Mergulhámos na magia de Paredes de Coura

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Viagem

Mergulhámos na magia de Paredes de Coura

Soube bem voltar a casa.

Há poucos prazeres que se equiparem ao de descobrir um pedaço de fantasia e de maravilha nesta existência feia e cruel a que aprendemos a chamar de vida. Na chegada à pacata vila de Paredes de Coura, pela inexplicável e inescusável primeira vez, somos recebidos de braços abertos por caras amigas e pela brisa quente que assobia por entre as árvores que circundam as margens do rio, sobre as quais espreita uma imensidão de tendas ao longo das inóspitas colinas. As subidas e descidas íngremes a que a vila nos obriga não são o melhor dos cartões de visita, mas é incrível como lhe desculpamos a porrada no corpo quando de facto entramos no recinto e somos brindados com o anfiteatro do festival. O palco principal, embutido de forma primorosa na vegetação e no fundo da colina verdejante e pontilhada de gente, rodeados de árvores e montes característicos, sob o espectacular céu campestre que à noite nos deleita os olhos com constelações claras. E começamos logo ali a perceber as histórias e as lendas.

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DIA 20 Chegamos muito a tempo de perder Capicua para o jantar, porque há escolhas óbvias, mas descemos com gosto ao coração de uma plateia já bem composta para receber de mãos ao alto os norte-americanos Cage The Elephant, que retribuem o calor com uma abertura desgarrada de guitarra e os gritos quase desesperados do vocalista Matt Shultz. As oscilações entre músicas pulsantes e energéticas, e sons mais melódicos e mesmo contemplativos, revelam a procura da identidade da banda ao longo dos últimos álbuns, mas não evitam que as letras ecoem pelas bocas do público, de lição bem estudada e intenções claras de se atirarem ao mosh, aoheadbang, ao crowdsurf e a outros movimentos dignos de estrangeirismo, mostrando desde logo ao que vinham. Neste primeiro dia, explodiu com estrondo o rnb e a soul da diva Janelle Monáe, com uma actuação cinematográfica, desde a abertura digna da Guerra das Estrelas, e de guião com energia alta e história envolvente. A mistura da funk intensa, com graves de fazer impulsionar ancas, e a encenação de fatos brancos conjugados com as listas das vocais, as trocas de guarda-roupa, o decorrer da narrativa que encheu o palco muito para além da enorme banda. Rainha de um show completíssimo, com momentos certeiros para saltar, para gritar, para chorar, Monáe regressou ainda para dois encores que deleitaram Coura. Tempo ainda para o encerrar da noite de boas-vindas com os Public Service Broadcasting, na ressaca do furacão Monáe, que acabou por “varrer” muita da gente dali para o campismo ou para os bares, gente que acabou por não mergulhar nos documentais históricos em vídeo, que afinal compõem parte da música do duo britânico, construindo malhas techno meio shoegaze dançável sob os seus relatos, embalando o caminho. DIA 21 A manhã trouxe alguma luz sobre um parque de campismo adormecido e a digerir silenciosamente a noite anterior. O clima pode descer de forma dramática durante a madrugada, mas não a moral dos campistas, armados até aos dentes de megafones, pirotecnia, rádios e álcool. As mini-festas multiplicam-se um pouco por todo o lado, à porta de tendas e entre mesas, cadeiras e fogueiras, e delas fazem parte as melhores personagens, desde animais com troncos humanos a figuras de latex, e prolongam-se até o corpo dar de si e cair na tenda, por vezes em tenda alheia. No dia seguinte somos livres de carregar o telemóvel, beber um café, comer uma merenda, lavar os utensílios e os dentes ou tomar um banho, ainda que frio, tudo sem sair do parque. Só faltava ter espaço para os joelhos nos quartos de banho mais apertados de sempre, para levar o jornal e ler sobre a vitória que não importa a ninguém da equipa da Invicta. Adormecidos pela ondulação inexistente do rio Coura, chegámos ao recinto a tempo apenas de Seasick Steve, orgulhoso dono de uma existência rica de mais de setenta anos e de uma formosa penugem facial de impor respeito. Mas na verdade o norte-americano é uma pessoa de prazeres simples e acessibilidade tão aberta quanto a sua destreza nas cordas. Acompanhado na bateria, encantou a plateia com o seu desenrolar de histórias à mão da guitarra de blues, ficando apenas a faltar a fogueira e um muito seu cenário do Mississippi, especialmente quando chama a palco uma jovem e a senta a seu lado para lhe dedicar a música mais romântica do repertório. E senhores, tivesse ele menos vertigens marítimas e menos 50 anos, e ninguém mais veria a Ana nessa noite. De visita ao palco secundário, e provando que a idade não pesa quando se é movido pelo gosto e pelo talento, o ex-Sonic Youth, Thurston Moore, dedilha na guitarra as notas incertas do noise compassado e lânguido presente no álbum que lançou este ano, The Best Day. Garrido, deixou para a compostura quase autista (no melhor dos sentidos) e para os apontamentos mais expansivos e ruidosos as partes mais interessantes de uma actuação suada. Mal acaba a lenda e já está em cima do principal o miúdo canadiano Mac DeMarco, no seu jeito desgrenhado e encanto pela vida, de chapéu para o lado, camisola larga e sorriso enorme, revelando a falha nos dentes. A descontracção e a jovialidade reflectem-se na música, skater deliciosamente inconstante e irreverente, simples mas encantador. Também ele chamou ao palco uma festivaleira para uma versão improvisada de Bob Marley e lhe fazer companhia até fim do concerto, incentivando a que mais público se atirasse aos seguranças; e protegendo-os, chamou ainda todos aqueles que passaram a barreira, para uma versão abraçada da Still Together com uma moldura a lembrar as fotos de equipas de futebol pré-jogo. Mas o concerto da noite ainda estava por chegar e nem fazia parte do alinhamento do palco principal. Repletos de pura electricidade, os Thee Oh Sees trouxeram e distribuíram uma sessão de porrada avassaladora de punk e psicadelismo que catapultou pessoas e afins, e muitos afins de facto, e a tenda abanou. Sendo uma das bandas mais prolíficas actualmente, fizeram questão de compor o reportório com um line-up vibrante e com poucas pausas para respirar, a maior parte saídas do álbum deste ano, Drop. Ou o outro lado de voar — cair. E valeu cada dor que guardámos no corpo. Vemos do alto da colina o público ondular sob a pop sintética dos CHVRCHES, puxando pela Lauren Mayberry, enquanto a vocalista atravessa timidamente o palco perante a dimensão e chama de Coura. Gradualmente ganha confiança e conduz o movimento de braços por entre a electrónica dançável. Pouco tempo depois são ovacionados na subida ao palco os Franz Ferdinand, afinal os cabeças de cartaz deste dia. Não há que negar que são um nome sonante, mas esta é uma viagem merecedora do DeLorean de Regresso ao Futuro. Ninguém pagou o bilhete para os ver, quando os tinham a um terço do preço na Queima. Ainda assim, a plenos pulmões, cada êxito é cantado e gritado, cada compasso equilibrado, cada batida saltada. Porque torcemos o nariz mas eles sabem ao que vêm e tocam as malhas que queremos ouvir, as que aprendemos de cor desde 2004, com uma entrega e deleite como se fosse a primeira vez. E terminam a saga com uma performance de bateria a quatro pares de mãos que fez trovejar os céus limpos de Coura e correu o recinto de arrepios. DIA 22 O rio é o sítio de eleição para todo e qualquer festivaleiro fazer poses para as fotografias, ou levar o barco e tentar que não vire. Como de noite, mas de outras formas. Para nós foi o local de almoço e de partilha com os vizinhos, de histórias e de comes e bebes, no bom espírito do festival; foi local de entretenimento, a acompanhar os carrinhos de choque versão marítima, ou os saltos de rabo para a água desde o cimo das árvores, com alguma música e poesia de fundo no palco montado na relva; e foi local de restabelecimento de energias, de momentoszen e de namoros, tarde adentro ao sol abrasador ou na água gelada. Ou, quem estamos a enganar, tempos de mirar rabos e peitos fartos em biquínis apertados. No coliseu natural fomos assistir aos pequenos barcelenses Killimanjaro se tornarem, ou se assumirem, como os grandes que já são. Uma das mais jovens presenças no cartaz produz um dos sons mais maturos que ouvimos ecoar no recinto, misto do bom velho rock n’rolltemperamental com stoner distorcido, puxado a ferros das entranhas. Abertas as hostes da presença portuguesa no palco principal, coube aos Linda Martini pegar de estaca onde nunca largaram. Basta-lhes subir para gerar entusiasmo nas primeiras filas, basta afinar um acorde para ter um refrão cantado de volta. Basta aparecer o Hélio para as miúdas perderem o norte. Agastados mas com a vontade do costume, souberam brindar-nos com a Estuque ou a Lição de Vôo para um anoitecer bonitinho. A surpresa estava guardada para a actuação de Conor Oberst, umas das melhores descobertas de todo o festival, infelizmente apenas para os ouvidos de quem mostrou a disponibilidade. Em nome próprio sem os seus Bright Eyes, e liderando a composição dos Dawes, banda que até abriu o palco secundário apenas algumas horas antes, o cantautor norte-americano deliciou-nos com o toque de charme que deu aos romances e desventuras relatadas com intensidade em tom de folk vivido. Se o que procuravam na vida eram gatos perfeitos, e não nos encontraram a limpar o bar da zona de imprensa, bem-vindos ao concerto dos Perfect Pussy. Agora deixem de lado a roupa e os medos e mergulhem na zona segura de riffs rápidos e pulso acelerado. Não esperem perceber nada do que a vocalista grita, deixem-se levar na zona de centrifugação punk e limpem os demónios. Totalmente expurgados, levitamos até ao palco principal, cenário improvável não em importância mas em dimensão de ambiente para colocar o rock marginal dos Black Lips, afinal autênticos cabecilhas deste, o dia do meio de Coura. Também eles despidos de merdas, sempre, respirando o seu aquário de blues compassado e provocador, e acelerando para o tão característico e energético roll lo-fi, dançando com os instrumentos numa entrega suada que replica junto do público, de onde da nuvem de pó levantada pelos saltos emerge um homem zebra. Faltaram coisas a arder, faltou nudez, faltou a loucura a que um festival destes é impermeável, sem que faltasse garra e sorrisos e sapatos a voar. Em direcção oposta, e apesar de algumas expectativas, os Cut Copy foram mais copy+paste(nunca tinham ouvido esta piada, pois não?) de um qualquer set do Sudoeste. Vocais monofónicos e anasalados a pegar em refrões vazios e genéricos, electrónica repetitiva e monótona, efeitos visuais irrisórios e uma total e geral falta de noção, dentro e fora de palco. Não é costume odiar tanto estar de pé ou bocejar mais num concerto que na fatídica viagem de regresso, mas foi assim que aconteceu. Deus abençoe a diversidade e os Cheatahs, banda de quem às duas da manhã ninguém esperava demasiado, mas que acabaram a salvar a noite graças ao seu rock estouvado de garagem, que muito literalmente me partiu as costas.

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DIA 23 Os traços de uma semana da melhor das destruições denotam-se de forma tão clara como o sol, bem alto no céu, no início do último dia de festival. As tendas no campismo estão totalmente cobertas de pó e as garrafas vazias e invólucros de preservativos multiplicam-se em torno delas, porque este festival é amor, amor pelo próximo, amor pela música, e às vezes pela falta dela. Uma rapariga que conheci na noite anterior confessou-me que não vibrou com Black Lips. Já o rapaz que a abraçava disse que adora Perfect Pussy, e riu-se que nem um javardo. A faixa etária mais nova quer as grades para ver Beirut, mas é o cabeça de cartaz James Blake quem anda nas bocas do mundo. A caminho da vila, dez minutos transformados em meia hora a subir, há murmurinho sobre uma certa e veraneante festa de eurodance que golearia alguns dos concertos oficiais em sensualidade e festão mínimo. Depois de um mergulho rápido na água gélida do rio, para andar às cabeçadas ao engarrafamento de barcos, e de um outro na água a ferver da piscina municipal, porque quem somos nós se não degustarmos o local, somos chamados mais cedo que o costume pela voz da sempre deliciosa Sequin, emergindo da synth pop contagiante que compõe a três pares de mãos, em coro com uma plateia composta apesar da hora, que já sabe as letras de cor e que vibra com expectativa perante a pérola Beijing. A jogar praticamente em casa estavam os Sensible Soccers, que subiram desde Vila do Conde ao palco principal para estender as malhas que criaram com o maravilhoso 8. Há camisolas e cachecóis do Rio Ave na plateia, afinal o líder provisório do campeonato e a dar cartas na Europa, e há dança ritmada e desgovernada, ordenada pelo Bueno, o bailarino prodígio vestido apenas de boxers e meias, ao som do repetitivo e minimalista, e no entanto embriagante ambiental melódico. Altura do duo californiano The Dodos, tocando como habitual em trio, polivalentes na amplitude do seu folk barroco e sensivelmente acústico, e na extensão de influências que o compõem, mas com especial contundência nas referências a Christopher Reimer, membro de comitiva que nos deixou há dois anos, e que continua um fantasma honorável nas letras do último álbum da banda. Segue-se o concerto mais cabeludo de Paredes, com as cabeleiras fartas a esconder as caras de Kurt Vile e da banda de se faz sempre acompanhar nas suas viagens, The Violators. Ainda na senda do que de bom há nas influências folk, desta feita com índole forte no descontraídoindie polvilhado de psicadelismo rasgado, o prolífico fundador dos War on Drugs traz na bagagem o ainda fresco álbum do ano passado, Walkin’ On a Pretty Daze, que explora sob a brisa da noite que vai caindo no recinto, como uma nuvem temperada que condimenta o corpo com boas sensações. Depois do jantar há que descer ao coração da plateia para assistir às acrobacias de Brooks Nielsen, o energético vocalista dos norte-americanos The Growlers, que interage à boca do palco com as primeiras filas, e com elas se atira perante o divertido e mexido rock cru e luchoso e meio gozão, jingão. Não há frio que resista aos uivos e milhas dançadas, numa alegria contagiante que se estende num abraço de muito boa onda cá em baixo na plateia. Lá para cima sobem os crocodilos, sim, neste festival há animais para todos os gostos, e fecham o concerto abraçados à banda. Faltava a melhor actuação para o qual poucos se haviam preparado, e falamos claro, dos Goat. Autênticos ímpetos da fusão ácida, os suecos equiparam as melhores vestes tribais e transportaram-nos para recantos selvagens onde o rito se orienta pelo pulsar do coração da bateria. E fazem-nos questionar as aulas de geografia, porque a Suécia deverá mesmo ficar em África, ou as fogueiras gigantes que fazem estender sombras enormes e dançantes ao som de perfurantes riffs e tenebrosos gritos de guerra se terão transportado para o norte da Europa. Enfeitiçados por este voodoo, foi como se nos balançassem em redor de um vulcão e empurrado para um mundo que nos consumiu as entranhas. E a roupa. A senda do festival de músicas do mundo continuou a ser representado na composição dos Beirut, banda que fez encher as primeiras filas de gente abaixo dos 20. Bem menos ácidos, menos expansivos, menos tudo que os Goat, agarrados ao folk tocado como se fosse pop, e aos clarinetes e tubas a demarcarem as zonas de sentimento em redor do ukulele como se de bóias se tratassem. Não há muito se algo de novo, tocam simples e bonito e isso basta ao público que os esperava cerrado em si mesmo, cantando a pulmão cheio a sempre aguardada Nantes. O êxtase final do festival estava guardado para uma completa enchente que não deixava ver chão algum no recinto de Paredes de Coura, e essa aconteceu à volta do concerto de James Blake. Enorme explorador da expectativa e do poder silencioso da languidez, e derradeiro delineador de um ambiente intimista e concentrado, apesar da dimensão imensa que tinha a seus pés, o londrino sufoca-nos com a sua electrónica, deixa-nos ofegantes e de boca seca, para nos abrir as portas de um coração que nos mostra a orgânica do sintético, se é que isso faz sentido. Sentimos a emoção preencher os espaços vazios, abrimos os olhos, e é só um homem, sentado, que faz hora e meia desaparecer na pulsação ilusória da música. O resto da madrugada foi partilhado com a névoa de felicidade e realização que um festival que é feito como um festival deve ser feito, para nos remoer e deixar as cicatrizes, memórias e sensações. Paredes de Coura é, afinal, vida. É a luz da manhã que revela a noite que não dormimos, o cheiro das colinas e o chilrear dos pássaros de uma vila que o voltará a ser a partir de aqui, os abraços e sorrisos que deixamos. E é um último olhar para trás, enquanto deixamos este Couraíso, e fechamos os olhos com prazer.

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