Fotos raras do ativismo negro norte-americano nos anos 60
Todas as fotos cortesia de Getty Publication.

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Fotos raras do ativismo negro norte-americano nos anos 60

O livro 'North of Dixie: Civil Rights Photography Beyond the South' reúne imagens do movimento negro por direitos civis num EUA segregado que ia muito além do Sul do país.

Jack Delano, New Shawboro, Carolina do Norte, 1940. Uma família da Flórida a caminho de Nova Jersey em busca de trabalho e melhores oportunidades. Biblioteca do Congresso Norte Americano, Divisão de Impressão e Fotografias.

Todas as fotos cortesia de Getty Publication.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

Em se tratando da história dos protestos nos EUA pelos direitos civis nos anos 60, os norte-americanos estão familiarizados com documentos de esforços ativistas como a marcha de 1965 em Selma, imagens icônicas de estudantes negros sendo atacados por cães ou enfrentando jatos de mangueiras de incêndio em Birmingham, ou transcrições do discurso de "Boicote ao Ônibus" de Martin Luther King em Montgomery, feito alguns dias depois que Rosa Park se recusou a dar seu lugar num ônibus segregado. Mas fora esses momentos importantes no Sul do país, que em grande parte informaram nosso entendimento coletivo do ativismo negro nos anos 60, a história visual de esforços de resistência similares em áreas como Filadélfia, Cleveland, Los Angeles e Seattle foi praticamente esquecida.

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Um novo livro intitulado North of Dixie: Civil Rights Photography Beyond South busca destacar esses momentos esquecidos do movimento negro por direitos civis em áreas do país que eram aparentemente melhores para os afro-americanos, e também mostrar ações de base menos conhecidas que lutaram contra a discriminação — eventos locais que a mídia mainstream (e subsequentemente os livros de história) geralmente ignoravam. Na última década, o autor e historiador Mark Speltz vem pesquisando a fotografia do movimento dos direitos civis no Norte dos EUA, desenterrando um arquivo colossal que de outra maneira seria invisível hoje.

Leia também: "Como negro, o que aprendi ao viajar pelos lugares mais racistas dos EUA"

"Logo ficou claro que o ativismo local em lugares como o Norte, o Oeste e além nos EUA estava ausente na maneira como caracterizamos, ensinamos e lembramos da era", disse Speltz. "A falta de imagens em circulação comum me convenceu que a história do movimento ao norte e além de Dixie ainda precisava ser contada."

O livro apresenta 100 imagens de fotógrafos como Bob Aldeman, Gordon Parkes e outros envolvidos na luta contra a opressão, e algumas das fotos são inéditas. A obra também apresenta textos explorando assuntos como as táticas de vigilância da polícia contra os dissidentes negros, o que tornava fotografia em filme uma arma em alguns casos. A VICE falou com Speltz sobre North of Dixie para saber mais sobre como "a fotografia tornou visível a bravura, dedicação e agência dos americanos comuns de costa a costa".

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© Bob Adelman / Magnum Photos. Nova Jersey, 1962. Um menino fazendo piquete numa escola local, uma das muitas crianças norte-americanas que teriam um papel crítico na luta pela justiça racial durante a era dos direitos civis.

VICE: Você pode falar um pouco sobre sua origem profissional e como você se envolveu com fotografia, além das questões de direitos civis e de raça?
Mark Speltz: Como historiador público há 20 anos, tive sorte de poder trabalhar com livros, exposições e projetos de história comunitária de todos os tipos. Identificar material visual e objetos que comunicam histórias fascinantes, mas menos conhecidas, tem sido um tema central da minha experiência profissional.

Minha fascinação com as imagens da era dos direitos civis deu uma guinada acadêmica dez anos atrás quando me formei na Universidade de Milwaukee, Wisconsin, onde comecei a explorar a história visual da longa luta da cidade pelos direitos civis. Como milhões de norte-americanos nascidos depois dos anos 60, aprendi sobre o movimento dos direitos civis com imagens bem conhecidas. Eu era fascinado com as imagens impactantes de Little Rock, Arkansas, Birmingham, Alabama e outras, mas não sabia que essas imagens só contam uma parte da história.

Apesar de ter crescido no Meio Oeste dos EUA, nunca tinha ouvido falar, ou visto fotos, da luta além do Sul. Enquanto eu lia mais sobre campanhas em Milwaukee, Chicago, Detroit, Seattle e além, as histórias e imagens abriram um mundo novo para mim. A fotografia tornou visível a bravura, dedicação e atitude dos norte-americanos comuns de costa a costa.

© Leonard Freed / Magnum Photos. Brooklyn, Nova York, 1963. Manifestantes com cartazes bloqueiam o tráfego durante um protesto.

O livro fala sobre como a mídia e o público ignoraram as campanhas locais a favor de imagens mais "chocantes". Por que foi assim, e que efeito você acha que esse apagamento teve em como entendemos a história dos direitos civis?
Falando de modo geral, a imprensa mainstream das comunidades do Norte dos EUA preferiam enterrar a cobertura das lutas locais pelos direitos civis. Era mais simples ignorar e minimizar a desigualdade no nosso quintal e apontar o dedo para o Sul aparentemente mais atrasado, onde muita gente queria acreditar que estavam as questões raciais dos EUA. Contar com imagens chocantes vindas da luta no Sul ilustra bem à preferência por essas narrativas.

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Enquanto as primeiras histórias do movimento eram escritas, a maioria dos ativistas e historiadores se focaram nas campanhas, políticos e líderes mais conhecidos do Sul, deixando campanhas menores esquecidas. Décadas de pesquisa e projetos de história pública de ativistas, historiadores locais e acadêmicos dos direitos civis iluminaram essas campanhas críticas organizadas por gente comum de todo o país. Essas pesquisas visam reverter o apagamento. Além disso, por muito tempo, as fotos mais icônicas do movimento pelos direitos civis enfatizavam uma luta muito sulista. Fotos de manifestantes pacíficos sendo brutalmente reprimidos, atacados por cães policiais ou encarando violência racista, são sempre reimpressas nos livros didáticos. A visão é ainda mais circunscrita ao destacar os líderes homens mais carismáticos, atores políticos e conquistas legislativas. Esse foco antigo, além da ênfase comemorativa da não-violência superando o racismo sulista, fez lutas críticas em outras partes, táticas alternativas e locais menos dignos de nota praticamente invisíveis. Em contraste, a ampla variedade de fotos em North of Dixie captura a amplitude do movimento, as diversas táticas e o verdadeiro alcance das questões raciais nos EUA.

Foto por Charles Brittin. Los Angeles, Califórnia, 1963. Ativistas numa manifestação contra a discriminação imobiliária, enquanto membros uniformizados do Partido Nazista contraprotestam no fundo com cartazes anti-integração e racistas.

Você pode falar sobre o processo de pesquisa para o texto, assim como onde você obteve essas imagens? Sua pesquisa te levou para lugares e fontes únicas?
Sou um pesquisador muito persistente e peneiro a internet em busca de ideias, pistas e contatos que ajudem coleções, fotógrafos e imagens. Além de museus e arquivos, abordei jornais, revistas e fotógrafos que trabalharam no Norte e no Sul dos EUA, como Bob Aldelman, Robert Abbott Sengstacke, Doris Derby e Bob Fitch. Fiz viagens de pesquisa, enviei muitas cartas e centenas de e-mails, e acabei incluindo trabalhos de mais de 50 fotógrafos que eram fotojornalistas, artistas, ativistas e amadores. Acho que a variedade de perspectivas, sem mencionar as 25 cidades inclusas, me ajudam a fornecer uma visão mais ampla da luta em todo o país.

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Qual foi sua abordagem de curadoria para selecionar as 100 fotos que aparecem no livro? Havia material que você queria incluir mas não pode encaixar na edição final?
Ao reformular a narrativa visual ou as imagens mais icônicas, espero tornar visíveis histórias menos conhecidas, mas igualmente inspiradoras, de LA ao Harlem, de costa a costa. Claro, houve incontáveis campanhas contra várias formas de discriminação no Norte e Oeste dos EUA, então cobrir ou mesmo mencionar cada uma seria impossível. Meu objetivo era ilustrar essas lutas menos conhecidas com imagens que encorajem os leitores a pesquisar sobre elas. Algumas dessas imagens são raras e nunca foram expostas ou reimpressas. Outras apareceram em primeiras páginas ou na revista Jet mas caíram no esquecimento.

O processo de editar e remover fotos foi complexo, doloroso e ocasionalmente independente da minha vontade. Não consegui entrar em contato com alguns fotógrafos que fizeram fotos importantes, não achei a imagem certa ou imagens que eu esperava usar custavam muito caro. Mas eu não poderia ficar mais satisfeito com a seleção final e a ordem dos trabalhos. O livro deixa claro a complexidade do movimento em toda a nação. Ainda assim, honestamente, há tantas outras histórias e trabalhos fortes que você poderia produzir mais uma dúzia de livros assim e mal arranhar a superfície.

Foto por Gordon Parks, Chicago, Ilinóis, 1963. Malcom X mostrando o jornal da Nação do Islã. Cortesia © The Gordon Parks Foundation.

Você tem alguma história ou anedota interessante sobre adquirir fotos inéditas que aparecem no livro?
Localizar as fotos de vigilância para o quarto capítulo foi uma experiência fascinante. Esse tipo de foto é incrivelmente rara, já que tipicamente elas eram escondidas do público, protegidas por ordens judiciais ou foram destruídas. Mas algumas bem interessantes apareceram em Seattle, Chicago e Nova York.

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Tenho uma anedota que dá uma ideia da quantidade de fotos de vigilância que foram tiradas nessa era: fiz a requisição de algumas datas ou protestos específicos dos Arquivos Municipais de Nova York, que recentemente digitalizou uma grande coleção de fotografias policiais. Uma nota num envelope de negativos me deixou chocado. Um único fotógrafo do NYPD [o departamento de polícia de Nova York] fotografou seis rolos de filme num protesto dos Panteras Negras 21 em 1969 em Manhattan. Houve um aumento dramático de fotografia de vigilância durante a década de dissidência negra em cidades norte-americanas levou a centenas de milhares de fotos da polícia, do FBI e outras agências da lei. Poucas delas estão disponíveis para os pesquisadores.

Foto por Charles Brittin via Getty Research Institute. Los Angeles, 10 de março de 1965. Manifestantes sendo fisicamente removidos durante um protesto contra a violência em Selma.

O que mais você descobriu sobre a vigilância na era dos direitos civis, e o paradoxo das câmeras ajudando e prejudicando o movimento?
Durante minha pesquisa, notei como celebridades como Marlon Branco ou Harry Belafonte atraíam atenção adicional da imprensa para campanhas, marchas e comícios. E os ativistas com frequência apontavam como a presença da mídia e das câmeras servia como proteção, mesmo que nem sempre fosse o caso. Mas as câmeras várias vezes eram voltadas contra os ativistas, como meio de vigilância e intimidação. Os departamentos da lei, locais e federais, juntaram arquivos imensos de fotografia de vigilância e perfis de ativistas locais, grupos de direitos civis e de Panteras Negras, além de outras organizações por todo o país.

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Cinquenta anos depois, o papel das imagens, tanto fotos como vídeos, continua a ser crítico na luta por direitos e justiça. Imagens gravadas com celulares têm chocado os norte-americanos e tornaram visíveis a violência e o mau comportamento policial que de outra maneira passariam despercebidos. Os ativistas usaram novas tecnologias e a expansão das redes sociais e aplicativos para amplificar preocupações locais, como parte de uma discussão nacional em evolução sobre raça, policiamento e justiça nos EUA. De maneira similar, tecnologias emergentes ajudam especialistas da lei a conduzir vigilância sobre os ativistas, com rastreamento de celular, sinal e meios de monitoramento só agora sendo melhor entendidos. Sem dúvida as novas tecnologias têm expandido o alcance, o poder e a capacidade de vigilância das agências monitorando esses ativistas.

Fotógrafo desconhecido via Biblioteca do Congresso, Washington, DC. Folcroft, Pensilvânia, 30 de agosto de 1963. Uma multidão gritando obscenidades e ameaças para uma jovem família negra que estava se mudando para um bairro só para brancos nos arredores da Filadélfia, dois dias antes da Marcha por Empregos e Liberdade em Washington. A família passou a primeira noite no porão da casa e, depois de dois anos de ataques, se mudou para outro bairro.

Por que você acha que agora é a hora certa para mostrar essas fotos e publicar esse livro?
Acho que qualquer hora é uma boa hora para um livro como North of Dixie. Essas histórias precisam ser desenterradas e compartilhadas. Fotos proporcionam um ponto de entrada para os leitores explorarem e entenderem melhor o passado. Mas ficou dolorosamente claro que o livro é mais relevante agora do que quando comecei a pesquisa. As histórias e fotografias nele fornecem mais contexto para as questões históricas e preocupações com os direitos civis. Mas talvez mais importante, as imagens vão além dos líderes mais celebrados dos direitos civis e iluminam e prestam homenagem ao trabalho de base inspirador de jovens norte-americanos comuns — homens, mulheres e crianças. Nenhum desses indivíduos ficou esperando que a mudança chegasse, que o Dr. King trouxesse os direitos civis para suas comunidades no Norte.

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Foto por John Vachon via Biblioteca do Congresso, Divisão de Impressões e Fotografias, Coleção Fotográfica da revista LOOK. Filadélfia, Pensilvânia, 1965. A família Jackson admirando uma casa que ficava num bairro só para brancos.

Você espera que esse livro retifique a natureza problemática do apagamento histórico e preconceitos historiográficos?
North of Dixie com certeza vai tirar campanhas e lutas menos conhecidas das sombras. Não é por falta de material por aí; muitos historiadores estão explorando o movimento além do Sul há décadas. A cada ano, novos estudiosos desafiam suposições de longa data, revelam novos líderes, e colocam novas perguntas e teorias sobre o movimento mais importante e definidor da história norte-americana moderna. Acho que as imagens no meu livro fornecem um ponto de entrada para todo tipo de leitor, educador e norte-americano comum ver além do movimento no Sul pela primeira vez.

Você notou questões similares afetando a documentação de protestos negros no presente?
O que me preocupa na documentação dos protestos negros hoje é se um livro como esse será possível no futuro. Trabalhos incríveis de artistas e fotógrafos como Sheila Pree Bright e Devin Allen estão entrando para galerias e vão ajudar a definir o visual e o sentimento dos protestos da era Black Lives Matter, mas o que acontecerá com imagens importantes de celular, tuítes e postagens em redes sociais, que fornecem uma perspectiva em tempo real dos protestos se desenrolando nas ruas dos EUA?

Essa era a preocupação número um na minha mente quando abordei o conhecido ativista DeRay Mckesson, pedindo permissão para imprimir um de seus tuítes de agosto de 2014 sobre Ferguson, Missouri, depois da morte de Michale Brown. Esse veículo crítico de comunicação, e o registro histórico de mensagens e imagens, vai durar ou vai desaparecer e ser apagado? O tempo dirá, claro. Mas a existência de arquivos em St. Louis e Baltimore, trabalhando duro para preservar histórias e imagens digitais, me dá esperança de que uma pequena porcentagem desse material vai sobreviver.

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Nort of Dixie: Civil Rights Photography Beyond the South de Mark Speltz saiu pela Getty Publications. Encomende o livro aqui e veja mais fotos abaixo.

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Tradução: Marina Schnoor

Foto por Declan Haun via Museu de História de Chicago. Chicago, Ilinóis, 1966. Moradores jovens e velhos expressam seu desagrado com a aprovação da lei que impedia discriminação por parte de imobiliárias e proprietários.

Fotógrafo desconhecido via Arquivos Estaduais de Washington. Olympia, Washington, fevereiro de 1969. Membros armados do Partido dos Panteras Negras de Seattle nos degraus do capitólio, protestando contra uma proposta de lei que limitava a possibilidade de carregar armas de fogo de "maneira a manifestar a intenção de intimidar outros".

Foto por Declan Haun via Museu de História de Chicago. Chicago, Ilinóis, 1966. Uma mulher levanta o punho para demonstrar orgulho e determinação durante uma marcha contra a discriminação imobiliária nas ruas de Chicago.

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