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Música

Fui ver os Godspeed You! Black Emperor e afinal vi Deus

Tudo é melhor no Amplifest.

“Peço desculpa por tudo. A guitarra está estragada e, tal como ela, o governo de Portugal, a União Europeia e o governo do Canadá”. Foi com estas palavras do baterista Aidan Girt (o tipo de 1-Speed Bike), e sob uma enorme ovação, que os GY!BE encerraram o concerto e o festival Amplifest. Uma salva de palmas tão grande que fez esquecer todos os problemas técnicos que a banda canadiana sentiu ao longo da actuação. Uma salva de palmas quase tão grande quanto aquela que se ouviu quando Efrim Menuck inspirou com um pouco mais força, ou quando o mesmo Efrim abanou um pouco a cabeça. Bastaria isto para descrever o festival, até porque fui lá praticamente para ver os anarquistas canadianos, mas acabei por gostar de outras cenas. Mas vamos por partes.

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Na sexta-feira, havia Barn Owl no Passos Manuel, para alguns felizardos com reserva feita. Não sei se foi do gin, se da água tónica ou se a culpa residiu nas rodelas de pepino ingeridas directamente do solo sagrado da cidade invicta, mas aquilo que ouvi de Barn Owl soou-me bastante a Jibóia. Aliás, até os elementos dos naturais de São Francisco se assemelhavam em demasia ao Óscar e à Miró. Mais: bem junto ao palco estava alguma da malta pertencente à Coronado a curtir milhões e, no final do concerto, o Fua e o Fábio (FuFa), na companhia do Pedro Santos, estavam a passar discaria. Consta que não passaram The Smiths, mas não foi por falta de insistência, acreditem. Em suma: se leram que o concerto de 2011 dos mesmos Barn Owl tinha sido místico, esqueçam tudo — diz-se que isto foi uma experiência extra-sensorial. Claro que o misticismo, para além de bonito enquanto sensação, torna-se também uma expressão útil para descrever o que quer que seja. Há só um pequeno problema: o misticismo não cura ressacas e foi assim, com uma cara ainda mais assombrosa do que a do Seal, que enfrentei o primeiro dia a valer do Amplifest. Chegado ao Hard Club, era tempo de ver o senhor Ben Chasny a partir tudo na sala um. Num concerto exclusivamente para homens de pelo no peito e cerveja na mão, não houve tempo para paneleirices acústicas como na última passagem por Portugal, nem sequer uma miúda sexy como Elisa Ambrogio na outra guitarra para uma  “Shelter from the Ash”, como no Trips à Moda do Porto. É isso mesmo, quem esperava uma cena mais folky por parte da banda bem se lixou, até porque, convenhamos, o Amplikids era ali no corredor ao lado. Nesse espaço sim, funcionavam coisas para meninos. Isto não é uma montagem, embora pareça. Numa sala onde a bruma já se instalava — as máquinas carburavam a toda a força para o concerto de Bohren & Der Club of Gore —, era a guitarra de Ben Chasny que rompia o fumo com os riffs frescos e viciantes de Waswasa. Mas, se o concerto de Six Organs of Admittance teve início num passo mais apressado que o de Usain Bolt, o serviço seria finalizado de forma completamente distinta, com uma jam tão inebriante quanto interminável pelos desertos áridos do Velho Oeste. Curtia ter visto White Hills, mas o estômago ainda debilitado pela ausência de substâncias sólidas pedia aquilo que de melhor se pode oferecer a uma barriga carente. Quando entrei para ver Bohren & Der Club of Gore, pensei logo: “Pronto, fodi tudo, já estou todo cego!” Felizmente, estava enganado: o intenso nevoeiro fazia parte do espectáculo e o facto de não se conseguir ver ninguém no raio de três metros era consequência disso mesmo e não de um abuso de malte. Sabíamos que estava alguém em palco, porque os três músicos eram iluminados por pequenos candeeiros com uma luz ínfima, ainda assim suficiente para lhes reconhecer as feições. Apresentaram-se dizendo que vinham da West Gerrrrrmany, com um sotaque tão carregado que podia ter perfeitamente saído de um episódio do 'Allo 'Allo! Apesar de, em 2012, a possibilidade de ser gaseado por três tipos da Alemanha Ocidental numa qualquer sala ser infinitamente superior às hipóteses de o Sporting conquistar o quer que seja na época corrente, decidi manter-me firme na sala. Os verdadeiros fãs da banda parecem ter ficado absolutamente siderados com o concerto, já eu, que praticamente só ouvi o álbum inspirado na mãe do Cristano Ronaldo, fico a aguardar pela vinda dos Kilimanjaro Darkjazz Ensemble na próxima edição. Löbo e RA, os escolhidos para terminar o primeiro dia do festival, não desiludiram os resistentes que se juntavam na sala dois. O doom metal e o consequente soft banging serviram como apaziguadores de alma depois dos gigs mais puxados de Process of Guilt e Amenra. De salientar o quão perto a cabeça do Remédio passa dos sintetizadores enquanto abana a cabeça. Não só dos sintetizadores, mas também do MacBook Pro que, mesmo que não parta, ao ser de alumínio fica sempre com aquelas indesejáveis mossas (ou “moças”, se forem um daqueles vendedores da internet completamente iletrados que escrevem merdas como “pulgadas” — isto daria um outro texto). No domingo, Jozef Van Wissem tocava na Sé. Não cheguei a tempo de o ver, fruto de um mau timing no que toca à passagem do metro na Trindade, mas já vi por aí em fotos que a Sé tem bastante talha dourada. Do sujeito em si, que vi depois a passear-se no Hard Club, só posso dizer que tem imensa pinta. Logo, alguém com o cabelo grisalho-alourado, vestindo um casaco de cabedal num estilo completamente metal, apresentando-se sentado/para sentados, com um instrumento mágico como o alaúde na mão, só pode significar um ambiente especial. Diria até saído de um filme do Jim Jarmusch, mas isso seria cliché. Os Black Bombaim actuavam a seguir. Sendo a única pessoa em Portugal continental que ainda não os tinha visto tocar malhas do Titans ao vivo, era natural que a expectativa fosse enorme. Como já tinha visto o Pedro Sousa no Hard Club era, de certa forma, expectável que a melhor banda portuguesa da actualidade contasse com alguns dos elementos que abrilhantam o Titans. Trataram de o confirmar, no Facebook, durante a tarde do mesmo dia: Pedro Sousa no saxofone e Tiago Jónatas no theremin. Estão cada vez melhores e deram uma prova cabal no Hard Club: o Ricardo saca aqueles riffs demoníacos — ou divinais, se preferirem o uso da adjectivação maricas —  na guitarra, enquanto o Tojo, com a descontração habitual, faz fluir o ritmo no baixo. O Senra, bem, transpirava por todo o lado: dá para imaginar a pujança que estava a imprimir na bateria. Incansável era também Tiago Jónatas, entretido com toda a parafernália electrónica que, aliada à manipulação do theremin, criava toda uma textura de psicadelismo de suporte às cordas. Só se retirou momentaneamente para que Pedro Sousa, o outro convidado, desempenhasse o papel de Steve Mackay em “C”, ainda que de forma não tão limpa quanto o mestre a faz em disco, mas igualmente boa. Em “B”, quando o Tojo, qual Roger Waters, se atira às cordas para criar algo na linha de “One of These Days”, sentimos a nostalgia a vir à tona.  Felizmente, aparece de novo a guitarra a provocar um imediato e furioso headbang, daqueles mesmo perigosos, pois a nossa cabeça praticamente bate nas grades. E o “felizmente” diz respeito à possibilidade de sangrar ser tão mais de homem do que choro de menina, ao ouvirmos a melhor linha de baixo de sempre. Na sala dois, os Necro DeathMort — dois tipos, um no baixo, outro na guitarra e nas cenas electrónicas —mostravam um misto de industrial, grindcore e doom, sendo de realçar a beleza que é ver uma franja considerável do público a abanar as cabeças naquela forma tão tranquila de celebrar o metal. Em alturas mais agressivas, a coisa pendia mesmo para os lados de Godflesh e aí sim, o cheiro a morte instalava-se na sala e dava mesmo aquela vontade de os convidar para tocar no nosso funeral. Oxbow Duo prometia. Os relatos do que Eugene Robinson tem feito em concertos passados faziam com que acreditássemos ser possível assistir a um espectáculo degradante em bom. Não houve nudez assinalável e, ao não haver nenhum olhar ameaçador, nem se podia pensar numa cena de pancadaria envolvendo algum espectador mais incauto. Mas o concerto, mesmo sem pancadaria, foi óptimo e fez esquecer que era só meia banda em palco. A dada altura, o guitarrista pensa ter-se esquecido de afinar a guitarra para o próximo tema e Eugene explica que lhe acontece o mesmo com a masturbação: “Por vezes, masturbo-me e adormeço logo de seguida, quando acordo não me recordo se já tinha feito o serviço e [nunca fiando] volto a repetir.” Acredito que o Eugene Robinson tenha ficado feliz com a forma como decorreu o concerto. A hora de Ufomammut foi passada a jantar. A dificuldade em arranjar um restaurante por perto do Hard Club num domingo à noite é a mesma dificuldade que sentimos ao escolher a pior canção da discografia dos Kings of Leon. Regressado ao Hard Club, deparei-me com uma (ainda) pequena fila para o concerto de God’s Pee, mas decidi logo entrar na linha para tentar alcançar o melhor lugar possível. Nas grades já seria impossível, os habitués nestas situações já se sentavam todos junto à porta da sala um e estariam dispostos a correr para alcançar o seu lugar. Aquilo que, inicialmente, era uma fila ordenada, depressa se transformou em duas ou três, todas elas bastante anárquicas de forma a condizer com o estatuto da banda. A certo momento, começaram a ver-se pulsos magricelas elevados ao céu — como se fossem antenas —, mostrando as pulseiras verde esperança (HOPE). Imagino que para facilitar o trabalho dos seguranças. Antes que o ambiente se tornasse algo remotamente parecido com uma fila cheia de teenagers borbulhentos para ver o milésimo concerto de Metallica em Portugal, as portas lá se abriram e o som que ecoava do interior da sala era absolutamente fantástico. Era só um drone e nem sequer havia músicos em cima do palco, mas, naquele momento, o concerto de GY!BE já era o melhor do festival. O drone de “Hope Drone” ainda se prolongou por uns largos minutos e, por cada músico que ia assumindo o seu lugar, uma rajada de palmas era disparada. Como é óbvio, Efrim Menuck, sendo deus na terra, mereceu a maior de todas. As primeiras projecções visuais pareciam saídas de um vídeo qualquer daquele pessoal que respira teorias da conspiração, para os quais o Zeitgeist merecia o Oscar todos os anos desde que saiu. Enquanto isso, já “Hope Drone” caminhava para “Mladic”. Apesar de “Mladic” não ser uma canção de 2012, o facto de ter sido rebaptizada para o novo álbum, faz com que haja toda a propriedade em considera-la a melhor canção do ano. Gosto da mudança do nome, a Albânia e a guerra do Kosovo acabam por não ter tanto impacto quanto um genocídio à moda antiga. "e desfrutada na sua plenitude.  é a canção-hino do Massacre de Srebrenica e, se não sentem milhares de almas muçulmanas a pedir clemência enquanto finam naquela cavalgada furiosa de arranjos não são bons seres humanos. A canção lembra-me sempre do Zach Condon, dos Beirut, e os seus ritmos étnicos. Pois, o que Zach nunca conseguiu atingir com as suas musiquinhas pastorais foi precisamente o som da limpeza étnica, esse sim o único som étnico que interessa. As duas baterias eram fuziladas sem piedade, o arco de Sophie Trudeau bramia com toda a força no violino. E, no apogeu da canção, era impossível não fechar os olhos, esquecer tudo, e entregar a cabeça a um headbang desenfreado. Seguiu-se “Behemoth”, a tal malha que faz jus ao nome com uns enormes quarenta e cinco minutos. Problemas técnicos impediram que decorresse da melhor maneira e a própria quebra que a canção sofre impediu que fosse desfrutada na sua plenitude. Antes do Efrim bazar com problemas na guitarra e deixar os sete restantes músicos entregues a si próprios para aquilo que, inicialmente, seria o encore ao som de “East Hastings”, mas se transformou numa escusada experimentação, houve tempo para “Monheim”, parte de “Sleep” e extraída de Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven. O início desta canção contém um velhote a falar de Coney Island e, no momento em que escrevo isto, ainda não sei se será varrida pelo furacão Sandy, mas o velhote inicialmente diz que tudo era melhor em Coney Island e agora já não. Não podia estar mais correcto: tudo é melhor no Porto. E o Douro não tem salmonelas. Fotografia por Miguel Oliveira