​O que aprendi sobre Portugal durante uma madrugada no mítico Bigodes
O Bigodes. Foto pelo autor

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Relato

​O que aprendi sobre Portugal durante uma madrugada no mítico Bigodes

O universo por muitos desconhecido dos intemporais cafés-restaurantes de beira de estrada tem muito para nos ensinar sobre o País que somos (e que fomos). Ou não.

Dia de semana, insónia pela madrugada, sair de casa, apanhar a Estrada Nacional nº 1, conduzir algumas dezenas de quilómetros e ir comer uma bifana ao mítico Bigodes, um café-restaurante à beira da estrada, bem no centro de Portugal. Como companhia, camiões, alguns ligeiros, um táxi e um motociclo.

Durante o dia, como nas restantes vias nacionais, o tráfego é intenso, sendo que o veículo pesado de transporte de mercadorias é rei. A lendária EN1 foi, durante muito tempo, o principal elo de comunicação terrestre entre Lisboa e o Porto. Mas, com a auto-estrada concluída em 1991 a ligar as duas cidades, esta via - em determinados troços mais rápidos também conhecida como IC2 - perdeu gás.

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Aliás, os mais novos não se lembram, mas chegaram a mandar-se pedregulhos a partir de viadutos para o meio da auto-estrada para assustar quem por lá circulava. Pelo menos uma pessoa morreu. No entanto, o progresso continuou implacável. Parece que foi num Portugal de há 500 anos, mas não, foi há pouco mais de 20. Antes de 91, numa viagem de Expresso, Lisboa - Leiria, por exemplo, a auto-estrada acabava ali em Aveiras, o motorista saía para a EN1 e parava no restaurante Pôr do Sol 2, em Aveiras de Cima, um outro mítico, de paragem quase obrigatória. Entre uma ida ao WC, ou não, sempre se metia ali alguma freguesia e o motorista era uma espécie de embaixador, ou facilitador, do negócio, chamemos-lhe assim.

Mas, com a crise económica e o aumento das portagens, de há uns anos a esta parte algum do fulgor de outros tempos parece ter voltado e o trânsito aumentou nas Estradas Nacionais. Nas suas bermas, há todo um País de serviços à disposição e à noite as luzes dos mais variados ramos de actividade marcam presença. No centro das cidades já não se vêem muito placards a anunciar "dormidas". Parece que antes havia mais pragmatismo. Se é para dormir, é claro que se diz "dormidas", que raio é que haveria de ser?


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À noite não há meninas à beira da estrada, nem aqueles parvos a ultrapassar em sentido contrário. Aqui e ali vão-se encontrando alguns semáforos para controlar a velocidade, um ponto que, durante o dia, pode ser enervante, quando aqueles espertinhos que não cumprem a velocidade estipulada, passam o verde no último segundo e os que vêm atrás é que têm de parar. Geralmente é aquela malta retorcida que, se te vêem a entrar num cruzamento onde não tens prioridade - embora eles ainda venham relativamente longe e tenham tempo - são capazes de acelerar a fundo só para te poderem apitar.

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De facto, à noite não há muito aquelas gazelas cheias de pressa dos carros ligeiros encostados ao camião da frente, com meio pneu a pisar o traço contínuo a espreitar… a ver como é que é, a ver se já dá para ultrapassar. É claro que, para uma pessoa que faça isto todos os dias, pode ser mesmo muito frustrante. Compreende-se, apesar de alguns exageros.

Geralmente, os exageros são cometidos por muitos daqueles de gama alta, que são demasiado espectaculares para rodarem atrás de alguém. É também hábito dessas espécies não fazer pisca, pois - como todos sabemos - são pessoas demasiado importantes que não devem explicações a ninguém. Aliás, até há pouco tempo, os Mercedes tinham prioridade nos cruzamentos. Não estudaram isso no manual de condução do João Catatau? Não, que esse era dos bons.

Cozinha Tradicional Portuguesa. Foto pelo autor

Às 0h40, o Bigodes ainda tinha algum movimento, depois da uma da manhã abrandou e entrou em modo madrugada, com três camionistas a falar de questões laborais e de dinheiro, um outro indivíduo de fato e gravata a cear. Ao balcão falava-se das previsões de alguma chuva para o dia seguinte e já não se comentavam as notícias da televisão, que o dia ia longo. Wi-Fi aberta e sem password? Categoria de estabelecimento, pá.

Foi-se falando de apostas desportivas na plataforma Placard, que somos o País que temos, no Canadá é melhor… e pelas duas da manhã, um senhor idoso, bem vestido, bebeu uma água e comeu um bolo de arroz. Parecia o Bernie Sanders com um ar muito cansado, bem-haja. O outro também deve andar assim.

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No estabelecimento destacam-se as diversas peças de cutelaria para venda ao público, uma colecção que faria o Rambo chorar de alegria. Para a malta mais nova, o Rambo era uma espécie de Game Of Thrones, mas de um gajo só, e em vez de terras distantes, aquilo bem que podia ter sido rodado ali ao lado, nas Serras de Aire e Candeeiros.

A bifana é boa, mesmo boa, uma especialidade. Como aquelas de Vendas Novas, simples - se for em bom - mas também há a variante para estragar com queijo, bacon, especial ou grelhada. Três sumois de ananás e duas bifanas depois, não há paciência para a profundidade da linguagem corporal do Rui Santos na SIC Notícias. Além disso, ele tira os óculos para ler. Há quem faça o contrário.

Pelas três da manhã bebe-se o quarto Sumol, ou não? Pode fazer mal e não faz sentido, é melhor não. Cá fora, mas já dentro do carro, no parque de estacionamento, ao lado de alguns camiões bateu alguma nostalgia de quando eu andava também nestas lides pela Europa fora e dormia na carrinha cheio de frio, para guardar o material da companhia de dança com quem andava. De facto, já alguém o disse e com razão: às vezes, o importante nem é o destino, mas sim a viagem.

Nisto, sai o último casal que se encontrava dentro do estabelecimento e, na noite calma, talvez por não se aperceberem que estava ali mais alguém, feito mirone, ele arrotou e ela escarrou. É claro que nesta altura o caro leitor está bastante impressionado pois nunca fez isso na vida, não é?

Depois, talvez por osmose, arrotei eu e o cheiro a alho fez-me lembrar uma outra bifana que costumava comer nos anos 80, na Mealhada, no restaurante Constantino, à beira da estrada, a caminho de Viseu. Em vez de Sumol, acho que era Frutol.


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