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O que aprendi sobre revivalismo no regresso a Vilar de Mouros

Em 1996, o regresso de Vilar de Mouros, então parado desde 1982, significou o arranque da indústria dos festivais de Verão em Portugal como hoje os conhecemos. Deslocalizados e feitos para um público urbano em busca da epifania campestre.

Todas as fotos pelo autor.

Que grande concerto dos Orchestral Manoeuvres in the Dark (OMD) em Vilar de Mouros, a começar logo a abrir com o Enola Gay. E não, não foi em 1982, foi mesmo em 2016. Regressar a um sítio mítico 20 anos depois de 1996, um verdadeiro rito de passagem, fez revirar algumas memórias.

Em 96 celebrava-se o grande regresso do Festival depois da longínqua edição de 1982, que tinha contado com os novatos U2, The Stranglers, ou os Echo & The Bunnymen - também regressados este ano e que não se lembram da sua primeira passagem por terras minhotas. Nessa altura, um ano depois do primeiro Super Bock Super Rock e um ano antes do primeiro Sudoeste (Paredes de Coura levaria a cabo neste ano a quarta edição, mas a primeira com nomes internacionais), a viagem fez-se num Renault 5 creme, com menos auto-estrada do que a que há agora e a estrada atlântica, de Viana do Castelo até Caminha, era ainda mais linda do que é hoje.

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Nesse ano, embora quisesse muito, não tenho grande ideia de ter visto - talvez porque tenham sido os primeiros - os Um Zero Amarelo, banda com ligações aos Mão Morta e dona de uma voz - a do intenso António Cunha - que exorcizava letras de grande beleza e sofrimento. Oiça-se, num tubo perto de si, o disco homónimo editado mais tarde, em 2000, pela Norte Sul, e atente-se a canções como a desesperadamente bela Oriente Selvagem, ou Como um Cavalo Louco, com o mantra "uns dias sim, outros dias não, melhores dias virão".

Já os The Astonishing Urbana Fall, uma banda milhões de vanguardista, oriunda de Barcelos, causou impacto e alguma estranheza nos presentes. Ainda hoje causaria, pois há vanguardas que estão sempre à frente, passe-se a redundância. A estes ainda lhes podem seguir o rasto através da sua reencarnação sob a forma de La La La Resonance.

À época, o filme O Ódio, tinha saído no circuito independente e este colectivo audaz lançou-se furiosamente e aos berros a uma frase chave da obra: C'est l'histoire d'une société qui tombe. O concerto em si, passados 20 anos, é hoje apenas uma espécie de ruído branco, mas parece que foi bom.

Já houve anos com mais gente em cima desta ponte.

A nível internacional, a grande ausência em 1996 foi a dos Tindersticks. Na altura na mó de cima, com dois discos editados (e irrepreensíveis), os britânicos eram tidos como uma espécie de música alternativa para ouvintes quase adultos, bem vestidos, cansados dos cabelos mal lavados à la Pearl Jam, Nirvana, e assim. Havia uma grande curiosidade, mas ficou adiada. Voltaram depois, várias vezes, e este ano voltaram mesmo a Vilar de Mouros.

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E, claro, não se pode falar de Vilar de Mouros 96, sem abordar a questão Stone Roses. Eram uma das bandas mais esperadas, mas a desilusão tornou-se lendária [NOTA DO EDITOR: este que muito vos estima, tem uma discordância também ela lendária, para com esta situação aparentemente consensual e tem a dizer que o concerto dos Stone Roses foi mal compreendido por todos, menos por mim e por outro gajo ao meu lado nas grades]. A lidar com os excessos do rock n' roll, o vocalista Ian Brown desafinou à brava, houve gente a chorar e tudo, pois era um concerto pelo qual Portugal ansiava. Já os Young Gods deram um show de antologia e puseram aquela geração de cabelos meio compridos e feios a saltar.

Juventude em Marcha.

Já sabem que o concerto dos OMD em 2016 foi do caraças? Pois é, sem revivalismos confrangedores de malta que se arrasta pelo palco e nem sabe que há um tempo para parar, os britânicos montaram um bailarico de baixo, sintetizadores e bateria, capaz de ombrear com muita banda novata. Mas já lá vamos.

Neste ano de regresso, a fauna do Festival Vilar de Mouros era francamente mais velha, o que se notou pelo grisalho no ar, pelos poucos telemóveis a estorvar o campo de visão e a filmarem todas aquelas coisas que depois nunca mais ninguém vai ver. Se bem que havia por lá um ou outro que se colava na grade e gravava tudo numa camcorder, com um ar imperturbável, quase de missão. Ao fim de 20 anos - um gajo já merece, porra - os enlatados foram substituídos pelo Pernil do restaurante da Pensão Rio Coura (mesmo na rua da estação da CP, em Caminha, não há que enganar), ou da incontornável Posta (de carne) à moda da casa, do restaurante Mariana, perto da praia de Afife, sem nunca menosprezar o Robalo.

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A única foto de palco que ficou mais ou menos. O cabrão do Peter Hook a emocionar as gentes com o tributo discutível (mas eficaz) aos seus Joy Division.

Ah, pois… o Festival…. Vamos lá ver uma coisa: Love Will Tear Us Apart, dos Joy Division é triste como tudo. Qualquer coisa como, o amor vai separar-nos outra vez, (ou dilacerar, ou coisa pior). Não é leve. Metam no Google, traduzam e vejam o que é que andam a fazer a isso. Isto para dizer que quando Peter Hook, baixista dos Joy Division e New Order cantou esta música perante um público de 2016, alguns com t-shirts da Zara ou lá de onde seja, a malta recebeu-a com uns la la las muito alegres, como se estivessem a cantar os acordes iniciais do Seven Nation Army, dos White Stripes, num estádio de futebol.

Houve um senhor ao meu lado que chorou e isso podia bem ser porque teria chegado à conclusão de que há um tempo que acabou. Mas como o próprio explicou mais tarde aos microfones da M80, a rádio oficial do evento, aquilo foi mesmo uma "descarga emocional". Tinha vindo de propósito da Suíça, depois de ter estado em Vilar de Mouros pela primeira vez em 1982 e, "ao ouvir ali os Joy Division, foi um momento muito especial". Por acaso foi. Assim como todo o concerto. Mas todos sabemos que os Joy Division morreram com o Ian Curtis e aquilo foi um simples tributo. Relativizemos, portanto.

Com 50 anos já podiam ter um cartaz mais jeitoso.

The Legendary Tigerman, em formato trio, quis partir aquilo tudo, mas o público estava meio apreensivo (ou à espera dos Happy Mondays). De certa maneira, também faz parte do espírito Vilar de Mouros haver momentos de transgressão e, por outro lado, também há artistas com "A" maiúsculo que, simplesmente, não sabem dar maus concertos. Por isso, Paulo Furtado, o baterista Paulo Segadães e o saxofonista João Cabrita, partiram a loiça toda. "Haters will hate, lovers will love", escreveu Paulo Furtado na sua conta de Facebook horas depois do concerto.

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Corações ao alto que os Happy Mondays (o nome é um trocadilho com a canção Blue Monday dos conterrâneos New Order) estão vivos. O vocalista, Shaun Ryder, já não se mexe como dantes - aliás, por vezes não se mexe mesmo nada - nem canta, indo mais por um registo narrado, como se de um Mark E. Smith dos The Fall se tratasse, o que não é mau de todo. Mas, apesar das limitações, ao vivo ainda conseguem fazer a festa e, sim, o lendário dançarino Bez apareceu! Magro e grisalho, bailou as primeiras três ou quatro canções, foi descansar, veio fazer uma perninha a meio, voltou no final e saiu a coxear (também eu) que isto não dura para sempre, apesar de ainda mostrar uma dinâmica invejável.

Já Peter Murphy veio cumprir o seu estatuto de cabeçorro de cartaz e ainda tocou o Cuts You Up, uma espécie de Creep dos Radiohead, no sentido que nem sempre a toca, sabendo muito bem que toda a gente a quer ouvir.

A memória dos Echo & The Bunnymen de Vilar de Mouros 1982 é ainda mais desfocada que esta imagem dos Echo & The Bunnymen no Vilar de Mouros 2016.

No dia seguinte os Echo & The Bunnymen regressaram a um palco que já tinham pisado em 1982. Ian McCulloch disse "aparentemente estivemos cá", o que prova que não se lembra e não é o único. Em palco, com pouca luz, desfilaram alguns clássicos, sempre com aquela pose de óculos escuros à noite, ó-pra-mim-tão-urbano-depressivo-tão-1982. Ainda houve um momento insalubre onde alguém do público mencionou o Brexit, Ian disse que a União Europeia era uma merda, mas a coisa ficou por ali.

Em contraste, David Fonseca trouxe a tenda atrás e foi dos poucos que se preocupou com o espaço cénico, não se limitando a um mero jogo de luzes (a par dos inevitáveis Blasted Mechanism). De resto, deu tudo, tem um público fiel, o concerto vai do repertório mais antigo ao mais actual, bilingue e com direito a reinterpretações dos Silence 4, Humanos e do próprio António Variações.

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Ali, o tema The 80's soou que nem ginjas e, tal como Paulo Furtado, também ele se aventurou fora do palco e foi mesmo para o meio da plateia, como se fosse a coisa mais natural do Mundo. É por estas e por outras que, desde há muitos anos, David vai cimentando o seu lugar nos anais definitivos da música em Portugal e nem será preciso ser fã para se perceber isso.

Vilar de Mouros em 1996, com qualidade de imagem de 1957.

E sim, os OMD deram um concerto de synth-pop com tudo no sítio. Bateria elevada num estrado ao centro, um sintetizador de cada lado (com Paul Humphreys, um dos co-fundadores) e Andy McCluskey ao centro a cantar e a tocar baixo com um à vontade quase punk rock. Aos 57 anos tem mais energia do que muito puto de 20.

É também de uma simpatia que mais parece o nosso vizinho porreiro do lado sempre pronto a ajudar. Nem parece que já vendeu 40 milhões de discos (!!!). Desfilaram os clássicos todos, ou quase todos - infelizmente Telegraph ficou de fora, mas isso já são gostos pessoais - e Enola Gay logo a abrir só mostrou ao que vinham e sem medos. Merecem regressar a Portugal, pois esta foi, imagine-se, a primeira vez que cá tocaram!

No último dia, os Waterboys mostraram que se foram adaptando aos tempos. O seu líder, Mike Scott - da mesma idade do vocalista dos OMD - é um músico completo e nota-se. Com uma vertente um pouco mais americanizada, mais blues, as sonoridades irlandesas estiveram um pouco arredadas, mas claro que, para finalizar, não faltaram as inevitáveis Fisherman's Blues e The Hole Of The Moon. Goste-se ou não, são clássicos intemporais, que nos entraram pela telefonia dentro nos anos 80 e 90 e que, neste contexto festivaleiro-revivalista fizeram a malta sentir-se de novo em casa.

Os Tindersticks chegaram a Vilar de Mouros com 20 anos de atraso, mas nestas duas décadas não faltaram oportunidades aos portugueses para os verem em palco. Deram um concerto suave e Stuart Staples até agradeceu a paciência e o compromisso do público. Foi uma actuação demasiado bem arrumada para um festival, mas, ainda assim, quem quis ouvir com atenção percebeu que as músicas foram tocadas de forma exemplar. Cumpriram, é certo, mas são mais uma banda para auditório. E que banda.

Com caras familiares que já não se viam há muito tempo entre o público, este é um festival tranquilo. A preocupação com a comodidade dos presentes foi notada, faltando apenas, dentro de recinto, mais lugares para estes velhos ossos se sentarem sem ser no chão. A fila para a cerveja nunca esteve particularmente demorada como em outros festivais, a intrusão de marcas não choca e não há aquela violência quase pornográfica de marketing onde é tudo bué de jovem e montes de alto.

A ver como cresce, que rumo segue e se quer continuar a apostar no revivalismo que parece ser uma aposta ganha, pois foi buscar um público algo afastado destas lides festivaleiras e que, se calhar, até tem mais algum poder de compra, o que é bom para toda a região. Bem-vindo, Vilar de Mouros. Foi bom voltar a ver-te.