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Os profissionais da desordem também têm uma voz

Mas geralmente falam atirando pedras.

No que toca a manifestações, é consensual que no último ano houve dois momentos particularmente importantes, ainda que por motivos diferentes. O primeiro desses momentos foi a mega-manifestação de dia 15 de Setembro, em que cerca de um milhão de pessoas saiu à rua e decidiu dizer “basta” a um conjunto de coisas que dificilmente se poderão quantificar (a TSU, a troika, o desemprego, etc).

O Jorge.

Há, contudo, outro momento que não se esquece. Falo, evidentemente, da

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manifestação do dia 14 de Novembro

. Nesse dia, tinha sido marcada pela CGTP uma greve geral à qual o movimento Que Se Lixe A Troika, então no auge da sua popularidade, acabou por se juntar com sucesso. Esse foi o dia que acabou por ficar para a história, não pelas mensagens ou pelos discursos de denúncia a um governo que está a empobrecer o país, mas sim pelos actos de violência de parte a parte. Depois do discurso do Arménio Carlos, todo o país assistiu, com directos de duas horas e comentários televisivos a partir do topo das escadarias do parlamento, a um tipo de violência sem precedentes nos últimos 20 anos.

Depois das cargas, o ministro dos Assuntos Parlamentares, Miguel Macedo, foi lesto a ir à televisão elogiar a polícia, absolver a CGTP e condenar a

“meia-dúzia de profissionais da desordem”

pelo ocorrido. Essa foi, aliás, uma versão da história que, da esquerda à direita, nenhum agente político desmentiu. Ao longo dos dias seguintes, os vídeos desse dia foram difundidos até à exaustão. Criou-se, assim, uma espécie de mito, uma espontaneidade (aparente) que resultava apenas num vazio e que reduzia as pedradas a um acto de violência irracional.

Foi por isso que decidi falar com elementos que tivessem estado envolvidos nos confrontos de 14 de Novembro. Tanto o César como o Jorge (nomes fictícios) assumem ter estado presentes nessa manifestação. O primeiro arremessou pedras, mas garante que foi apenas como resposta às cargas policiais que considerou injustas. O segundo assume ter feito parte do grupo que se colocou na frente dos protestos e que passou cerca de hora e meia a lançar pedras contra o cordão policial que se formou na parte inferior das escadarias.

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O César tem mais de 30 anos, já trabalhou em dois call centers ao mesmo tempo, mas desde 2009 que está desempregado. Há uns anos esteve na cadeia por tráfico de droga. Antes mesmo de o governo ter apelado à emigração, já ele o tinha feito. Neste momento, voltou a estudar e continua à procura de biscates para poder sobreviver.

Sobre o activismo em si, recorda que quando era mais novo “participava em todas as manifestações”. Nos últimos anos até “já se tinha afastado”, mas o rumo das coisas levou-o “à necessidade de estar activo”. Actualmente diz não fazer parte de nenhum grupo ou movimento político, apesar de se identificar com alguns deles.

O César.

O facto de ser membro de uma claque levou-me a perguntar-lhe se houve claques organizadas nas manifestações, outra ideia também difundida nas redes sociais. Admitiu que “na manifestação de 15 de Setembro havia mais claques”, mas que nos episódios de 14 de Novembro, isso não era verdade. Nesse dia foi directamente para São Bento com uma amiga. Como já tinha uma detenção no currículo, procurou manter-se afastado — garante que na parte inicial esteve apenas a assistir.

Foi depois das cargas policiais e de “ter visto toda a gente a levar porrada” que a história mudou. “Depois das cargas policiais e dos disparos, levaram muitos calhaus meus”, recorda. Acabou por fugir pela Calçada da Estrela. Quando lhe perguntei sobre as imagens das pessoas agredidas injustamente, o César modera o ímpeto discursivo e afirma que não questiona “se foi ou não correcta a actuação da polícia”. Para ele, as pessoas que ali estavam são vítimas “de uma violência diária por parte do sistema e do governo que geralmente não é analisada nem é quantificada pelos meios de comunicação social”.

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O César garante que o seu confronto "não é, à partida, com a polícia” porque “a culpa de tudo isto é do governo que deixa que as coisas cheguem a este ponto”. Diz ainda que todo o processo foi espontâneo porque “uns são mais atrevidos, outros já têm experiência nesse tipo de coisas” e depois “juntando a situação económico-social ao facto de não haver perspectivas de um futuro melhor” acaba por ser fácil chegar a “um barril de pólvora” que talvez venha a rebentar “no final do Verão”, “depois das pessoas perceberem que passou mais um ano e não mudou nada”.

O Jorge é um estudante universitário. Depois de falar com ele dois minutos, percebe-se facilmente o seu desprezo pelo sistema (Estado, partidos e polícia). Aliás, a primeira crítica que lhe ouvi foi: “Estou lixado com a maneira como as coisas estão e farto de passeatas e partidos.”

A revolta contra este sistema não nasceu no ano passado — tem sido um crescendo —, mas o Jorge sente que “é com a crise que se vai desenvolvendo uma crítica”. Quando lhe pedi que falasse sobre esse dia, conta-me que “essa manif desde o início já estava a entrar num espírito de agressividade, por parte tanto da polícia como dos manifestantes”, talvez “por ser greve geral e não ser a cena do partido ou da primavera do não sei quê” — ou seja, “notava-se que ia haver problemas”.

O Jorge recorda que, chegados a São Bento, esperaram “que a CGTP fizesse a cena deles” para depois “fazerem o que se faz sempre: atirar as grades ao chão”. Achei curioso que falasse no plural, mas ele garante que não estava nada organizado, apesar de conhecer “algumas pessoas que atiraram pedras”. Por culpa da situação do país, diz, “era provável que acontecesse algo assim”, mas não tinha nada “combinado com os amigos”. Defende-se dizendo que viu “bué gente lá: betos, mitras”.

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Como também se viu pelos directos, a confusão a sério começou quando “o pessoal tirou as grades”, mas o Jorge culpa os polícias pelo clima de agressividade que se fez sentir naquele final de dia. “Normalmente as coisas são pacíficas, mas daquela vez foi bem mais agressivo. A polícia começou logo a dar-nos pontapés e a malta começou a responder.” Recorda que “até os gajos que foram pedir para a malta parar levaram porrada” e que terá sido aí “que o pessoal começou a perder a cabeça e a levantar os calhaus todos”.

Durante aquelas duas horas, o Jorge esteve “lá um bocado a mandar calhaus”, mas depois de ver que “aquilo não ia mudar muito e que não ia conseguir romper a barreira” acabou por “recuar para ver”. Para este estudante, “numa manif deve haver espaço para todos”, a saber: “para quem quer atirar calhaus e para quem não quer, para quem quer ter uma posição mais pacífica e para quem quer ter posições mais fodidas”. Aquilo que o deixa chateado é o “pessoal que está à procura de protagonismo e faz dos discursos palestras para o povo." Finaliza, dizendo que “o fixe era que as duas cenas se alimentassem”.

Sobre a sua eventual parte de culpa pelas cargas que muitos sofreram injustificadamente, o Jorge responde dizendo que “as pessoas em Portugal são bué ingénuas” porque “acham que só por não terem atirado calhaus que não levavam na boca”. “Quando a polícia carga, toda a gente leva na boca. A mim pareceu-me evidente que mais cedo ou mais tarde ia acontecer.”

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Talvez por isso tenha conseguido afastar-se cinco minutos antes. Fugiu pela D. Carlos I e relembra que “aí, a polícia ia carregando e o pessoal ia fugindo”. Nessa altura, “a malta começou a pegar fogo a cenas para criar barricadas”. Chegados “lá abaixo” viram “um fogo bué grande” que os bombeiros se preparavam para apagar, mas “a malta começou a dizer que a polícia tinha carregado e que era greve e os bombeiros não apagaram, deixaram lá aquilo na boa”. Só quando voltou para dentro, em direcção ao Chiado, para voltar a casa é que reparou “que havia fogos por todo o lado”, por isso não entende “como é que dizem que eram 20 gajos a atirar pedras quando depois havia dez fogos pelo bairro inteiro”.

Foto da manifestação de 14 de Novembro.

Quando insisti na pergunta sobre o facto de sentir o que se passou como um ataque da polícia, responde de forma brusca: “claramente." “Perseguem pessoas até ao Cais de Sodré para as deter de forma aleatória e ainda as espancam, o que pode ser mais? Aquilo foi um ataque da polícia. O governo pediu aos seus cães de guarda para espancarem toda a gente e eles obedeceram, como obedecem sempre.” Para o Jorge, “a polícia representa a guarda pretoriana do regime. Estão aqueles gajos lá dentro a foder-nos a vida toda e está ali a polícia, que foi aumentada uns dias antes, a proteger os chefes deles”.

Mas desenganem-se aqueles que pensam que tipos como o Jorge não foram atingidos. O próprio admite sem rodeios que “depois de tudo isto o pessoal ficou com medo”, mas também defende que se “deve perder o medo, todos juntos”. “Não dá para estar metade de Portugal a dizer ‘partam tudo’ para depois dizerem ‘afinal não’”. Sobre o futuro, diz que não tem “especial prazer em arranjar sarilhos, mas curtia que as manifs fossem mais do que uma passeata”. Seja como for, para o Jorge “é inevitável” que este tipo de coisas volte a acontecer.

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Foto pós-carga policial: não se vê disto todos os dias.

É curioso notar que, apesar de não partilharem as mesmas motivações, ambos reclamam para si a responsabilidade pelos actos praticados. Uma das acusações mais propagadas estava relacionada com a presença de “agentes provocadores na manifestação”. Tanto o César como o Jorge negam ter reconhecido agentes infiltrados. Os dias que se seguiram a estes acontecimentos nunca trouxeram o debate que era essencial ser feito. O país esqueceu os números dos manifestantes, as palavras de ordem, os cartazes, os discursos e, nos dias seguintes, tudo se resumiu ao conflito em si, aos “profissionais da desordem”. Injustamente.

Os relatos do César e do Jorge acabam por confirmar o que podemos ver nas centenas de vídeos espalhados pelo YouTube: entre os desordeiros podem ter estado activistas (como não?), membros de claques e pessoal de direita (porque não?) e

até pessoas com 64 anos

. Não é fácil estabelecer um perfil do desordeiro, quanto mais afirmar a sua profissionalização, confluência de interesses e métodos de actuação. Só serve para fazer deles peões sem capacidade analítica ou política.

Fixá-los à ao estereótipo é um truque. Tanto para acusar como para absolver — o que importa verdadeiramente é perceber que há ali um sujeito crítico e tentar encontrar o que os move (para lá das tribos, caso as haja). Parece que, em tudo isto, ficámos a meio caminho.