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Viagens

No coração da floresta

Uma velha história do meio do nada.

Foto por Lois Carbone Barber Tim Barber — fotógrafo, curador, proprietário do tinyvices.com, e antigo editor de fotografia da VICE— trouxe-nos recentemente este tesouro desenterrado de fotos que os seus pais, juntamente com os seus companheiros hippies, tiraram durante a época em que era moda “voltar às origens”, nos anos 70. Primeiro dissemos: “Uau, os teus pais não estavam a brincar!” Depois dissemos: “Uau, estas fotos são lindas! Por que raio continuamos nós a viver nesta selva urbana quando podíamos andar por aí a brincar com as cabras e as águias?” Tim adiantou-se e entregou um extracto de um livro de memórias que o pai dele, Robin, começou a escrever sobre esses tempos. E então aqui está: um vislumbre da vida no campo, cortesia de um pai bem porreiro. Mudámos o domingo para a segunda-feira, pois o domingo tornou-se o dia para as visitas inesperadas. Quando tentámos fazer do domingo um dia de descanso, para passar momentos sossegados a ler, a escrever cartas, a explorar, ou a realizar rotinas complexas, como o banho, víamo-nos constantemente interrompidos por um “olá!” vindo do caminho para a nossa casa. Vinham do acampamento de lenhadores em carrinhas amarelas da empresa e andavam três quilómetros pela mata. Só havia um caminho, não havia maneira de se perderem, nem outro lugar a que pudessem ir dar — apenas a cabana de um caçador que estávamos a reconstruir numa clareira no final do caminho. Estávamos em 1971 na imensidão da Colômbia Britânica, bem perto do Alasca, num grande e deserto vale e, aparentemente, a nossa pequena comunidade era a única coisa interessante que lá havia. Os lenhadores muitas vezes apareciam em passeios de grupo, contentes por terem uma razão para saírem do acampamento claustrofóbico — um lugar com filas militares de caravanas e pré-fabricados, oficinas de trabalho, imensas máquinas grandes e amarelas e depósitos de combustível em suportes de aço. Vinham curiosos — à espera de verem os hippies da sua comunidade — mas também com intenções de darem provas de boa vizinhança, prontos a aceitar-nos como pessoas normais, a querer admirar o nosso esforço para habitar ali e a oferecer conselhos. Às vezes traziam prendas, comida ou ferramentas, uma vez até um rádio portátil — para segurança, por causa dos incêndios, disseram-nos — que educadamente recusámos. A caminhada era longa, dura e íngreme, e eles chegavam com crianças ao colo, exaustas, esfomeadas e chorosas. Sentíamo-nos obrigados a fazer chá e a trazer comida para cada contingente. A comida que lhes dávamos era minuciosamente avaliada, mas acabava sempre por ser devorada com sofreguidão. E quando o último grupo ia-se embora pelo caminho, nós queríamos o nosso domingo todo de volta. Então mudámos o nosso domingo para segunda. Os lenhadores andavam ocupados a abrir caminhos pela mata com as suas máquinas amarelas e fumos de gasóleo. O domingo tornou-se um dia normal de trabalho para nós, e os visitantes de domingo tinham a oportunidade de escolherem ver-nos trabalhar ou de deitar mãos à obra e ajudar-nos: serrando madeira, carregando, martelando, escavando. Isto acabou por se tornar muito boa ideia, mas isso é outra história. A minha história tem a ver com o nosso ritual de banho de segunda-feira. Mantermo-nos limpos era uma das coisas mais difíceis quando chegámos pela primeira vez a Tseax River. Não tínhamos água corrente, nem electricidade, nem banheira, e a cidade mais próxima com tudo isso ficava a cem quilómetros de distância. Estávamos na encosta o dia todo, de Abril a Maio, na neve, depois na lama, envoltos no fumo de fogueiras, a fazer trabalhos pesados. Os nossos corpos estavam enegrecidos, aromáticos de fumo, de suor do trabalho e, por vezes, de suor do medo da proximidade e das discussões, a ganhar território. A chuva era frequente; raramente estávamos completamente secos. À medida que o tempo ia aquecendo, mosquitos, moscardos e mosquitos-pólvora apareciam aos enxames, e besuntávamo-nos com um repelente de insectos caseiro feito a partir de azeite, erva-cidreira, resina de pinheiro e eucalipto. (Da esquerda para a direita) Fotos por: Robin Barber; Lois Carbone Barber; Robin Barber; Charles Sprague O ar à nossa volta era bastante denso. Mas no crepúsculo, depois da ceia, caminhávamos para um ponto mais alto, onde podíamos observar a luz a esvair-se por detrás de montanhas altíssimas. Vastas lufadas de ar puro varriam o vale, para uma linha de nuvens pairando sobre o distante Rio Nass. Os únicos sons eram vento, água e chamamentos de pássaros. Não eram visíveis quaisquer luzes senão as estrelas do final do dia. Se o tempo andasse para trás 200 anos, a única coisa diferente seria o ocasional rachar de árvores que arrebatava encostas emaranhadas. O local era tão limpo que o nosso suor natural parecia encaixar na perfeição. Tudo o que tínhamos para aquecermo-nos era um fogareiro de folha de metal, suficientemente pequeno e leve para transportar numa mochila. A preparação para o banho começava por encher o fogareiro de brasas até que o fino aço brilhasse, torcesse e estalasse. Enquanto o fogareiro criava vapor, carregávamos água do nosso ribeiro em dois baldes de plástico de picles, surripiados da cozinha do acampamento de lenhadores. A água do ribeiro — ao qual chamávamos Ribeiro do Castor porque, corrente acima, existiam sete represas construídas por castores — era pantanosa, estanque, com uma cor de âmbar como chá fraco e um ligeiro sabor a sabão. Aquecíamos a água num fervedor que conseguimos recuperar, um tubo oval de esmalte preto com pintas azuis, com amolgadelas ferrugentas rodeadas por rachas finas. Quando o Charles o encontrou, tinha um furo que facilmente arranjou, enfiando um pequeno parafuso pelo buraco, com porcas a segurar de cada lado. Deitávamos água espumosa no fervedor e enchíamos o fogareiro com a nossa preciosa lenha. Depois esperávamos. Ao fim de algum tempo, tínhamos uns quantos litros de água quente e cada um de nós dançava em frente ao fogareiro, mergulhando um pano numa bacia para enxaguar a pele branca asquerosa, cada um utilizando cada gota da parte de água que lhe pertencia. A frente fervia enquanto as nossas costas congelavam. Falávamos muito sobre construirmos uma sauna ou uma cabana de sudação, uma ideia atraente como oportunidade de sentirmo-nos integralmente quentes. Mas outras necessidades básicas vinham primeiro: o telhado apodrecido, um chão novo na cozinha, a procura constante por lenha, construir caminhos, limpar e escavar o jardim, plantar batatas, abóboras, ervilhas e feijões. Depois o Little Joe Jackson deu-nos uma banheira. Como toda a gente no vale sabia que precisávamos daquilo tão desesperadamente, pudemos imaginar a alegria quando esse seu presente foi proposto na casa do Peter Hughan. Peter era o padrasto do Joe, o benfeitor que — por por dólar por acre — nos arrendou o terreno, o nosso mentor, o colonizador mais antigo da pequenina comunidade de colonizadores fora do acampamento de lenhadores e fora da reserva de índios. Por não sermos lenhadores nem índios, e por sermos aceites pelo Peter Hughan, éramos considerados colonizadores provisórios. Então, um dia, quando fomos visitar o Pete, o Little Joe anunciou ao pequeno-almoço: “Juntámos algumas coisas úteis para vocês. Precisam de espaço na cabana. Esperamos que levem tudo convosco.” Abriu a porta do barracão, e da escuridão saíram galinhas a bater as asas em alvoroço. Na traseira de uma carrinha tinha empilhado várias coisas que, peça a peça, apontou: uma panela de pressão que precisava de uma tampa, um grande machado, uma viga que os lenhadores usavam para virar troncos, um bidão vazio de 200 litros — dos bons — e, no cimo, uma pequena banheira galvanizada de folha de metal virada ao contrário, parecendo uma tina para dar de beber ao gado. A carrinha estava coberta de cocó das galinhas, que tinham feito ninhos na cabine do condutor. “A carrinha anda”, assegurou-nos, “mas não a uso há uns anos; levem a carrinha também. Preciso do espaço no barracão”. Não queria que lhe pagássemos. “Vocês também ajudam aqui o velhote.” Estávamos a 10 de Maio, o dia em que o “velhote”, Peter Hughan, tinha por costume semear as suas sementes vivazes e plantar batatas. Trabalhávamos o dia todo com ele, tentando aprender o que podíamos, preparando-nos para um esforço de principiante no nosso próprio jardim. Os terrenos da sua quinta eram os melhores do vale, vastos campos de solo rico, com um aglomerado de edifícios de madeira envelhecida, telhados de cedro e uma ampla vista das montanhas a leste. Ao anoitecer, o Peter levou-nos ao seu ribeiro transparente e barulhento, onde tinha uma lavandaria asseada construída sobre estacas para a proteger das cheias. Mostrou-nos como fazia para aquecer a água. Tinha aberto um bidão de óleo a meio, como um livro, dobrando para trás uma folha em cada lado. O bidão estava caído de lado, por cima de um fogareiro tosco de tijolos de cimento. A água era fornecida pela gravidade através de um tubo fino de plástico preto pendurado numa corda no alpendre da lavandaria. Estava sempre a correr, voltando de novo ao ribeiro. Para encher o bidão o Peter apenas tinha de mover um pouco o cano com a corda, de forma a que um arco de água cristalina, forte e regular, se derramasse dentro do bidão, enchendo-o em poucos momentos. Com um fogo vivo por baixo, a água rapidamente passava de glaciar a um borbulhar de fervura. Dentro da lavandaria estava uma banheira absurda, cor-de-rosa, com portas de vidro enregeladas. Transportámos baldes cheios de água do bidão fervente e despejámo-los para dentro da banheira, misturando quente e fria até que estivesse no ponto. Ao lado da banheira estava uma centrifugadora Maytag a gasolina, e enquanto ele se ensopava em bastante água quente, as nossas roupas enrijecidas pela sujidade chapinhavam e sorviam a água a caminho da limpeza. Junto da centrifugadora estava uma fornalha hermética de folha de metal que parecia uma lata gigante a emanar calor. Limpámo-nos com a toalha numa atmosfera quente de vapor. Quando puxámos a tampa da banheira, a água do banho escoou de novo para a corrente da margem negra e argilosa debaixo da casa. Mais tarde, sentados à luz da lâmpada da mesa do Hughan durante o jantar, a nossa pele parecia brilhar de limpeza e, vestindo roupas emprestadas, cambaleávamos de sono. Fotos por Robin Barber Nos dias seguintes, de volta à nossa encosta, usámos a banheira do Little Joe e o bidão de 200 litros para montar o nosso próprio banho ao ar livre perto do Ribeiro do Castor. O Charles e eu transportámos o bidão pelo caminho acima numa viga, tal como um troféu conquistado numa caçada, e depois passámos a tarde com um martelo e um cinzel, os nossos ouvidos tapados com algodão, abrindo o bidão e dobrando as folhas para trás. O resultado final ficou um pouco mais tosco e disforme que o do Peter, com pontas afiadas de aço levantadas ao longo das bordas cortadas. Imaginámos pessoas a cortarem-se nelas enquanto tentavam tomar banho e apercebemo-nos que tínhamos de passar mais uma hora ao frio e ao relento martelando as pontas para baixo. A Lois apareceu para ver e tapou os ouvidos com as mãos. Conseguia ver os seus lábios a mexerem-se, portanto parei de martelar por um momento para a ouvir: “Martela! Martela! Martela! Martela!”, gritava ela. “Martela! Martela! Martela! Martela!” Quando acabámos, tudo o que eu conseguia ouvir depois de tanta martelada era essa palavra, “martela”. O Charles tinha andado a surripiar, coleccionando coisas que o resto de nós tendia a desdenhar. Tinha um par de brocas, barras de aço hexagonais com 1,80 metros de comprimento com orifícios no meio, como antigos canos de espingarda gigantes usados para abrir as estradas dos lenhadores. Deslizámos as brocas por baixo das abas do nosso bidão, como um assento de automóvel em aço. Pendurámo-lo com fio nos troncos ramificados de dois cedros. As pernadas mais baixas destas árvores permaneciam bem junto à terra, formando um caramanchão dos dois lados do bidão. “Vamos chamar-lhe Banhos do Castor.” “Vamos só chamar-lhe a Casa de Banho.” Utilizando partes de um cano, também encontrado pelo Charles, criámos a nossa própria versão de fornecimento de água por gravidade do Peter. Abrimos um buraco no fundo de um balde de picles, inserindo a ponta do nosso cano no buraco e enrolámo-lo com um farrapo e um pano flexível, e depois atámos o balde por baixo de uma pequena queda de água. Num segundo, um jacto gratificante de água jorrou para fora do cano, uma pequena e rápida inundação por baixo dos cedros, um ribeiro portátil. Podíamos levantar a ponta do cano húmido e pesado, um pouco a tremer com a força da corrente e, rapidamente, encher o bidão. Com o bidão cheio, as brocas descaíram. Calculámos o peso: “sete decilitros para um quarto de galão, 40 decilitros para um galão, digamos então que temos 45 galões… Isso dá cerca de 160 litros de água quente…” Ir apanhar lenha implicava muito trabalho. Por isso, com alguma dificuldade, fizemos um fogo incerto e fumacento juntando alguns arbustos da nossa clareira e lenha, fraca e húmida. Mas, uma vez a arder debaixo do bidão tisnado, criou um brilho intenso que aquecia e secava um círculo entre as árvores. Até a chuva esparsa parecia secar antes de tocar no solo. Com cedros cortados fizemos uma passagem entre o bidão e a banheira. Cobrimos a banheira com uma rede mosquiteira pendurada numa viga. Tentar tirar água a ferver do bidão sob o calor violento da fogueira era perigoso. Mas a Lois apercebeu-se que podíamos encher a banheira com um sifão que improvisámos com um cano e uma torneira de latão, feita para combustível da carrinha do Little Joe. Finalmente, conseguimos encher a banheira em poucos minutos. Trouxemos o nosso longo termómetro fotográfico para medir a temperatura da água do bidão. O mercúrio subiu até ao topo da escala, até aos 120 graus Fahrenheit. “Bem, está perto de ferver, então isso dá 212 graus, certo?” “Sim, 100 graus Célsius, aqui no Canadá.” Depois metemos o termómetro no jacto gelado do cano. O mercúrio desceu vertiginosamente. “Meu Deus. 38 graus.” “Isso dá quanto em Célsius?” “Não sei. Gelada é zero, certo? Então devem ser um ou dois graus acima de zero…” “Não sei.” “Não importa.” “A água do Castor está muito, muito fria. A água quente está muito, muito quente.” (Da esquerda para a direita) Fotos por: Robin Barber; Robin Barber; Lois Carbone Barber; Robin Barber O nosso primeiro dia de banho foi numa segunda-feira, fria e enevoada. Banharam-se os mais velhos primeiro, por decreto da Julia. Ela tomou primeiro e eu fui o último. As regras diziam que tínhamos de voltar a encher o aquecedor e alimentar a fogueira antes de entrarmos para a banheira. Depois, quando saíssemos, levantávamos a rede mosquiteira e simplesmente despejávamos a banheira para o lado, o jacto de água arrastando mais agulhas e pinhas para a corrente, expondo no chão da floresta uma rede espessa de raízes de cedro vermelho-rubi. A banheira tinha de ficar limpa, enxaguada com a água fria corrente. Depois da Julia ter descido o caminho, continuámos os nossos afazeres à volta da cabana, olhando furtivamente por entre as folhas novas para a sua distante figura nua, dançando com a mangueira e com a torneira à chuva primaveril, afastando mosquitos, dizendo palavrões, mergulhando depois por baixo da rede para a banheira com guinchos de alegria. Um por um, chegou a nossa vez. Podíamos ficar deitados na banheira a vapor olhando para cima para os cedros e abetos majestosos, enquanto a chuva fria tocava a nossa cara e joelhos, e cada músculo do nosso corpo era individualmente dissolvido e criado de novo. A água fria saltava do cano, o afluente ronronava e sussurrava, o fogo estalava e tranquilizava, e a chuva sibilava. Uma profunda lassitude e bem-estar começavam no banho — saímos de lá rejuvenescidos, espantados por nos encontrarmos onde estávamos. Com roupas limpas e de estômago cheio, o nosso bem-estar alargava-se a uma nítida tolerância, amabilidade e amor, suficientes para durar quase uma semana.