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Música

​Passei o fim-de-semana a ouvir cassetes

Aqui estou, com mais uma introdução nostálgica, porque o tópico assim o exige.

Ilustração da Iris Santos.

Não sei ao certo em que ano foi, mas diria que a última vez que passei o fim-de-semana a ouvir só mesmo cassetes terá sido em 1986, ou perto disso. A discoteca dos meus pais era relativamente humilde, embora dispusesse de espaço para muitas colectâneas (Hit Parade e Jackpot), e compilações caseiras que obrigatoriamente incluíam Dire Straits e Opus (como esquecer "Live is life"?).

Aqui estou, com mais uma introdução nostálgica, porque o tópico assim o exige: eram já muitas as cassetes amontoadas em duas torres, na ala esquerda da secretária, e decidi então que um fim-de-semana de Janeiro era a ocasião ideal para "fiscalizar" o material e reduzir a altura das pilhas. O que se segue é uma espécie de diário de apreciação das cassetes vindas das mais diversas editoras e dedicadas a todo o tipo de géneros. A vida é cheia de possibilidades, já dizia o título de certo disco de DNTEL.

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A tardinha de sexta-feira é passada a tentar descobrir as melhores palavras para descrever o tal mundo de possibilidades que existe na 1080p. Sediada em Vancouver, no Canadá, a 1080p tem um catálogo maioritariamente composto por cassetes, lançadas em quantidades limitadas (normalmente 200 cópias). São vários os títulos já esgotados na página de Bandcamp da editora, e isso é muitas vezes sinal de que há fruta de qualidade no mercado. Lifeworld, peça enevoada do recuperador de velharias Moon B, estava destinada a desaparecer rapidamente, porque já são muitos os faros atentos ao funk refundido do senhor Wes Gray. Nada disso nos impede contudo de o escutar em modo de viagem pelas feiras de discos do mundo: os dois lados de Lifeworld apontam para isso mesmo e podem ser da maior utilidade na hora de começar a desapertar botões numa festa de Erasmus (que, como se sabe, pede orgasmos). Quem sentir urgência em meter as mãos no material de Moon B pode sempre dar um salto à Peoples Potential Unlimited , onde não faltam novidades do produtor refundido.

Mas recuemos agora um pouco, na vistoria, para dar conta de que nem tudo são cassetes esgotadas na 1080p: Moondance, do canadiano Riohv, e Xerox, da dupla ATM, foram lançados em fita só mesmo por acaso, já que ambos os discos podiam muito bem conhecer um formato mais luxuoso. Ainda assim o som mais abafado da cassete adequa-se perfeitamente a cada um destes casos. Moondance não só partilha o título com um dos mais sagrados discos de Van Morrison, como também promove o que esse tem de mais perdidamente romântico. Trata-se, se quisermos, de um álbum que folheia o "Manual de como fazer boa techno", ao mesmo tempo que cria óptimos pretextos para ir ver o céu nocturno reflectido no mar. Não seria de admirar que o título da faixa "Gassed" e o seu ritmo 4/4 fossem referências directas à intocável obra de Wolfgang Voight enquanto Gas, e isso bastaria para conquistar a nossa estima. Igualmente afável é Xerox, álbum enamorado por uma house melódica tão depressa capaz de incorporar vozes fracturadas como de mergulhar em passagens mais abstractas (fazendo lembrar alguns discos da Delsin). Xerox nasce de uma correspondência por e-mail entre Perfume Advert e M/M (os dois com álbuns anteriores na 1080p) e não pára de crescer desde que começou a rodar por aqui.

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A manhã de sábado começa com uma tigelada de Golden Grahams de canela e os ouvidos postos num par de cassetes da Inner Islands, editora de Oakland (Califórnia) dotada de um critério impecável para música new age e ambient. Ainda não nos esquecemos por exemplo da maravilhosa miragem que é Time Immemorial, do argentino Oliwa. Contudo agora o tempo de antena é reservado a duas cassetes que nos chegam envoltas em papel reciclável e sem muita informação à vista. Em primeiro lugar, Autumn, In Reel Time, atribuído a um tal de Ki Oni, é um acrescento atípico nas fileiras da Inner Islands, já que mistura electrónica de celebração global (como nos filmes da Disney) e uma tonalidade ecológica que encaixaria perfeitamente numa nova série de Captain Planet. O Jardim Zoológico precisa deste tesourinho nas noites em que estiver aberto. A outra cassete da Inner Islands, Music for Rain – Volume 1 , assinada por softest, não foi das propostas mais interessantes do lote, apesar de umas quantas faixas úteis para escutar com os cotas e falar de Vangelis (ou de Edgar Froese, se os vossos pais tiverem muito bom gosto).

A média de eficácia sobe substancialmente, assim que a tarde de sábado leva a uma label que era urgente destacar: a Sky Lantern pega na música livre e multifacetada de uns Sunburned Hand of the Man e tenta recuperar, cassete após cassete, alguma da efervescência e mistério que abundavam em seitas como essa. Há que reconhecer que a Sky Lantern desempenha essa missão com fantásticos resultados, dado que o seu catálogo abrange alguma da mais cativante música psicadélica praticada actualmente por comunas semi-freak. Falamos, por exemplo, dos japoneses Kikagaku Moyo (tudo o que lançam esgota) ou dos peruanos Montibus Communitas. Bem mais discretos, mas nem por isso mais quietos, os Cloud Shepherd tentam, em Xenoglossia, transitar do free para o kosmische jazz, recorrendo a flautas, theremin e a uma coisa chamada waterphone (!!). Xenoglossia é convulso e ácido, mesmo que por vezes soe ao que podiam ser os Bohren & der Club of Gore a compor uma banda-sonora para Werner Herzog (e que maravilha isso seria).

Um pouco mais tarde, a grande surpresa do fim-de-semana chega pela mão dos Tolchock, dúo japonês, que logo na estreia After Fog Open, descobrem petróleo na terra algo gasta do drone-rock. O colosso de quase vinte minutos "Behind the ground" tem alguma daquela energia interminável dos tempos mais viris dos White Hills e Barn Owl, com o acrescento de um steelpan para nos lembrar de que estamos a escutar música vinda do país do sol nascente.

Aterrámos no Japão, fiquemos no Japão. Com a noite de sábado no horizonte, o momento chama por uma cassete totalmente obscura, embora dançável da Kin-Ben (bom nome para um Jedi). O autor por detrás deste objecto promocional chama-se Yellow Funk e o conteúdo escutado passa por quatro edits de igual número de faixas funky, mais ou menos reconhecíveis. Façam por favor o gosto a Yellow Funk e escutem uns excertos no link de Soundclound. Há a promessa de uma primeira faixa original para breve, sendo que essa não deve andar muito longe do andamento funky-house verificado nestes edits dignos de alguma atenção.

Pois bem, a atenção que vos restar (já lá vão uns quantos parágrafos) deve ser atribuída à birdFriend, editora japonesa (de Osaka) exclusivamente dedicada ao formato cassete. De todas as editoras que por aqui já desfilaram, a birdFriend é decerto a mais indiscritível, assim como a mais capaz de abrir cabeças com um critério quase hostil e semelhante ao das labels de industrial dos anos 80. Isso significa que quaisquer certezas obtidas com uma cassete da birdFriend vão prontamente com os porcos assim que iniciamos a escuta da próxima. E há de tudo um pouco nesta masmorra onde os ouvidos se podem dar a todo o tipo de deboche: desde os atrofios de Takahiro Mukai (Heaven's Lavatory é tão divertido como corrosivo) até ao bacanal de excentricidades apresentado por suppa micro pamchopp, em Original Works (admiradores de Haruomi Hosono, é por aqui o caminho).

Aventurem-se então, porque vocês já devem ser grandinhos e eu já estou um nadinha cansado de malhar neste teclado.