho chance de lutar pela sobrevivência."

Acho que nunca vou realmente entender a nostalgia cheia de ódio de gente como Cliven Bundy e os atores da encenação da Guerra Civil. Como um homem negro nos EUA, há muitas eras passadas em que penso com carinho, exceto talvez pelo gangsta rap do começo dos anos 90. O slogan de Trump "Make America Great Again" ["faça a américa boa de novo"] não faz sentido para mim. Quando a América foi boa para pessoas como eu? Não durante a escravidão, não durante a era de Jim Crow, não no auge da guerra às drogas… Eu não queria ser jovem e negro nos EUA num tempo que não fosse o agora, porque hoje pelo menos tenho chance de lutar pela sobrevivência.

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Wilbert na Convenção Nacional do Partido Republicano. Foto por Jason Bergman.

A maioria das formas de nostalgia são inofensivas — camisas de flanela, os cabelos ficando mais altos de novo. Mas o tipo de nostalgia branca que alimentou a ascensão de Trump está intrinsecamente ligada à supremacia racial que imperava na construção da nação norte-americana. Essa nostalgia está impregnada com a ideia de que os negros são inferiores, que os brancos precisam ser defendidos das hordas caóticas de gente de cor.

Senti exatamente isso quando cobri a Convenção Nacional do Partido Republicano para a VICE em julho último na minha cidade natal, Cleveland. Durante o discurso de Trump, toda vez que ele apelava para "a lei e a ordem", a multidão aplaudia com fervor. O medo, a raiva e a esperança eram tangíveis entre os delegados e simpatizantes do condidato, que ficavam ensandecidos com a retórica de fogo e enxofre de Trump. Era como estar dentro de um desses comerciais farmacêuticos que passam de madrugada, que inventaram uma nova condição médica desastrosa: eles te vendem a doença. Mas dessa vez, o problema não é a "síndrome das pernas inquietas"; é o bicho-papão negro deste país e Trump sozinho é a solução.

Quando gente como Trump diz querer trazer de volta "a lei e a ordem", eles estão falando sobre a ordem de uma era passada, em que a dominância do homem branco na sociedade era um fato inquestionável. Se você duvida, é só falar com as pessoas que o apoiam, ou ouvir os gritos e os refrõesem seus comícios. Trump tem um histórico de práticas de negócio discriminatórias, mas não importa o que se passa na cabeça dele — sua campanha encorajou os racistas americanos.

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O apoio de Trump é maior entre homens brancos sem educação, com perspectivas de emprego limitadas e numa posição cada vez mais marginalizada na sociedade. É muito mais fácil, imagino, para eles culpar o espectro de homens negros fora da lei, terroristas muçulmanos e estupradores imigrantes mexicanos por seus problemas, que lidar com as instituições públicas e privadas que falharam e prejudicaram os norte-americanos de todas as raças. Na verdade, temos inimigos em comum. Brancos também são vítimas de violência policial; brancos também são vítimas da guerra às drogas; brancos também são vítimas de um sistema financeiro não-regulado. Mas quando esses brancos marginalizados têm seu dinheiro, oportunidades e esperança arrancados deles, às vezes eles se confortam com uma visão distorcida de superioridade e da cultura ultrapassada que dizem defender. É por isso que eles bandeiam para o lado de Trump. E é o que o empresário está oferecendo, um jeito de se agarrar a esse sentimento por um pouco mais de tempo.

Wilbert, Martina e Abdullah no final de sua viagem.

A boa notícia é que essa nostalgia de ódio está perdendo e sempre estará destinada a perder. Como James Baldwin disse uma vez: "Aceitar seu passado — sua história — não é o mesmo que se afogar nela. Um passado inventado nunca poderá ser usado. Ele racha e desmorona sob as pressões da vida como barro na estação da seca".

No momento, Trump está caindo nas pesquisas em grande parte graças a pessoas que estão percebendo que o ódio da supremacia branca cria um ambiente tóxico para todos, envenenando tudo que estiver ligado a ele, tornando todos nós monstros.

Em vez de tentar recriar uma visão míope do passado, precisamos pensar em como podemos fazer um futuro melhor. Pensei muito nesse sentimento quando Abdullah, Martina e eu finalmente chegamos ao nosso destino final em Washington, DC. Chegamos à cidade de madrugada, quando as ruas estavam completamente vazias, e dirigimos direto até a Pennsylvania Avenue 1600 para ver a Casa Branca. Paramos em frente aos portões e olhamos para o prédio que era a fonte de inspiração e decepção para diferentes pessoas que encontramos na nossa viagem pelo país.

Foi muito poderoso saber que um negro estava naquele centro do poder, dormindo entre paredes que — como Michelle Obama apontou na Convenção Nacional do Partido Democrata — foram construídas por escravos negros. Também foi triste perceber que não importa como eu me sinto tendo um presidente negro, sua presença na Casa Branca não curou o câncer do ódio e do racismo no país. Isso acabou ajudando a trazer mais desse ódio para a superfície, como a chuva de verão que invoca todos os vermes da terra para o concreto. Mas eu sabia, independentemente dos meus sentimentos mistos sobre seus triunfos e fracassos, que a última coisa que quero é que voltemos atrás. Os EUA não é bom, os EUA nunca foi bom, mas é o que temos e precisamos continuar lutando para fazer um país melhor.

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Tradução: Marina Schnoor

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