A Maré-Cheia da Migração
Photo by Andrew Connelly

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A Maré-Cheia da Migração

A crise dos migrantes não se tornou agora numa catástrofe ─ ela já é uma catástrofe há muito tempo.

A crise dos migrantes não se tornou agora numa catástrofe ─ ela já é uma catástrofe há muito tempo. Todos os dias morrem pessoas a tentar atravessar o Mediterrâneo, muitas outras morrerão, longe da cobertura jornalística ou da contagem das ONGs, a tentar lá chegar, e começam a morrer também cada vez mais já no território da UE, nas malhas das redes de tráfico humano que prometem levá-las à Alemanha ou à Suécia.

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O que mudou nas duas últimas semanas foi que a pressão migratória deixou de se concentrar apenas nos países que funcionam como portas de entrada para a UE. Enquanto os governos discutem quotas e outras minudências, a massa dos famélicos da Terra continua, inexorável, a deslocar-se em direcção aos seus destinos, fazendo pouco caso das cercas e vedações com que as autoridades procuram infantilmente detê-los.

O que já devia ser claro para todos há mais de 10 anos (quando se ouvia os imigrantes que se concentravam na "selva" de Sangatte dizerem que preferiam estar ali ou na prisão do que voltarem para os seus países), não pode agora deixar de ser absolutamente evidente, mesmo para o mais obtuso governante: quem fez milhares de quilómetros e atravessou o Mediterrâneo numa casca de noz não vai ser detido por uma cerca, nem por condições miseráveis nos centros de acolhimento/detenção. Ou seja, eles continuarão a vir, e em números que não podem senão conduzir ao colapso do actual mecanismo de processamento de pedidos de asilo.

A UE, como um todo, tem pois que tomar urgentemente uma opção estratégica, que passa por decidir se quer ou não acolher estas pessoas. Se a opção for por impedi-las de entrar no espaço da União, então os governos têm que estar preparados para tomar medidas muito mais duras do que construir cercas ou pôr mais polícias com cães nas fronteiras. A Austrália conseguiu deter o fluxo de barcos que traziam dezenas de milhares de migrantes de países do Sudeste Asiático, mas fê-lo impondo uma política draconiana que passa por interceptar as embarcações no mar e conduzi-las de volta aos seus portos de origem, e por reduzir praticamente a zero as hipóteses de alguém obter um visto de residência após chegar ilegalmente ao país. No caso europeu, isso equivaleria a conduzir náufragos que fossem resgatados no Mediterrâneo de volta à Líbia, e a deportar sem apelo nem agravo os que conseguissem chegar a Kos ou a Lampedusa. Será que as opiniões públicas europeias, mesmo as que defendem uma linha dura na questão da imigração, teriam o estômago para aguentar medidas deste calibre?

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É bom que pensem nisso antes, porque, face à dimensão que o problema assumiu, a única forma de eliminar (ou pelo menos restringir de forma substancial) o fluxo de migrantes é com a imposição de medidas deste tipo, implementadas da forma mais inflexível possível. As centenas de milhares que chegam à Europa não vêm porque acham que a viagem é fácil, ou porque estejam iludidos em relação às condições que os esperam. Vêm apesar disso, porque, por piores que sejam as condições nos centros de acolhimento, são preferíveis ao que deixaram para trás, e por mais brutais que possam ser as polícias europeias, isso nunca será nada comparado com o Estado Islâmico, as milícias líbias ou as forças de segurança eritreias. E vêm sobretudo porque têm a esperança de, no final do processo, conseguirem o visto ou o estatuto de refugiado. A não ser que tenham a garantia antecipada do fracasso, continuarão a vir ─ mesmo que o Mediterrâneo se converta literalmente num mar de cadáveres.

Centenas de refugiados numa estação de comboios na Macedónia. Fotografia de Andrew Connelly.

Se, por outro lado, a opção for por acolhê-los, então para quê continuar a colocar obstáculos (cercas, valas, polícias) que só tornam o processo mais penoso e moroso, sem nada fazer para alterar o resultado final? Para quê ter polícias nas fronteiras a abanar os bastões, ou a agarrar uma ou duas pessoas, enquanto à sua volta outras 20 ou 30 correm pelo descampado, até se darem conta da sua impotência e acabarem por deixar todas passar? Como se diz, não há duas hipóteses de fazer uma boa primeira impressão, e eu, pela minha parte, realmente preferia que o primeiro contacto que estas centenas de milhares de futuros cidadãos do espaço europeu têm com a UE não fosse deste nível de atrito.

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Como Merkel descobriu rapidamente, uma Europa cada vez mais envelhecida, com as taxas de natalidade em constante declínio e o rácio de pensionistas por trabalhadores no activo sempre a aumentar, tem potencialmente muito a ganhar com a chegada deste enorme contigente de migrantes jovens. Vista deste ponto de vista, esta crise representa uma enorme oportunidade para os países europeus, que podem tirar partido da desgraça alheia para rejuvenescer as suas sociedades e melhorar a sustentabilidade das funções sociais do Estado (o chamado "Estado Social").

Esta crise, contudo, também constitui uma enorme ameaça para a ordem interna dos Estados europeus e para a coesão e estabilidade da própria União. A Alemanha, por exemplo, estima acolher este ano perto de 800 mil refugiados, o que corresponde a 1% da sua população total. 1% pode não parecer muito, mas é 1% este ano, a juntar-se aos mais de 10% de imigrantes que já residem no país, e com mais para vir nos próximos anos. Um influxo desta magnitude tem consequências profundas no tecido sociocultural de um país, e iludem-se aqueles que acham que tanta gente em tão pouco tempo pode ser absorvida pelas sociedades de acolhimento sem problemas.

É que, por mais que os defensores do multiculturalismo se recusem a admiti-lo, a verdade é que muita gente (e será optimista, talvez até demasiado, achar que não são a maioria) se sente desconfortável quando deixa de percepcionar a sua cultura como hegemónica no seu país de origem. As imagens de alemães e austríacos a distribuírem água e comida e a aplaudirem a chegada dos refugiados pode ser reconfortante para quem considera (como eu considero) que isso é um passo na direcção certa, mas não nos pode fazer esquecer que convive com a subida de partidos com mensagens anti-imigração na Suécia, Hungria, Dinamarca, França e Finlândia. E este, ao contrário dos aplausos e da distribuição de comida e cobertores, não é um fenómeno pontual que se verifica como resposta emotiva a uma crise ─ pelo contrário, tem sido estável e constante ao longo dos últimos anos.

Se o potencial para tensões sociais já é à partida enorme, ele é ainda exacerbado pelo facto de, apesar das muitas mulheres e crianças, o actual fluxo de migrantes ser maioritariamente constituído por homens jovens, com um quadro cultural e de valores muito diferente do das sociedades de acolhimento, e muitas vezes com um background marcado por situações traumáticas de violência. Isto cria condições para simultaneamente exponenciar o sentimento dos "nativos" de que estão sob ataque por uma horda de invasores percepcionados como agressivamente diferentes, e fomentar uma mentalidade de gueto e de "auto-protecção" entre os recém-chegados, dois fenómenos que se retroalimentam.

A questão da forma como os migrantes são recebidos à chegada ao espaço europeu torna-se assim crucial se se espera gerir este sempre difícil e problemático processo da melhor maneira. Se forem bem recebidos, ganhar-se-á um vasto capital de gratidão que tenderá a marcar toda a sua relação com o país de acolhimento e com o espaço europeu em geral. Se não, sentir-se-ão indesejáveis à partida, e tenderão a enquadrar-se no modelo comportamental do "outsider", estabelecendo desde o primeiro momento uma relação emocional negativa com o espaço europeu e com a sociedade de acolhimento, e tendencialmente reforçando valores e componentes culturais contrárias ao quadro europeu como forma de afirmação de uma identidade oposta ao arquétipo promovido pela sociedade que os rejeita.

A dimensão humanitária da crise dos migrantes é premente, mas qualquer resposta por parte da UE a este problema não pode ser desligada do impacto que terá nas sociedades europeias. Para que a Europa possa dar uma resposta positiva a esta crise (e simultaneamente aproveitar a oportunidade que ela representa), é fundamental alterar radicalmente a forma como os migrantes estão a ser recebidos à chegada à União. Caso contrário, estar-se-á apenas a lançar as sementes de crises futuras ─ desta feita no interior do espaço europeu, e já não às suas portas.

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