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Ken Ilgunas, o estudante que viveu dois anos numa carrinha

Para poupar dinheiro e poder estudar.

Talvez em Portugal ainda não seja comum, mas nos EUA pedir dinheiro emprestado para estudar é normal. Tão normal que o endividamento é galopante e endémico. O

Ken Ilgunas é apenas um desses jovens endividados que, apesar das condições adversas, não desistiu de estudar no seu próprio país. Depois de ter estado dois anos a pagar o empréstimo da licenciatura, decidiu que queria voltar a estudar, mas sem pedir um novo empréstimo ao banco e sem chatear os pais. Para isso, embarcou numa aventura que nos remete para o filme Into the Wild: viveu durante dois anos (dormiu, comeu, estudou) numa carrinha estacionada à porta da universidade. O seu livro, Walden on Wheels, saiu no outro dia, por isso falei com ele para saber como tudo se passou. VICE: Olá Ken, como estás? Continuas a dormir na carrinha?
Ken Ilgunas: Oficialmente, saí da carrinha quando acabei a pós-graduação, em Maio de 2011. Mas dá para ver que curtiste.
Sim. O vandwelling [estilo de vida em que alguém vive no seu veículo permanente ou temporariamente] era confortável porque estava estacionado com o campus universitário por perto. Tinha acesso ao ginásio (para tomar duches) e à biblioteca (pelos livros e pelo Wi-fi) de borla ou por muito pouco. Quando me licenciei, deixei de ter essas coisas. Hoje em dia, vivo numa casa pequena, numa zona rural da Carolina do Norte. Eu e um amigo vivemos como monges: tratamos dos jardins, cuidamos das galinhas, fazemos pão e trabalhamos em projectos literários. Qual foi a melhor parte de viver numa carrinha Ford?
Sempre dormi muito bem na carrinha. O meu parque de estacionamento estava rodeado de árvores, por isso ouvia o ruído dos insectos, à noite, e o chilrear dos pássaros, pela manhã. Apesar de ter vivido numa carrinha, estacionada num parque de estacionamento de cimento, senti-me, de certa forma, próximo da natureza porque dormia sempre à temperatura do exterior. Ouvia o vento a empurrar a carrinha e os pingos da chuva bater contra o meu telhado. Tive algumas noites frias, mas na maior parte das vezes dei-me bem. Como começou a aventura?
Licenciei-me à custa de um empréstimo no valor de 32 mil dólares. Passei dois anos e meio a pagar esse montante e sentia falta da universidade. Não queria endividar-me de novo, percebi que podia comprar uma carrinha e ter uma vida simples. Portanto, e depois de ter sido aceite em Duke, comprei uma carrinha com o pouco dinheiro que me restava e decidi que desta vez acabaria os estudos sem dívidas. Consegui fazê-lo da seguinte forma: comendo comida barata, não comprando coisas inúteis e não pagando renda. Suponho que te tenhas preparado bastante. Que livros leste?
Preparei-me tanto quanto possível. Li alguns blogues de vandwellers, mas não encontrei ninguém que o tivesse feito num campus universitário — e eu não tinha a certeza se iria conseguir manter o segredo. Tinha sido ranger no Alasca, por isso, tinha o material de campismo que me iria ser útil (saco-cama, lanternas, canivetes), sabia como me manter quente ou como preparar refeições num camping gás. Mas contaste o plano aos teus pais, certo?
Disse aos meus pais que ia viver numa carrinha, mas eles pensaram que eu estava a gozar, o que foi fixe porque não tive qualquer tipo de resistência da parte deles, sobretudo nas primeiras fases da experiência. Disse-lhes o que estava a fazer duas semanas depois e eles ficaram em choque. A minha mãe ofereceu-se para me pagar a renda de um apartamento, mas eu não quis nem a ajuda nem o dinheiro. Para mim, era mais importante manter-me independente. Aliás, eu queria mesmo viver numa carrinha. Mesmo que pudesse pagar um apartamento, acho que ia viver numa carrinha na mesma. Queria desafiar-me a mim próprio, testar os meus limites e encontrar uma linha entre as minhas necessidades e aquilo que eu queria de verdade. Nunca o conseguiria fazer num apartamento. Em que momento é que percebeste que estavas a fazer a coisa certa?
Sempre soube que estava a fazer a coisa certa. Foi bom e, ainda para mais, estava a poupar milhares de dólares todos os semestres porque não estava a pagar um apartamento. No vandwelling o desconforto não é muito e, depois de um bocado, senti que estava a viver como num quarto muito pequeno, por isso só muito raramente, se é que alguma vez, senti falta do conforto de uma casa normal. Conta-me, antes que eu me convença a mudar para uma carrinha, qual foi o pior momento de toda a experiência?
A solidão está presente em qualquer viagem que faças sozinho. Geralmente gosto de estar sozinho. Sem solidão e sem tempo para pensar/processar as coisas, pouco poderia beneficiar da experiência. Por isso, a solidão é essencial, mas há alturas em que sinto falta de ter pessoas à minha volta. E nunca levaste uma miúda lá a casa, por assim dizer?
A minha vida amorosa esteve, durante os estudos, bastante limitada. Mas também não houve problema porque estava concentrado em ser um bom estudante. Tive uma pessoa durante um curto período de tempo. Não resultou, mas não foi pela carrinha. Houve algum momento que te fizesse duvidar de que irias chegar até ao fim?
Lá para o final já estava falido. A carrinha estava em boas condições, mas durante o último semestre começou a ter vários problemas que me limparam a conta bancária. Estive perto da bancarrota e a possibilidade de me pós-graduar com dívidas tornou-se muito real, mas no último semestre ofereci-me para participar em oito ressonâncias magnéticas no departamento de neurociência da Duke. Eles pagam 20 dólares à hora aos participantes num determinado estudo. Esse dinheiro ajudou-me a manter a cabeça à tona. Uau. Continuas a defender que foi uma experiência de crescimento pessoal?
Claro, recomendo isto a qualquer um. Não foi assim tão difícil e mesmo as dificuldades se transformam quotidianas. Além disso, poupei toneladas de dinheiro. Um apartamento barato durante esses dois anos, ter-me-ia custado à volta de 12 mil dólares e a minha carrinha custou 1500 dólares — com o extra de poder levar a casa para onde eu quisesse. Tens imensa informação no teu blogue. Por exemplo: uma tabela para a ingestão diária de calorias. Acaba por ser uma espécie de guia para as pessoas que também queiram tentar a mesma coisa.
Esse post específico tem conselhos para pessoas que queiram aprender a percorrer grandes distâncias a pé. Quando escrevo no blogue não costumo ter em mente que estou a dar conselhos aos leitores. Estou mais interessado em desenvolver e apresentar as minhas ideias. Acho que temos muito a aprender sobre nós próprios através das histórias das outras pessoas. Vendo a alma de outra pessoa, geralmente vemos um bocadinho da nossa. É por isso que penso que é importante que os escritores sejam brutalmente, embaraçosamente, pavorosamente honestos. E isto é algo que eu tento fazer o melhor que posso. Por falar em escritores: em Maio lançaste o teu livro, o Walden On Wheels. Que livro é este?
É um livro de viagens não-ficcionado. Uma história sobre a passagem para a idade adulta que durou cinco anos da minha vida, enquanto lidava com o meu empréstimo de estudante. É um livro sobre dívidas, sobre viver em lugares selvagens, sobre tentar viver uma vida simples e livre num século XXI muito confuso. Caso pudesses ter lido o teu próprio livro antes de embarcares nessa aventura, teria sido mais fácil?
Gostava de pensar que sim. Escrevi o livro a pensar muito na minha imagem enquanto miúdo. Era tímido, envergonhado e tinha pouca coragem. Naquela altura, estava a tentar encontrar ajuda em livros, mas foi sempre difícil. É por isso que gostava de pensar que o meu livro poderia ter ajudado. O meu livro fala sobre dar grandes passos em direcção ao desconhecido — e como esses passos levam, quase sempre, a coisas boas. É um manual de iniciação a futuros aventureiros como tu?
Tentei deliberadamente evitar que o livro fosse um guia. Os guias são úteis, mas muitas vezes têm pouca alma e paixão. Por isso, não quis escrever um guia chato, quis antes escrever um livro sobre estes invulgares cinco anos da minha vida. Espero encorajar os leitores a embarcar nas suas próprias experiências.