Nós no Alive…para lá das selfies e com amor a Jesus
Fotografias por Ágata Xavier

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Nós no Alive…para lá das selfies e com amor a Jesus

O Alive é muito bem capaz de ser o festival mais equilibrado, e aquele ao qual os teus pais te deixam ir quando tens 15 anos.

Isto não começa bem. Quero não ver e muito menos ouvir os Muse, fugir ao Ben Harper e não ter qualquer tipo de contacto com o James Bay, mas gostava de não perder os Les Crazy Coconuts, Nice Weather For Ducks, os X-Wife e os Metronomy. Nem umas coisas nem outras e Quinta-feira, primeira dia de NOS Alive é para a Vice só fotografia.

Sexta-feira, seis e picos da tarde, 723 do Marquês para Algés e isto continua a não correr pelo melhor. Há trânsito avantajado e a ideia de chegar com calma, fazer o reconhecimento ao recinto e planear trajectos e afins começa a esfumar-se. Melhora um bocadinho quando se percebe que os dois putos que vão ao lado consultam os horários e entregam um entusiasmo exacerbado e gutural à descoberta de que vão conseguir ver o "Unas com um gajo DJ" porque, explica um deles, "é depois daqueles que a minha irmã disse que até eram conhecidos, os The Jesus and Mary Chain" - assim, mesmo com o The e dicção inquestionável. " Quem são esses?", pergunta o outro sem levantar os olhos do livro que vai a ler ("Harry Potter e o Cálice de Fogo", juro que é verdade). "Não faço ideia", conclui o irmão da pessoa de bom gosto.

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The Jesus and Mary Chain. Fotografia da Ágata Xavier.

Sol de pouca dura. Primeiro impacto musical é assustador. Palco NOS, primeira cerveja pedida, banda desconhecida em palco, e o terror a apoderar-se do corpo em poucos segundos. A ressurreição do nu-metal. Não há que escamotear. Um cruzamento dantesco entre os Limp Bizkit e os Guano Apes. Chamam-se Marmozets (esqueçam isto nos próximos dois segundos) e têm aquela dose certa de melodia fácil e riff pesado capaz de transformar pacatos pais de família trintões em insaciáveis sacadores de selfies em grupo, com língua de fora e cornichos no ar. Chega. Dou de frosques e só páro no Palco Clubbing onde NBC dá espectáculo e acaba de chamar Sam the Kid ao palco para delírio da muita gente que ali se começa a juntar. Afinal parece que isto vai melhorar…ERRADO. Avança-se até ao Palco Heineken e quando se pensa que a possibilidade de ressurreição do nu-metal (só de dizer isto crescem-me brotoejas gigantes nas unhas dos pés) seria a pior coisa que poderia acontecer ao mundo civilizado, atravessam-se-nos uns gajos chamados Bleachers. Para além de parecerem saídos do Geordie Shore (versão New Jersey Shore, no caso) estes estivadores musculados fazem da pior merda de música alguma vez ouvida deste lado do Planeta. Um vómito entre o pop rock seboso de uns Soul Asylum ainda mais 80s nos 90s e a histeria pop chunga de uns Fun… ah espera, é mesmo a outra banda do gajo dos Fun…olha-se para cima e passa um avião a publicitar a grande abertura do Verão de Vilamoura, já no dia 18. Confere.

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Fotografia da Ágata Xavier.

Fugir. Rápido. Até porque a salvação pode estar próxima. De volta ao Palco Clubbing, agora a transbordar, mesmo a tempo de Capicua. Apesar de lesionada num pé, a Ana ("sim só Ana"), entra a rebentar e desfila sem apelo nem agravo rimas carregadas de mensagens políticas e sociais, com substância, verdade e entrega - o que, provavelmente para grande parte do público não se sobreporá à importância dos beats e do balanço, mas o que é que isso interessa? Ilustração ao vivo no ecrã, tapete sonoro carregado de funk e soul a impregnar os ritmos hip-hop mais clássicos, a comparsa de prosa M7 a encher ainda mais o som, e o convidado Valete a dar as boas vindas lisboetas à trupe nortenha.

Uma festa do caraças que, depois da intensidade de "Jugular", da dureza de "Medusa", da emoção de "Hora do Medo", ou das saudades de um possível futuro em "Casa no Campo", desagua num daqueles momentos de loucura generalizada com "Veyorken". Canção maior. Das que há uns anos se anteporia sempre o predicado "O êxito". Uma espécie de "Efectivamente" (GNR 1986) desta geração, que de tão pop boa e pegadiça que é, tanto pode ser cantada a plenos pulmões pelo fã mais hardcore da Ana ("sim só Ana"), como trauteado por uma qualquer dona de casa no autocarro de regresso das compras do dia. Capicua pode até parecer demasiado comuna para um NOS Alive, claramente burguês, mas já se sabe, há música que faz milagres e, se não garante "Paz, Pão, Saúde, Habitação", pode pelo menos deixar meia dúzia de cabeças de vento a pensar "naquela merda que a gaja disse" e que até tinha "bué de lógica".

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Ganhou. E no campeonato dos palcos secundários se calhar só se voltaria a ver uma intensidade colectiva desta ordem no dia seguinte com os…Dead Combo. Tugas, gigantes, a partir tudo e a acabarem com uma versão alucinante da música de "Zorba, O Grego". Busca Tibi!

Mas ainda é Sexta e depois de uma paragem aterrorizadora no Palco Heineken, onde é preciso lavar os ouvidos com sabão azul para tirar a porcaria deixada em poucos minutos por uns tais de Kodaline e as suas músicas para reclames de telemóveis, assenta-se arraiais no Coreto. Uma programação de base nacional, bem amanhada com os Los Waves a estremecerem o palco e a conquistarem a atenção de muita estrangeirada valente, e os Tape Junk a perderem a atenção de alguns só mesmo quando ali ao lado os Future Islands arrancam das entranhas uma actuação de antologia. Daquelas que num piscar de olhos acrescentam mais umas centenas aos milhares de fãs que no último ano os norte-americanos foram conquistando à conta de um quarto disco magnifico ("Singles") e de anos de vida perdidos/ganhos em palco por uma personagem que se contorce numa dança frenética, canta de forma épica e nos olha nos olhos de forma psicótica. Chama-se Samuel T. Herring e, se não o era já (não foi há muito que esgotaram com meses de antecedência o Musicbox na estreia lusa), é muito provavelmente o responsável por mais um daqueles casos de amor incondicional entre um artista e o púbico português.

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Condição que já não é estranha a Chet Faker, depois de no espaço de uma semana encher dois Coliseus de Lisboa e no Sábado regressar ao NOS Alive para novo banho de multidão e com isso deixar no ponto certo o Palco Heineken para o que, certamente para quem lá estava, era o momento mais aguardado de todo o Festival: os Jesus and Mary Chain tocam na íntegra um clássico dos clássicos da música independente, "Psychocandy". Disco com 30 anos, revisitado por uns irmãos Reid de novo em topo de forma. O que, neste caso, significa que o mano William está lá encostado aos amplificadores a rebentar os tímpanos com o feedback mais adorável alguma vez criado por mão humana e não fará qualquer gesto que não implique tocar guitarra, e que o mano Jim recuperou a sua pose perfeita de galã drogado, quase imóvel, agarrado ao microfone e imerso em fumo branco, voz inconfundível e carregada de vontade de nos mandar todos para o caralho. Não quer. Já não quer.

De "Just Like Honey", a "Never Understand", de "Taste of Cindy" a "YouTrip Me Up", é a banda sonora da adolescência de muitos que ali estão a desfilar-lhe perante os olhos. O mundo era um lugar muito diferente em 1985, mas "Psychocandy continua a soar perigoso, marginal, frio assombrado e a um mesmo tempo doce e caloroso. Eu sei onde é que estava quando o ouvi pela primeira vez e de certeza que também não me esquecerei de onde estava a 11 de Julho de 2015 e que depois do álbum ainda tocaram "Head On", "Some Candy Talking" e "Reverence". Um grande, redondo e enorme, FOda-se!

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Fotografia da Ágata Xavier.

O mesmo FODA-SE que merece a dupla esquizofrénica de laptop e voz Sleaford Mods e o mini caos que instalaram ainda cedo naquele mesmo palco, para a devastação sónica lançada pelos escoceses Mogwai e o seu rock instrumental de eriçar pêlo, ou para os Cave Story, das Caldas da Rainha que caíram num caldeirão de Pavement e Sonic Youth quando eram miúdos e fizeram do Coreto, mais uma vez, local de romaria.

Foda-se também, mas em minúsculas e com veneno, para as selfies. Selfies selfies, selfies com os amigos e os amigos dos outros, selfies com o Raminhos… e depois é o raio do jingle do vinho que rima com alegria… Mas lá está, 2015 não é 1996 num Vilar de Mouros de campismo abaixo da condição humana, de condições de salubridade e higiene alimentar de que é melhor não nos lembrarmos sob risco de contrairmos uma intoxicação com 20 anos de germes em pousio. Há agora duas décadas inteirinhas de festivais organizados de forma regular em Portugal e quem os sustenta é o público, sim, mas é também, essencialmente, a rede de parcerias comerciais que cada um deles monta e que o aproxima mais ou menos do suposto mainstream, do "é dos 7 aos 77". Nesse aspecto, este é muito bem capaz de ser o mais equilibrado e aquele que quando tens 15 anos os teus pais te deixam ir e daqui a um ou dois anos será desbloqueador para outros mundos, outras bandas, outras procuras.

Fotografia da Ágata Xavier.

Sinta-se ou não falta da aventura, do risco e do salto no desconhecido (ou no "um bocadinho desconhecido" vá, porque apesar de tudo estamos num cenário urbano e não no meio do pinhal), goste-se ou odeie-se grande parte dos cabeças de cartaz, pelo menos aqui, neste campeonato dos "melhores festivais da Europa", ou seja, dos que metem mais povo, custam mais dinheiro, mas também têm mais retorno e teoricamente são melhor organizados, o NOS Alive não desilude.

No meio da algazarra, da maré de betos e das mais de 50 nacionalidades que os organizadores garantem estarem representadas, há muitos bombons para melómanos, a circulação é fluída, não há filas para beber, não há filas demasiado problemáticas para comer, a escolha gourmet-chique é ampla, mas também se pode comer só uma clássica bifana, um descomprometido cachorro ou uma alarve sandes de leitão, há matraquilhos para quem o que quer "é convivío", espaço suficiente para estar só na palheta, e das macacadas das marcas só se dá conta se se quiser mesmo e se der uma volta pelos respectivos stands.

RTP. Fotografia da Ágata Xavier.

Está tudo menos intrusivo ainda que incandescente e de encher o olho, mas estruturalmente bem montado. O que é bom para quem gosta de música e garante à organização não só o benefício da dúvida anual da crítica mais exigente, como, mais importante seguramente, o retorno positivo dos parceiros. É isso que lhes permite acolher 155 mil pessoas em três dias e, claro de ter já garantido que em 2016, de 7 a 9 de Julho, lá estará tudo montado outra vez, com mais gente (ou pelo menos o mesmo número), com uma cobertura televisiva e online, a cargo da RTP, de tal forma bem sucedida que catapulta todo o impacto mediático para um nível que terá de ser a fasquia a partir de agora, com mais bandas horríveis e outras fabulosas, com betos, indies, góticos, hip-hopers, hipsters, milfs indie, só milfs, bifes e bifas com escaldões de medo, pais e filhos, filhas sem pais e com calções demasiado curtos, tendas com espectáculos de humoristas com mais gente que alguns músicos, gente a sair de casa pela primeira vez, gente que não saía de casa há muito, curiosos, rezingões, deslumbrados, gajos dos bares a pedirem identificação a gajas giras que obviamente têm mais de 18 anos…enfim, dá para tudo e isso às vezes é bom. Momentos de maior erudição (soltem-se risos trocistas, por favor) há com fartura nos Primaveras, Couras, Reverences e Milhões desta vida.

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