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Ser ou não ser pirata, eis a questão

Um assunto longe de ter terminado.

Lol. PRÓLOGO Há uma dúzia de dias foram aprovadas, em Conselho de Ministros, as actualizações referentes à Lei da Cópia Privada. O tema tem sido recuperado, de tempos a tempos, para manobras ao estilo de highlights políticos e alguns updates estruturais.  Para quem se encontra a par do assunto, reconhecerá o seu carácter pantanoso e polémico, tão complexo quanto brincar com um cubo mágico pela primeira vez. Em todo o caso, afecta cada um de nós, no papel de contribuintes, consumidores ou seres ávidos de cultura e informação (um direito aparentemente não tão legítimo quanto isso). Sim, existem centenas de questões à cabeça, mas em última instância, lançamos a seguinte: acreditam mesmo que a medida irá parar uma ilegalidade cometida por todo o mundo, por várias décadas e por várias gerações? A sério? Dudes, pensem nisto. BIG BANG É preciso recuar até 1998 (olá Expo) para assistirmos à origem da lei e ao nascimento da AGECOP, a entidade pública que tem vindo a gerir e a cobrar os valores destinados aos autores, artistas, produtores e editores. Albergando diversas cooperativas e associações como a SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) ou PassMúsica, estas células foram dominando a batuta perante discussões da sociedade ligadas à arte, informação e tecnologia — sempre com o signo dos direitos autorais a bombar ritmo, qual Tiesto dos lobbies políticos. Com tempo e engenho, obtiveram uma influência eficaz nas decisões governamentais e assim um poder interventivo à partida inimaginável para uma mera associação, no fundo idêntica a tantas outras por esse país fora. Imaginem uma sociedade recreativa a gerir os lucros e/ou patentes de um licor há muito conhecidos por todos os cotas lá terrinha. O princípio não anda tão distante no seu conceito, todavia com escalas e naturezas obviamente diferentes. Ora esta recente revisão da Lei da Cópia Privada parece desde logo surgir como reacção a uma quebra de receitas na ordem dos 90 por cento (ouch!), uma vez que até aqui apenas abrangia suportes físicos como CD, cassete ou DVD; agora, e porque há que aproveitar a boleia tecnológica, também toda a gama suportes electrónicos como smartphones, ipads ou pen drives fica oficialmente implicada na acção. O governo rejeita o peso do uso de uma expressão realista como taxa. E com razão, pois essa é uma palavra que já ninguém quer ouvir. O sumo da questão rege-se pelo facto de, independentemente do seu uso e do seu conteúdo, reinar a lógica de que os intervenientes da indústria deverão ser monetariamente compensados. Seja essa cópia feita a partir de uma obra original (o que gera uma situação constrangedora de dupla ou até tripla tributação se tivermos ainda em conta o valor acrescentado do IVA), seja através do vosso Soulseek, uTorrent ou Emule para os mais saudosistas. O que nos chuta para outra questão divertida: o conceito de pirataria. SER OU NÃO SER PIRATA, EIS A QUESTÃO Parece constante a forma como o termo é utilizado até à exaustão, a maioria das vezes até já fora de contexto, mais numa de tornar formal e séria toda a discussão. Entedemos todos que pirataria retire lucro indevido de uma obra ou privação dos direitos de autoria da mesma. Um exemplo dessa situação é encontrada no nosso dia-a-dia quando abordados por um tipo de ar esgazeado e desconfiado que nos tenta impingir, numa rua ou numa esplanada, uma gravação duvidosa do último blockbuster de Verão que ninguém quer ver e com sorte ainda vos oferecem algo mais (sei que sabem do que estou a falar). "Já tens o último do Aronofsky?" É um negócio que aponta uma enorme fraqueza de espírito (para quem vende e para quem compra) numa lógica de dinheiro fácil e com a hipótese de depois assistir ao dito filme com legendas em cantonês. Acontece e é ridículo. Por outro lado, e como é sabido, os conceitos evoluem ao sabor dos tempos. De modo que hoje em dia, segundo alguns peritos, o conceito de pirataria se estenda igualmente ao upload de conteúdo embora essa dimensão seja sempre discutível (sim, porque a malta que possibilita softwares de gravação, aplicações e outras maravilhas fazem-no apenas para provar que isso é possível. Nesta montanha russa de inocentes e culpados, adivinhem lá quem faz o papel de Jack Sparrow aqui… yap, acertaram. Como vos disse antes, seja qual for a origem da cópia, o imposto é certo. Claro que à priori, alguns campeões pensarão que esta lei, no limite, até é vantajosa pois acaba por ter um duplo efeito, estilo reverso da moeda, prevendo que cobrindo já a dita taxa do seu dispositivo e que poderão embarcar num mar de downloads (ilegais ou não, nesta altura já existiria "carta branca") como se não houvesse amanhã. Era fixe e justo, dada a situação em si, mas esta lei não anda a dormir e uma coisa não implica a outra. Há sempre um spoiler, não é? A meio deste processo todo há dúvidas que em várias direcções, próprias de um mundo em evolução: o que acontece então com aquele disco em mp3 que o próprio artista (sem editora e sem produtores a atazanarem-lhe o juízo) decide disponibilizar gratuitamente na sua conta de Soundcloud, Bandcamp ou Facebook? E, se quisermos chatear ainda mais, o que acontece ao trabalho das netlabels que proliferam no espaço virtual? E que dizer ainda das possibilidades criadas pela boa gente da Creative Commons? Ninguém sabe. E sobram dúvidas se a maioria dos elementos legisladores conheça a fundo estas e outras plataformas cujo valor na forma de pensar, ouvir e partilhar música (e outras expressões artísticas, claro) seja tão fundamental nos dias que correm.

CRIME E CASTIGO Anexado a este assunto, encontra-se outro, tão ou mais estrilhoso que o anterior: a compensação do artista. Sabe-se que entidades como a SPA chegam a representar cerca de três milhões de artistas a nível internacional, mas — e porque há que ser transparente nestas coisas — essa distribuição peca frequentemente pela falta de clareza. Ou, por outras palavras, não existe um GPS seguro sobre o destino dessas compensações. Dou-vos um exemplo: imaginem que agora escrevo uma nota em jeito de preview sobre uma jovem banda de punk japonês que ainda nem disco editou. Vocês escutam um ou outro tema que por acaso encontrei nos confins da web. Claro que, segundo esta lei, a partir do momento em que adquirem um computador ou iPod já depois da sua implementação, o valor final abrange a situação de compensação. Mas pergunto-vos: acham que os japoneses irão receber um cêntimo pelas vossas preciosas audições? Façam apostas. O contra argumento racional seria que se não estivessem inscritos numa entidade que os representasse, nunca poderiam vir a receber o que quer que fosse. Exacto, faz sentido. Azar então dos japoneses que não estão inscritos. Mesmo assim pagaremos sempre a dita quota. Claro que isto faz do consumidor um presumível criminoso. Se pensarem bem, é um mecanismo automático brilhante, que actua ainda antes do crime acontecer. A solução encontrada passa por sobrecarregar a aquisição desses formatos físicos para que depois órgãos legitimados pelo Estado possam gerir essas receitas. Uma enorme responsabilidade visto tratar-se de dinheiro proveniente de "pesca pública". Mesmo quando parte dessas entidades possuam um cadastro manhoso. EPÍLOGO Nesta peça mediática em redor dos direitos dos autores, dos direitos conexos, da necessidade de proteger editoras e comércio, sobra então um papel aparentemente menor mas transversal a todo o enredo. Trata-se do papel de quem alimenta tudo o resto. Eu, tu, a tua mãe, a tua miúda e aquele gajo que vive no andar de cima que ninguém sabe bem o seu nome. Uma vez mais, o supracitado e subvalorizado consumidor, rebaixado e limitado aos seus deveres. O direito à informação, à partilha, à experimentação e à inovação ficaram hipotecados. Embora a DECO e outras associações tenham acrescentado importantes pontos de interrogação à discussão, este é um assunto longe de ter terminado. Já agora, dêem uma vista de olhos à entrevista ao José Mário Branco em que ele dá uma opinião de brilhante lucidez sobre a questão. Aguardem novos capítulos.