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Revista de 2013 - A melhor fruta da época

Passei uma tarde com o José Cid: o almoço

Não é todos os dias que se partilha uma refeição com uma lenda viva.

Lançou-se o desafio ao José Cid: passar uma tarde com ele, na intimidade do seu lar, a conhecer melhor o homem e o músico que, há quase três décadas, chocou o país ao posar semi-nu. Encontrei-me com o Zé num conhecido restaurante da Bairrada, perto da localidade onde este ribatejano vive actualmente. A um canto, de óculos escuros — que, de resto, foram uma constante durante toda a tarde —, José aguardava por mim para almoçar. Comemos e falámos de tudo e de nada. No fim da refeição, rumámos até ao palacete Cid: o Zé quis que eu fosse com ele no seu carro, para me mostrar algumas canções. E assim foi.

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O que se segue é a primeira parte da minha conversa com o Cid. VICE: Como é que têm sido os últimos tempos? Teve grandes concertos, recentemente.
José Cid: Sim, foram dois enormes concertos. O Campo Pequeno encheu, completamente. E o [Coliseu do] Porto estava esgotado. Ao Campo Pequeno, já vou há quatro anos seguidos e é sempre uma euforia, uma maluqueira, toda a gente aos saltos e aos gritos a cantar as minhas músicas. O Porto nunca me tinha ouvido assim, percebes? E isso foi mais determinante, foi a surpresa. Estive em forma no Porto. Super forma. Cantei durante três horas. Só tive um convidado, que foi o José Perdigão, que é um jovem de Guimarães. Fabuloso, fabuloso. É a melhor voz da música portuguesa. O álbum dele vai sair agora e é uma fusão ibérica de poesia, música, gaita de foles, guitarra portuguesa e flamenga. Tem muito a ver com Galiza, é um disco muito especial, que a editora já está a pensar em propor aos grammys mundiais de world music. Qual é a editora, a Farol?
Nãaao. Eles são uns pimbalhões. Desculpa lá, aquela Filipa Ramires saiu de uma caixa registadora do Modelo para dirigir uma editora discográfica. Uma pessoa para dirigir uma editora discográfica tem de ser culta, tem de ter ideias, tem de dialogar — que é uma coisa que ela não faz. Olha, nem o Tony Carreira gosta dela. Não percebo o que é que ela faz ali. Mas a Farol continua a ser uma das editoras…
[Interrompe] Já não podia ser! Não podia, mas ainda é. Podia ser. Pronto, agora tiveram uma jogada interessante, que foi abrirem-sea os Ala dos Namorados e ao Tim. Mas… Pá, é uma editora que não tem ideias. Mas sobrevive.
É uma editora que sobrevive, porque tem uma área "Morangos com Açúcar" para vender. Têm cantores de qualidade: o Sardet, eu, a Rita Guerra… Tiveram o Luís Represas, mas ele foi-se embora também decepcionado. Em parte, foi um bocadinho bem feito, porque aquela “Sagres” do Luís Represas é uma canção muito infeliz. Tu não sabes se é a cerveja, se é o promontório, se é a caravela… Eu disse-lhe, sou muito amigo dele. Mas acho que o Luís tem de se ligar mesmo ao João Gil e ao Manuel Palma, tem de ter compositores a sério. Ou a outros. Vejo-o, por exemplo, a cantar Carlos Tê. Sim, faria sentido. E é muito diferente fazer actuações no Campo Pequeno do que em festas de vilas?
Para mim, é tudo igual. Sou um cantor ao vivo. Saio daqui, estou a falar contigo e entro num sítio com dez mil pessoas à minha frente. A não ser que esteja doente da voz, aí fico à rasca [risos]. Por exemplo, no Porto, foi um limite. Só recuperei no dia do concerto. Sem razão nenhuma, porque tenho o maior dos cuidados. Tive uma gripe, mas sou altamente alérgico. Comprei um colchão para a minha cama e o tipo que foi entregá-lo, que entrou no meu quarto, estava com uma carrada de alergias e de vírus. Três dias depois, eu já estava doente. Só que tratei-me, defendi-me, mandei antibióticos e cortisonas. Tudo isso para ter a voz no sítio. Pois, não há margem para falhar quando se tem um concerto tão grande.
Sim. Tenho andado a beber águas e sumos. Mas também não fuma, nem bebe.
Bebo, mas o vinho de que gosto faz-me um horror. É vinho verde. Faz-me ácido úrico. Que penaaaa. Adoro aquilo. Ah! Vinho verde e medronheira. Medronheira da serra do Algarve. É bom para a alma, faz bem. [O empregado do restaurante chega e pergunta o que vamos comer para sobremesa.] Vou comer uma maçã assada! Tenho de estar bem para quando a minha piscina abrir, em Maio. Quero aparecer como na minha fotografia do disco de ouro. Tenho de voltar àquele peso. Pois, aquele corpo…
[Interrompe] Era fantástico! Ouve, a fotografia teve êxito por três razões. Primeiro, porque as pessoas mais conservadoras ficaram completamente escandalizadas sem razão, como se eu estivesse a mostrar a pila ao país inteiro. Depois, as pessoas mais à frente acharam a minha decisão genial. Terceiro: porque as rádios odiaram a minha atitude de me semi-despir como protesto às playlists das rádios nacionais, que vieram destruir a música portuguesa. Hoje, um radialista não tem direito a escolher a canção de que mais gosta de um álbum, tem num computador as músicas que tem de passar e acabou! Os autores deixaram de ter importância, os poetas deixaram de ter importância, os produtores deixaram de ter importância… Hoje, quem tem importância é a playlist e o nome do radialista, que também perdeu toda a personalidade, que começa a desviar a conversa para a sua vida pessoal, ou para a vida pessoal dos amigos, porque não tem interesse nenhum nisso. Ah, e houve uma quarta razão! As minhas ex-namoradas começaram a ligar-me a dizer: “Epá, tu estás com um físico do caraças. Quando é que apareces cá em casa? Tu estás com um caparro! Que saudades que tenho de ti!” Mas estou com mais 25 quilos do que essa foto, estou péssimo. A minha noiva já emagreceu, coitadinha. Fez um esforço tenebroso, está com uma silhueta… Uma senhora de 64 anos, que está bestial. E eu estou um bocadinho gordinho. Mas é muito complicado uma pessoa que gosta de comer prescindir disso. Encontrei um aliado formidável, que se chama Obesimed Forte. Levanto-me e tomo logo dois Obesimeds forte, que são germes de trigo. Tens o estômago cheio e ficas sem necessidade de comer.

Mas isso é natural?
É natural. Aliás, vende-se na farmácia e quando tomas aquilo, sentes o estômago cheio de milho. Ou de pão. Depois é seguir à risca aquilo que eles dizem lá. E quando é que é o casamento?
Para já, não vai ser um casamento formal. Tenho 71 anos e ela 64. É completamente ridículo ter um casamento com risquinhas cor-de-rosa. Não vai haver casamento assim. Possivelmente, casaremos numa ilha do Pacífico, ou em Timor, numa coisa assim. Mas em Timor não me está a apetecer muito. E por que não na Austrália?
Olha, isso é uma boa ideia. É um óptimo país, adoro a Austrália. Nos anos 80, uma mulher separada com uma filha entrava na Austrália e tinha as portas abertas. Era subsidiada para qualquer tipo de profissão que quisesse iniciar. Na altura, havia cinco homens para uma mulher. E eles precisavam de senhoras na Austrália. E abriam as portas a todas as meninas, particularmente com crianças, e ajudavam-nas. Havia apoio, gabinetes, trabalho, tudo. A Austrália é um país com tudo bem pensado a todos os níveis. Há 150 anos, os ingleses mandaram para lá tudo o que não precisavam de Inglaterra — que era o que eu faria com Porto Santo, se fosse Presidente da República: mandava para lá umas 200 mil pessoas que não prestam para nada. Não era para os tratar mal. Tinham hospitais e tudo isso. Mas não saíam dali. Políticos corruptos, empresários corruptos, dealers, cantores pimbas, ia tudo para lá e dali não saía. Os multimilionários podiam lá fazer um offshore. Ias ver, daqui a 100 anos, Porto Santo era a Suíça. O problema é que Porto Santo tem as boas praias que a Madeira não tem.
Ouve lá, já há vilas da Madeira, como a Careta, que importaram areia do deserto e têm praias com 300 ou 400 metros. Sabias? Eu já lá estive, mas essas praias estavam todas com pedras e areia preta.
Não, não! Recentemente, a Careta já mudou. Então, deve ser mesmo recente.
Há quanto tempo estiveste lá? Há nove anos, mais ou menos.
Ah não, é já depois. Há coisas lindíssimas. Sou muito amigo do presidente da Careta e o gajo disse-me: “Ó Zé, nos primeiros meses houve aqui uns dramas danados, porque vieram escorpiões com as areias do deserto.” E ao que parece, estava uma avozinha com um netinho na praia, deliciados com a areia da praia e, de repente, aparece um escorpião [risos]. Era um horror. Pois, um escorpião é muito perigoso. É perigosíssimo. Bem, mas também há escorpiões humanos. Esses também iam para Porto Santo. [Pede um sumo de laranja.] Toma todos os dias um sumo de laranja?
Tomo. Ou até mais. Pelo menos um, só até a meio da tarde. Sabes, no Inverno, as laranjas são muito azedas, ácidas, eu não gosto. Mas, olhe que este ano…
Este ano, devem ser importadas de outros países. É uma estupidez, porque repara: há já países mais civilizados e mais à frente, que têm escrito nos jornais: “Comprando produtos nacionais está a dar trabalho aos seus filhos e aos seus netos.” É uma estratégia excelente. Isso é proteccionismo.
É o livre mercado. Certo, mas é uma questão muito nacionalista.
É o mesmo entre o Brasil e Portugal: eles mandam os artistas, nós mandamos o dinheiro. Canto mais do que o Roberto Carlos, 50 mil vezes. Se o Roberto Carlos estivesse aqui em Anadia, ele nem existia: era o vocalista ordinário de um grupo de baile. Os brasileiros fazem uma permuta connosco muitíssimo arrogante. Pronto, vai lá a Mariza. Mas não penses que vai cantar para sítios grandes. Não penses que as digressões da Mariza são por salas, ou por estádios mundiais. Vai cantar a salinhas de 300 pessoas. E nós importamos as Ivetes Sangalos desta vida.
A Odete Sem Galo, como eu lhe chamo. “Tudo à dançáar, túdo por aqui, agora à senhora, agora o senhô [a imitar sotaque brasileiro]". Pá, por amor de Deus. Aquilo parece o playback do karaoke. A Daniela Mercury, por exemplo, é mais cantora do que a Ivete Sangalo. Mas a outra está na moda, é o marketing. Estes Justin Biebers não cantam um caraças, não cantam nadinha. Aquilo não é nada, é uma coisa. Está ao nível do Tony Carreira. A Britney Spears não canta. A Madonna não canta, foi um buraco em Coimbra. Um buraco. Sabes qual foi o grande concerto das festas de Coimbra? Eu! O Ivan Lins está com a voz toda desgraçada, coitado, compõe bem que se farta, mas cantar já não é com ele. Estudei em Coimbra, foram os melhores anos da minha vida.
Ah sim, também acho que Coimbra tem mais encanto na hora da despedida [risos]. Acho que Coimbra tem um ambiente estudantil giríssimo. Um bocado pimbalhão, culturalmente muito pobrezinho. Digamos que 20 por cento dos estudantes tem uma atitude cultural muito interessante, o resto é pimbalhada, que só pensa em álcool e em Quim Barreiros. Mas depois há uma parte interessante. Que é…
Que é as pessoas que aderem às actividades extracurriculares. Eu vivi muito a vida de Coimbra, nos anos 50 e 60. Esteve no Orfeão.
Era vocalista do grupo de jazz. Nós fazíamos permutas culturais muito interessantes com a universidade de Salamanca e, claro, o grupo de jazz do orfeão era o esperado em Salamanca. Tocávamos cenas muito giras, muito bem. O pianista era fantástico, o José Niza tocava bem viola, bossa-nova particularmente, cenas jazzísticas. O baterista era bonzinho. O baixista, que era o Proença de Carvalho, não tocava bem nem mal. Mas era certinho, não falhava. E eu cantava tudo e mais alguma coisa, o que fosse preciso. E nós arrasávamos, tinha 16/17 anos nessa altura. Então, depois de uma noite de jazz lá num teatro com a malta da universidade de Salamanca e de Coimbra toda junta. Os rapazes decidiram ir ao que, na altura, era bem organizado: a prostituição, que era uma coisa controlada, tinha inspecções sanitárias muito rigorosas e não andavam os corpos nas estradas. Isto é uma coisa que mete dó ver mulheres a andar na estrada. Sim, ali na Mealhada há muito disso.
E naquela estrada onde vocês passaram, a caminho de Águeda? Nossa senhora, é cada avião, são mulheres ucranianas e polacas ou romenas. Mulheres lindíssimas, mas adiante. Nós resolvemos ir à noite visitar as meninas de Salamanca o grupo todo, éramos para aí uns oito, tudo de capa e batina. E dantes, as casas de prostituição normalmente estavam nas partes velhas da cidade e tinham uma lanterna vermelha à porta. Lembro-me perfeitamente: nós entramos na parte velha de Salamanca, começámos a subir a calçada, e quando chegamos a 50 metros da lanterna vermelha, vem uma tipa que devia ser a mestre da casa, e vira-se para as outras: “Mira mira, que vienen los curas!” [Entretanto, o telemóvel de José Cid toca: é um número privado. Cid atende com uma voz de cana rachada. Pelo próprio: “voz de Rod Stewart” Responde : “Ya, eu não atendo números privados.” Esclarece que isto é para deixar a pessoa do outro lado na dúvida sobre para quem terá ligado.] Acho de uma falta de educação as pessoas ligarem através de números privados. Parece que estão a falar através de um biombo. Outro dia, um tipo ligou-me de um número privado, e ele é que me perguntou com quem estava a falar! Disse-lhe que estava a falar para o Vaticano, com todos os padres pedófilos. Que estava a ligar para a Pedofilia Organizada do Vaticano. E também há outras chamadas que recebo, mas não de um número privado. Perguntam: “Estou a falar com o dono da casa?” E respondo-lhes: “Não, está a falar com o mordomo.” E se perguntam se o dono está, digo que o dono foi para as Caraíbas tratar das contas offshore. Houve um dia em que uma menina me respondeu a isso com um “ainda há gente com sorte!”. O José também poderia ter um offshore, só com o 10.000 anos depois.
Tenho dois 10.000 anos, que é um álbum caríssimo no Japão. Se tiveres um vinil desse álbum, vais ao Japão, vendê-lo e ainda trazes dinheiro. Mas esse não é o meu melhor álbum de rock sinfónico, sabes? É o mais conhecido. Tenho três álbuns de rock sinfónico — posso fazer-te uma cópia deles, se quiseres. Tenho, por exemplo, o Ode a Federico Garcia Llorca, que tem guitarras de Coimbra e poesia de Llorca. Ou o Cais Sodré, um álbum de jazz que escandalizou os barões do jazz no país, que achavam que era proibido cantar jazz — coisa que eu fiz desde sempre. Mas o 10.000 não é o meu melhor álbum de progressivo. Esse álbum está nos tops de rock progressivo a nível mundial.
É, mas foi porque teve uma edição americana, senão não estaria. É realmente um álbum interessante, mas se calhar se hoje tivesse de o fazer de novo, já não o faria. E também é assim: o rock sinfónico pertence a uma época datada. O rock sinfónico foi uma série de músicos que no final da década de 60, fartos do popzinho, resolvem enveredar por uma área mais jazzística, mais complicada e mais à frente musicalmente. A grande diferença entre o 10.000 e os outros álbuns do género é que está, poeticamente, à frente do resto. Agora, há outra coisa. Nós usávamos instrumentos que eram usados no rock sinfónico e isso faz com que a nossa sonoridade fosse semelhante, com que os sons fossem parecidos. Há algum artista que gostasse de ter visto ao vivo? O Michael Jackson?
Veria Michael Jackson nos primeiros dez anos da carreira, e nunca depois. Porque acho que o Michael Jackson era um imbecil que não soube dar continuidade a um início fulgurante de carreira, e que depois é uma avestruz paranóica que põe a cabeça na areia na altura em que era único. Um imbecil, um complexado, um gajo esquisitíssimo. O Michael é vítima dele próprio — ele é um bocadinho, noutra dimensão, a Lady Di. É casada com o Rei, e quando se divorciam, ela ataca qualquer coisa que mexa a 50 quilómetros. Uma mulher normal que é mãe dos futuros reis de Inglaterra, que saia de um relacionamento desses com um príncipe — que, vá, a trocou por aquela mulher medonha, asquerosa — vai encontrar uma pessoa normal para ter um relacionamento, não vai andar a atacar tudo o que mexe. Era o treinador de equitação, era o massagista, era o bodyguard, era tudo, tudo! Não pode ser, aliás, isso não dá dignidade nenhuma a uma mulher. E o problema dela é que ela foi vítima dessa falta de dignidade. Isto tudo com crianças atrás. Continua… aqui. Fotografia por Nuno Miranda