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Os filmes de baixo orçamento são o novo punk

Filmes DIY, bebidas alucinogénicas e o Steven Seagal de Cascais.

Afonso Cortez é uma excelente companhia para uma noite de copos. Normalmente encontramo-lo com uma camisa tropical, nos lugares mais imprevisíveis de Lisboa, a contar como gosta dos Hawkwind ou de como certo disco lhe deu um abanão na vida.

A dada altura da sua juventude, o Afonso cansou-se dos discos da 4AD (Cocteau Twins, Dead Can Dance), vendeu uma boa parte deles e decidiu que queria ser um punk de rua em vez de um sonhador de quarto. Outras vezes foram os seus amigos que descobriram os álbuns de Turbonegro e foram todos dançar, embriagados e quase nus, para uma estação de serviço nos arredores de Cascais.

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Já deu para perceber que a música são as rodas na bicicleta que o Afonso Cortez pedala à velocidade que lhe apetece. Não é certamente um gajo de modas, tão pouco persegue a

next

big

thing

. Prefere, em vez disso, dar atenção ao underground nacional e é por isso que tem investigado sobre as décadas mais recuadas do rock português. Atirem ao ar um número da década de 60 e é provável que o Afonso tenha um single refundido desse mesmo ano capaz de nos deixar a abanar o rabo numa festa. Não admira, portanto, que a música tenha contagiado a outra faceta do Afonso: fazer filmes.

Em vez de ficar a queixar-se da falta dos financiamentos que nunca chegam, o Afonso juntou-se a alguns amigos para filmar com o que se arranja e, no espaço de apenas um ano, surgiu a oportunidade para lançar dois dos seus filmes: a tragicomédia musical

Calor e Moscas

,co-realizada com Bernardo Rão, estreou em Março no Cineclube de Telheiras perante uma plateia cheia; agora é a vez de

A Vida Ruim de Marion Cobretti

, co-realizado com Luhuna Carvalho, espalhar toda a sua escola punk por todos aqueles que aparecerem na

Feira Laica

, ali perto das Amoreiras, no próximo domingo, dia 1 de Julho (por volta das 16:30).

O Afonso tem um gosto contagiante por cinema: dormi durante uma boa parte do

Filme do Desassossego

e, quando me contou tudo o que perdi, arrependi-me de ter passado uma hora a roncar no banco atrás da Margarida Prieto. Foi também por conhecer esse entusiasmo que lhe liguei para ficar a saber mais sobre estes seus dois filmes e sobre o que há para fazer na Feira Laica.

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VICE: Conta lá, que bebida era aquela que mandaste vir no meu aniversário há um ano?

Afonso:

Fernet Branca aka Ferrandini. Bebida concebida por abades italianos feita a partir de 27 ervas diferentes. Há quem diga que tem algumas propriedades alucinogénias, mas nunca consegui beber quantidade suficiente para chegar a esse ponto. Chegaste a experimentar?

Não, nessa noite estava com carro. Mas aquilo parecia-me só para duros.

É a melhor maneira de ficares amigo do barman. Ninguém pede aquela merda e quando alguém pede eles quase que se benzem e acabam por oferecer um copo. Só há uma pessoa que conheço que gosta daquilo, o Manuel Mota.

Sei que gostas de beber uns copos noite fora. Tens noção de alguma ideia que te tenha surgido num delírio de copos e na qual tivesses pensado a sério no dia seguinte?

De há uns anos para cá tenho tido ressacas terríveis e não consigo pensar no dia seguinte. Estou a falar a sério. Daquelas de ficar na cama a tremer de frio e calor.

Estou-te a imaginar como o Nicolas Cage no Viver e Morrer em Las Vegas.

Mais ou menos isso. Recentemente ensinaram-me que um dos truques para não vomitar é ficar sempre virado para o mesmo lado. Resulta.

Ter tonturas de embriaguez na cama é péssimo.

Mas, sim, há uma ideia que tive com a minha amiga Corrine — para uma BD — que nunca mais me esqueci e que tem de ser feita. Foi o mais sério que me lembro. Não posso adiantar pormenores.

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Falemos, então, de projectos teus que foram executados ou que estão bem encaminhados. Sei que vais apresentar A Vida Ruim de Marion Cobretti na Feira Laica. Como é que te surge essa ideia de fazer um documentário centrado num punk? E como é que conheceste o Rodrigo Velez, protagonista do filme?

Vou começar pela segunda pergunta. Lembro-me do Rodrigo desde os tempos do Johnny Guitar. Éramos os dois miúdos. Ele era aquele que fazia sempre merda. Nessa altura nem sequer me dava com ele. Depois encontrava-o em concertos e noites… Ele era sempre memorável pelo seu comportamento, mas também por viver o punk rock a 200 porcento. Ainda por cima na linha mais dura tipo Dead Boys, GG Allin e etc.. Depois ele andou desaparecido durante uns tempos. No final dos anos 90 o punk também morre mais uma vez, mas o homem não sei quando decide formar os Clockwork Boys. Ouvi a demo e sugeri fazer o vídeo para uma das músicas, a “Casino”. Nessa altura o Rodrigo trabalhava numa sex shop, conhecia as meninas todas, mas nenhuma delas trabalhava nessa noite e tivemos de agarrar aquela que se vê no vídeo ali mesmo, na rua. Depois disso o Rodrigo desaparece mais uma vez e quando volta a aparecer diz que tem um novo álbum e quer fazer mais uns vídeos. Nesta altura ele já é uma referência do punk através do seu blogue, o Rock das Cadeias, e depois, em conversa com o Luhuna, decidi que devia fazer um documentário sobre ele.

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Boa ideia.

Para mim o Rodrigo é das poucas pessoas que percebe de punk em Portugal, o homem domina todo o underground entre 77 e 82, além de que tem bom gosto e não é colecionador. Ele vive aquilo diariamente como se poderá ver no documentário. A ideia surge também da falta de documentários sobre música em Portugal. E tanto eu como o Luhuna, achámos que se alguém deveria falar sobre o punk, tinha de ser o Rodrigo. Claro que nada correu como esperado e em vez de ser um documentário, tornou-se quase uma reportagem sobre um dia na vida dele.

E em que altura da vida dele aparece o alter-ego Marion Cobretti, sabes?

Acho que é quando forma os Clockwork Boys e começa a fazer o blogue.

Quanto tempo de material tinhas, à partida, para a edição do documentário?

Cinco horas, serve também de

making

of

dos vídeos. Mas o que interessa ali é mesmo o estilo de vida do Marion Cobretti. É uma lição de punk, especialmente numa altura em que muita gente acha que punk é Tara Perdida e os Peste & Sida…

O que mais me impressionou no vídeo da “Casino”, além do refrão da canção, foi aquele par de mamas ter escapado à censura do YouTube.

Há pessoas que conseguem sempre passar por cima de qualquer regra e lei. Punk é isso mesmo, certo? Se um dia saíres com o Marion Cobretti percebes logo como as coisas funcionam. É a única pessoa que faz jus às palavras do GG Allin: "no limits, no laws". E ali tens um par de mamas que ninguém censura.

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O documentário simula um pouco desse feeling de sair com Marion Cobretti?

Esperemos que sim. Era esse um dos meus objectivos. Mesmo na maneira como filmámos e editámos. É quase cinema directo.

A Feira Laica parece-me o sítio certo para estrear o filme. Como apresentarias a Feira Laica a alguém que nunca lá foi?

A Feira Laica surge, muito resumidamente, como feira de publicações independentes — desde livros a fanzines, maquetes, serigrafias, etc. —, mas também como uma mostra do que se tem feito a outros níveis, como música e filmes (tanto documentário como animação). Em termos práticos: passas ali uma boa tarde na conversa e a beber cervejas, ouves música e tens contacto com o que se faz fora dos circuitos comerciais/galerias e etc..

Tem uma feira de usados e tudo.

Essa parte dos usados é das que rende mais. Material bom e barato. E muitos discos de merda que o Farrajota recebe para

reviews

.

Falemos agora um pouco do outro filme que tens também já pronto e que espera um destino mais certo, Calor e Moscas. Vi-o na estreia, em Telheiras, e ainda me fartei de rir. Em que ponto está isso?

Estamos agora a arranjar o som e a fazer cortes. Tem de ficar mais condensado. Como disseste, demora a arrancar. Depois logo se vê o que conseguimos fazer com aquilo. Começo a achar que foi um erro ter feito uma longa. Em Portugal querem-se é curtas. Deu para ver o que aconteceu com o filme dos Irmãos Catita, que teve de ser retalhado e transformado em série.

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Mas o Mundo Catita funciona muito bem como série e até estou a ver bem o Calor e Moscas dividido em três ou quatro episódios.

Sim, funcionou. Qualquer formato funciona com eles. Vamos experimentar isso. Vou, de qualquer forma, tentar marcar uma série de auditórios para exibir aquilo por Portugal. Já que foi um filme independente desde o início, acho que essa via de construir um circuito alternativo para exibição é uma boa ideia. O que não faltam são auditórios abandonados.

Senti, a certa altura, que o filme ficou mais DIY à medida que ia avançado. Confirmas que os recursos foram diminuindo? Reparei que até fazias lá uma voz de rádio.

O filme foi desde DIY o início. Nunca tivemos qualquer apoio, nem sequer tentámos porque envolve sempre demasiada burocracia, logo cedências. Mas, sim, foram faltando os recursos e foi faltando a equipa. A única coisa que podíamos pagar era comida e álcool — o filme foi feito só com isso — e, a dada altura, as pessoas perdem a paciência. Repetes dezenas de

takes

, filmas durante 14 ou mais horas por dia e, sem dinheiro à mistura, para quem não acredita no projecto, torna-se difícil. Mesmo assim tivemos pessoas impecáveis e incansáveis, desde o início. Caso dos actores e de alguma parte da equipa. Acabámos por fazer mais tarefas do que esperávamos. Nos últimos dias, a equipa eram duas pessoas e tinham de ser os actores a ajudar, como foi o caso da Anaísa. Mas foi uma vitória. Não é fácil fazer uma longa-metragem com meia dúzia de tostões, mas conseguimos. Aprendemos imenso e divertimo-nos.

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Deve ter sido caótico.

Há centenas de histórias por trás do filme… Tenho pena de não termos tido alguém a fazer um

making of

, serviria como manual de filmagem de guerrilha. Desde os projectores que ligávamos a baterias de carro, até fritar rissóis em plena filmagem.

Fritar rissóis?

Dei o exemplo do fritar rissóis porque já nem tínhamos dinheiro para comprar nada na rua. Tivemos de recorrer ao Lidl e aos produtos com o polegar que se vendem no Jumbo. Foi DIY até à última instância: fazer comida enquanto se desenha o

storyboard

para filmar nesse mesmo dia.

Não imagino os Rage Against the Machine a fritar rissóis. E como é que o Fernando Cunha aparece no filme?

Quando decidimos fazer o filme, uma das ideias-base é que tinha de ser musical. E como não tínhamos dinheiro e escrevemos o filme para ser todo rodado aqui por Cascais, tornou-se óbvio para nós que tínhamos de ter alguém dos Delfins. O Fernando, como ele mesmo disse, "já não tinha nada a perder" e aceitou. E foi assim que conseguimos, finalmente, realizar o sonho de muitos: ver o Fernando Cunha a imitar o Steven Seagal num breve momento inspirado na cena histórica do

Nico

, aquele em que ele parte a boca a todos com bolas de bilhar. O Fernando foi impecável apesar de numa das cenas estar sempre a olhar para a câmara e de ter cantado uma música dos Rádio Macau, em vez de uma dos Delfins, o que nos vai dar mais trabalho em termos de direitos de autor…

Dirias que, durante a cena das artes marciais, ele manteve também alguma daquela postura zen que é sempre muito característica do Steven Seagal?

Nada zen. Já se estava a passar com o próprio filho, que levou para as filmagens e não se calava. Foi um bom momento de família.

Há um pessoal que curte fazer piadas com os Delfins, mas sinto que Cascais manteve sempre um respeito especial por eles. Tu que és daí, sabes-me explicar um pouco melhor como é a reputação dos Delfins em Cascais?

Por acaso não conheço ninguém que respeite minimamente os Delfins, mas tem de haver quem goste porque, quando eles tocavam, aqui estava sempre cheio. Outros tempos, claro. Mas qualquer um deles é impecável como pessoa. O Fernando ajudou-nos muito com os Morte Forte.

Fala-me um pouco disso.

Morte Forte surgiu como imitação dos Turbonegro quando os Turbonegro acabaram, mas nunca conseguimos ir a lado nenhum. Estragámos a vida a algumas pessoas. Já não foi mau. Mas podíamos ter sido piores.