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Música

Memória de Cão (ou um texto sério sobre Benji, de Sun Kil Moon)

Um riso interior, mesmo quando o assunto é barra pesada.

É algo enganosa a fama que

Benji

ganhou, desde o seu lançamento até aqui, como o álbum de Sun Kil Moon (Mark Kozelek) mais ligado à morte. Existe de facto um sentimento fúnebre, que paira sobre

Benji

, na forma das elegias, angústias e fatalidades verídicas mencionadas por Mark Kozelek, mas os retratos aqui dispostos revelam-se demasiado vívidos para que fiquem colados a uma noção de morte irremediavelmente triste e cinzenta. Para essa ideia contribui também uma capa que se resume a uma fotografia colorida e aparentemente registada em movimento. Se a cor é um valor escasso no universo visual de Kozelek — especialmente reconhecível pelo seu preto e branco esbatido — seria ainda mais estranho que surgisse declaradamente na frente de um disco com uma função de velório. Depois não há como ignorar também uma canção intitulada “I Love My Dad”, em que o

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songwriter

 de Ohio parece dar expressão a alguns dos dias mais felizes da sua vida.

No fundo,

 Benji

 aproveita a inevitabilidade da morte como pretexto de fundo para nos contar histórias cheias de vida. Reparemos em como os defuntos engradecidos, nas letras de

Benji

, se assemelham a alguns dos mais significantes personagens que quinavam nos primeiros minutos dos episódios de

Sete Palmos de Terra

. A caracterização que Kozelek faz dos seus familiares e amigos não é menos detalhada que aquela que os argumentistas da série da HBO atribuíam aos seus personagens: na realidade traduzida por Sun Kil Moon, assim como na ficção da HBO, estas pessoas são invocadas pelos seus hábitos, maneirismos, gostos pessoais e trivialidades biográficas, que servem muito mais preencher uma narrativa (uma canção ou um episódio) do que para criar um vazio. Mais do que um disco de luto,

Benji

trata sobretudo de como a memória arquiva e interliga as suas referências.

Mark Kozelek terá aproveitado a transição entre os mais sérios Red House Painters e o mais espairecido disfarce de Sun Kil Moon para começar a tratar as coisas pelos nomes, em vez de escondê-las com metáforas e subterfúgios: os seus afectos e desdéns passaram a ser dirigidos a sujeitos específicos (alguns deles pessoas bem conhecidas). Esses sentimentos foram também sendo distribuídos por localizações reais e, sem darmos por ela, tudo isto somado garante forma a uma paisagem de recordações credíveis, que contém tanto de nostálgico como de engraçado. Muitas vezes o que nos deixa a sorrir, nas canções de Kozelek, é toda a sua sinceridade desbocada. Ocasionalmente ficamos mesmo a pensar se este gajo não será louco por descrever estes episódios embaraçosos e as fraquezas dos outros, sem hesitar na altura de referir quem é quem. Talvez por isso alguns dos mais marcantes temas de Sun Kil Moon sejam precisamente aqueles em que o seu autor se pronuncia na primeira pessoa, sem perder o comboio da espontaneidade ou sequer morder a língua para travar palavras de que se possa arrepender mais tarde.

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“Dogs”, peça monumental de

Benji

, é perigosamente explícita (quase cheira a sémen, como uma canção de Arab Strap) na digressão pelas primeiras relações e experiências sexuais de quem a canta. Além do impacto profundo que provoca neste cancioneiro, por toda a merda que revela doa a quem doer, “Dogs” deixa de pé a sensação de que só mesmo Mark Kozelek a conseguiria compor com esta lucidez e franqueza. Quem mais diria, assim tão descaradamente, o nome da primeira rapariga que fodeu acrescentando que a mesma era excepcional a fazer broches? Callahan é demasiado críptico, McCombs vive no seu próprio sonho, Oldham encontra-se em piloto automático e Barlow agora dedica-se a cuidar dos gatos. Kozelek, por sua vez, continua a suar sinceridade em cada um dos seus discos de Sun Kil Moon.

Mas voltemos à importância das memórias na construção de

Benji

, porque esse é um tópico extenso. É de referir, por exemplo, que este é o Kozelek que mais assumidamente recorre a referências tipicamente norte-americanas, como se fossem as roldanas que fazem avançar as suas narrativas altamente biográficas. Surgem aqui em catadupa as estradas, os carrões de colecionador, a obsessão pela televisão (o aparelho de todas as más notícias em “Pray for Newtown”), os

serial killers

 cultivados por uma América que nunca se curou por completo da sua violência, os franchisings gigantes, os discos e os filmes que ajudam a situar determinado episódio no tempo e no espaço.

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Benji

não podia ser mais sumarento como naco de cultura americana e, mesmo assim, digere-se bem, porque Kozelek jamais tenta ser o patriota sabichão que passou meses em investigação, numa biblioteca, para encaixotar tudo o que aprendeu num só disco enciclopédico.

As referências de Kozelek, mesmo quando escapam ao alcance do europeu comum (que não é obrigado a conhecer tanta desta

americana

), contêm uma familiaridade que impede qualquer alienação. O próprio título do disco é aliás (e conforme reconhece o seu autor) retirado de um filme ligeiro de 1974 que persegue as peripécias de um cão chamado Benji, no seu auxílio às várias pessoas com que se vai cruzando (incluindo duas crianças raptadas). Tanto quanto sei,

 Benji

, a longa-metragem, não conhece grande expressão na tradição das nossas televisões, mas, para Kozelek, é bem provável que o filme do cão amigo tenha um significado semelhante ao que tem para nós

Sozinho em Casa

 ou

Assalto ao Arranha-Céus

 (dois clássicos verdadeiramente indissociáveis das circunstâncias em que os vimos tantas vezes).

A partir daqui é difícil ignorar o cão do título (tematicamente reforçado pela quarta faixa “Dogs”) e não nos admiraríamos se existisse um estranho paralelo entre esse animal e o Mark Kozelek que fareja o rasto deixado pelas pessoas em vida e que depois apresenta um relatório romantizado disso nas canções. Para mais, o Kozelek de Benji tantas vezes rende-se a um transe muito mais guiado por instintos do que comprometido com a seriedade (“Dogs” é liricamente descontrolada como o sexo à bruta, enquanto “Richard Ramirez Died Today of Natural Causes” tem todo o ímpeto do rap de rua). É evidente a presença de um humor muito próprio nesta sugestividade do

songwriter

-detective-canino, que arrecada pistas com o nariz e uma curiosidade insaciável. Mas Kozelek, desde que vestiu a pele de Sun Kil Moon, habituou-nos a um riso interior, mesmo quando o assunto é barra pesada. Se morresse amanhã em condições trágicas ou misteriosas (e oxalá isso não aconteça), era considerado um dos grandes escritores de canções do seu tempo.