​Kurt Russell sobre “The Hateful Eight” e andar de skate com Charles Bronson

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​Kurt Russell sobre “The Hateful Eight” e andar de skate com Charles Bronson

Aceitei a missão de entrevistar Kurt Russell na ronda de apresentação à imprensa do novo filme de Quentin Tarantino, "The Hateful Eight".

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Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Vamos lá a pôr tudo em pratos limpos. Não sou imparcial no que toca ao tema Kurt Russell. Cresci com as suas comédias na Disney, era vidrado nos filmes que fez com John Carpenter nos anos 80 e, já adulto, continuei a seguir avidamente a sua carreira. Ao longo dos últimos 30 anos, a sua tromba de eterno desalinhado com o cabelo desgrenhado a escorrer suor, olhou por mim pendurada em mais de uma dúzia de paredes de quartos (primeiro no poster em alemão de "Escape From New York", de 1981 - "Die Klapper-Schlange" ["The Rattlesnake"] -, depois no que foi feito em 1997 para Itália, ligeiramente mais estiloso e pintarolas, "Fuga da New York". Kurt sempre esteve lá para me apoiar.

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Portanto, aceitei a missão de entrevistar Kurt Russell na ronda de apresentação à imprensa do novo filme de Quentin Tarantino, "The Hateful Eight", como um dilema existencial. Teria 15 minutos para estar com o meu ídolo num quarto de hotel armado ao pingarelho. E, ainda que com algumas restrições auto-impostas (nada de política, nada de assuntos familiares), continuava a ver-me a braços com uma carreira que abarca seis décadas . O que raio é que poderia perguntar a este gajo em apenas 15 minutos? Alguns amigos não demoraram a dar-me conselhos.

"Deixa-o super desconfortável".

"Chama-lhe Kirk".

"Pede-lhe para te sentares ao seu colo".

De uma vida inteira a ver entrevistas de Kurt Russell, sabia bem da sua habilidade em carregar o modo charme até ao limite. Não contava era com o quanto o homem gosta de falar da sua carreira. Ainda mal me tinha apresentado e puxado da cadeira para me sentar, já ele ia embalado. Como se tívessemos acabado de voltar depois do intervalo para anúncios publicitários.

"Um gajo tem de perceber que, se faz filmes ao tempo que eu faço, se faz tantos filmes como eu faço e se trabalha com tanta gente como eu trabalho, tem mesmo de sentir-se afortunado. Quer dizer, já viste a vida que eu tenho…deixa-me mas é bater na madeira". Ele fecha a mão e bate na mesinha do café com um movimento graciosamente estudado. À estrela de cinema.

No cinema têm existido três Kurts: Acção, Comédia e Drama. Este à minha frente era um quarto Kurt, o refinado veterano das entrevistas. Conseguia sentir o remoinho daquele charme todo a sugar-me, enquanto via os preciosos segundos a esfumarem-se no meu gravador.

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"Aparte disso, tens os teus favoritos", continua. "E lá em cima, sozinha neste momento, está esta experiência em 'The Hateful Eight' de criar uma personagem que queria que fosse memorável. Fazer isso com o Quentin? Pois. E fazer isso com o Quentin no seu melhor? Venha. E que tal fazer isso quando todos os outros actores estão no seu melhor? Venha de lá isso também. Eu adoro trabalhar com qualquer um deles, mas com todos ao mesmo tempo? Com todos no seu melhor? Então não havia de adorar? E adorarias fazer isso, quando sabes que estás no teu melhor? É óbvio que não seria uma surpresa se dissesse, claro que sim. Agora é desfrutar do facto de ter sido bombástico e divertir-me ao máximo com isto…".

Mas andas a sacar personagens bombásticas há 50 anos, não? "Ah, não, não. Ficarias surpreendido", assegura. "Ficarias mesmo surpreendido. Antes deste fiz o "Bone Tomahaw". Adorei fazê-lo. Não fui autorizado a ser bombástico. Não era essa a perspectiva do realizador".

Ainda ontem à noite vi esse filme, digo-lhe eu. "Eu gosto do 'Bone Tomahawk'. Mas…". Interrompo-o com um sentido e honesto "é um filme do caraças". "Bone Tomahawk" é um interessante, e mais lento, companheiro para "The Hateful Eight" (e em brutalidade pode rivalizar com qualquer filme de Tarantino). A personagem de Russell, um xerife caçador de canibais, tem uma daquelas barbas farfalhudas e prateadas e está mais parecido com um Pai Natal do que nunca. Nesta fase, não sei porquê, vem-me à cabeça a pergunta do colo.

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"Eu também acho e assumo que tenho uma grande responsabilidade nisso. Mas, estamos aqui a falar e, se me perguntares, 'deixaram-te ser bombástico?' Não". És bombástico de uma forma mais calma, atiro eu. "É isso mesmo. Por bombástico, não quero dizer que tenho de ser o maior. Não é isso. Falo de o filme ser feito de uma certa forma, com uma certa atmosfera. Há muitas, muitas, muitas coisas para se gostar ali. E adorei o resultado final. Poderia ter sido muito melhor? Na minha perspectiva, sim, claramente. Mas, aceito-o como é, até porque raramente se fazem filmes destes.

Aos 64 anos, Russell já não se parece tanto com os heróis suados da sua juventude. No entanto, parece totalmente confortável com a idade que tem. Houve uma altura, a meio dos anos 1990, em que Kurt Russell estava pronto para ser um herói de acção de primeira categoria [A-list]. Mas depois dos fracassos comerciais de "Escape From LA" e "Soldier", voltou-se de novo para papéis mais ecléticos. Agora, o antigo Snake Plissken está perfeitamente à vontade com o facto de ser um homem mais velho. Achei que devia assinalar o seu estatuto de "child star" mais duradoura do mundo desde Mickey Rooney. Um estrelato infantil que começou no universo perdido dos westerns televisivos.

Digo-lhe: fizeste dois dos quatro westerns que estrearam em sala em 2015 ["The Hateful Height" estreou no final do ano nos Estados Unidos, apesar de só estrear hoje, 4 de Fevereiro de 2016, em Portugal], o que é, muito provavelmente, um record. "Pois, pois! Deve ser!", diz-me em jeito de gozo. Mas acrescenta: "Fazer 50 por cento de todo um género num ano, se calhar é mesmo!".

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Quando era miúdo costumava ouvir falar da série "The Travels of Jamie McPheeters" - o primeiro sucesso de Kurt Russell na televisão, em 1961 -, mas há anos que não ouço falar disso. Há é uma piada sobre a "Sugarfoot" num episódio de "Arrested Development"…"Nunca entrei em 'Sugarfoot'", corrige-me ele. Pensei que tinhas entrado num episódio, respondo. "É uma daquelas coisas da internet. Nunca entrei. O meu pai é que entrou".

E alguma vez te dizem alguma coisa sobre "Jamie McPheeters"? "Às vezes, mas muito raramente. Gosto da série, porque adorava o Dan O'Herlihy…". Não se consegue ver em lado nenhum, por isso é que nunca vi um único episódio… "A história é muito boa. É sobre um rapaz de 12 anos, cujo pai está a viajar do Kentucky para o Oeste. O pai é um bêbado. É médico e bastante alcoólico, mas um gajo porreiro. Na verdade, o filho é mais pai para o pai que o pai é para ele. Uma relação de muito amor. O livro é muito bom e a série televisiva segue muito a linha do livro", relata Russell. Foi só uma temporada, mas uma temporada bastante longa, correcto? "Sim, 26 episódios". E metade deles com Charlie Bronson. "Exacto, 13 episódios com o Charlie", confirma-me. Era um gajo bem assustador, digo-lhe eu. Em "House of Wax" é terrorífico e tu tinhas aí uns 10 anos, não?

"Tinha 11 ou 12. Gostava mesmo do Charlie. Charlie Bronson era…um homem bastante detestado por muita gente. Era um gajo que sentia mesmo à séria o que fazia. Uma vez ofereci-lhe um presente. Ele recebeu-o e foi-se embora para o seu camarim, para a sua caravana. E a equipa toda ficou tipo 'Kurt, ele é mesmo um gajo infeliz'. Eu nem me preocupei, disse-lhes que estava tudo bem. Passado meia hora vêm dizer-me que o Charlie queria ver-me. Fui à caravana, bati à porta e estava a pensar, 'mas que raio é que fiz de mal'. Ele olha para mim e diz-me 'nunca ninguém me tinha dado um presente, por isso, obrigado'. E fechou a porta". E continua: "Passados dois meses era o meu aniversário. Ele descobriu, não sei como, e comprou-me um skate Makaha fabuloso. Comprou outro para ele e costumávamos andar os dois de skate no parque de estacionamento da MGM. Um dia, a assistente de produção vem ter comigo e diz-me que não podia andar de skate por causa do seguro, que eles não queriam. Eu pedi-lhe desculpa e disse que estava bem. Passado uns dias o Charlie pergunta-me pelo skate e eu conto-lhe que não me deixavam andar. Diz-me ele: 'Kurt, pega no skate'. Quando dou por mim estamos a ir ao presidente da MGM. Ele passa pela secretária, abre a porta, e diz 'Este é o Kurt, ofereci-lhe um skate nos anos. Vamos andar nele no parque de estacionamento. Era só para te comunicar'. Dá meia volta e vai-se embora. Foi isto".

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Rimo-nos os dois à gargalhada. Olho para as minhas notas. Tantas perguntas que não cheguei a fazer ao homem. Chocou mais os seus fãs da Disney como Snake Plissken, ou na pele do sniper Charles Whitman, no retrato desolado e desalmado que apresentou seis anos antes? Alguma vez conheceu Bill Cosby? Gosta dos Cro-Mags? Poderia eu, realmente, sentar-me ao seu colo? A assistente entra e aponta para o relógio. Negoceio uma pergunta final sobre Snake Plissken. Há rumores de que uma noite durante as filmagens na zona Este de Saint Louis, ias a correr, completamente vestido com as roupas da personagem, e deste de caras com um gang local…"Quatro gajos negros, grandes e com um ar de rijos do caraças. Não eram locais. Não sei de onde eram. Primeiro que tudo: aquela zona da cidade, àquela hora da noite, naquela altura, parecia uma zona de guerra depois de um bombardeamento. Ninguém. Zero. Totalmente vazia. E eu com aquele equipamento vestido. Tinha uma metralhadora, olho tapado, cabelo comprido…Estávamos em 1980 e o cabelo comprido estava mesmo fora de moda. E a arma tinha um laser na ponta. Eu ia a afastar-me, viro uma esquina à direita, tinha o walkie-talkie numa mão, a espingarda na outra, o olho tapado e estava a preparar-me para começar a correr, a preparar-me para ser o Snake. Dobro a esquina e estão estes quatro gajos. A vir na minha direcção. Viram luz a vir de algures, provavelmente ficaram curiosos e foram ver. Eu fico parado a olhar para eles e passado meio segundo eles começam 'calma meu, calma, estamos a ir, estamos a ir'. E eu lembro-me de pensar, este Snake funciona mesmo".

O meu tempo tinha acabado. Olhei para aquele colinho convidativo mais uma vez. Nunca mais teria a hipótese de contar todos os meus sonhos e aspirações ao seu ouvido, como se fosse o Pai Natal…e não há ninguém a impedir-me… Mas o Kurt levanta-se parta me dar um aperto de mão de despedida e o momento perde-se.

"The Hateful Eight" estreia hoje, 4 de Fevereiro, em cinemas de todo o país.