Don Ed Hardy, o discípulo de Sailor Jerry que levou a arte para as tatuagens
Don Ed Hardy in his San Francisco painting studio in 2011. Photo by Emiko Omori

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Don Ed Hardy, o discípulo de Sailor Jerry que levou a arte para as tatuagens

Encontrámo-nos com o lendário artista para uma conversa sobre o seu papel na história da tatuagem.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Don Ed Hardy é uma lenda no mundo das tatuagens. Um artista de toda uma vida, com treino e estudo formal fora do estúdio de tatuagem, Hardy é conhecido por ter contribuído de forma decisiva para o desenvolvimento do potencial artístico de um meio que, antes dele, era dominado por rufias de rua, prisioneiros e marinheiros em trânsito.

A sua aprendizagem começou ainda adolescente, ao lado de personagens tão importantes como Phil Sparrow e Sailor Jerry. Este último viria mesmo a revelar-se crucial na sua escolha de vida, não só pelas suas técnicas inovadoras, mas também pela forma pioneira como levou a arte para a tatuagem. Ainda hoje figura inspiradora das novas gerações de tatuadores, Norman K. Collins a.k.a. Sailor Jerry inspira também uma marca de rum e em 2014 foi alvo de um aclamado documentário.

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Hardy absorveu tudo e deixou-se sempre influenciar, em particular, pela arte japonesa que, claramente, integrou na sua própria técnica e sorveu brilhantemente de Sailor Jerry.

Em 1982, com a sua mulher Francesca Passalacqua fundou a Hardy Marks Publications e desde então escreveu, editou e publicou mais de 25 livros sobre arte alternativa. Embora se tenha retirado e já não tatue, Hardy tem ainda um estúdio de tatuagens na Califórnia, onde o seu filho, Doug, continua a tradição familiar de marcar a pele

Encontrei-me com Hardy no estúdio Kings Avenue Tattoo, em Nova Iorque, onde foi exibida a exposição Pictures of the Gone World, dedicada à sua arte na tatuagem e às suas pinturas. Conversámos enquanto as obras estavam a ser distribuídas pelo espaço. Vários artistas da sua Tattoo City também estavam presentes, bem como uma equipa de filmagens a trabalhar num documentário sobre mulheres tatuadoras. A conversa girou à volta do seu papel proeminente na transformação da arte da tatuagem, desde o lugar marginal que ocupava na sociedade quando ele começou, até ao fenómeno mainstream que é hoje.

Vê o vídeo realizado pelo colaborador da VICE, Chris Grosso, para a exposição de homenagem a Hardy, realizada em Nova Iorque:

VICE: Podes falar-me um bocadinho sobre as obras que estão na exposição que te foi dedicada?

Don Ed Hardy: Sempre criei muitas obras de arte para além das tatuagens. Era o que fazia ainda antes de começar a tatuar e, a determinada altura, pude voltar a fazer a minha própria arte de uma forma quase terapêutica, sem ser para alguém, ou para a tatuagem de alguém.

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O que é que queres dizer com arte terapêutica?

A tatuagem é uma das minhas formas de expressão artística, mas é para outra pessoa, percebes? Tem a ver com a ideia dessa pessoas, ou com a sua escolha. O que faço para mim não tem a ver com mais ninguém.

Aceitavas muitas sugestões dos teus clientes quando tatuavas?

Claro. Fui a primeira pessoa a abrir um estúdio dedicado apenas a trabalhaos comissionados. Isto foi em 1974. Estava determinado a criar um espaço onde a pessoa que fosse tatuada tivesse oportunidade de trazer coisas para a mesa. Muitos tatuadores não o queriam fazer, ou não tinham talento suficiente para o fazer, mas no meu caso era mesmo o que queria. Eu vinha do mundo das Belas Artes.

A lot. I was the first person to open a studio that was strictly commission work. This was in 1974. I was determined to open a place that would have input from the person wearing the tattoo. A lot of tattooers, they didn't have to do it, or they didn't have the talent or the interest to do it. But it's what I was aiming for. I came out of a fine arts background—I have an undergraduate degree and all that.

E como é que correu o negócio?

No primeiro ano a coisa foi muito lenta, mas a minha mulher tinha um bom emprego e mantivemo-nos à tona. Depois as pessoas começaram a aparecer e a coisa funcionou. Eu sabia que as pessoas naquela altura começavam a interessar-se pelas tatuagens de uma forma diferente, mais alternativa, e como estávamos em São Francisco ainda mais. O que muitas pessoas não queriam era ir a um estúdio tipo McDonald's e escolher do menu. Queriam algo diferente.

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Mas antes de abrires, sabias que tipo de pessoas é que procuravam tatuagens naquela altura?

Naquela época não fazia ideia e agora, claro, as coisas mudaram muito. Quando comecei existiam aí uns 500 tatuadores na América do Norte. No Canadá, haveria provavelmente 25… agora só no distrito de Los Angeles há cinco mil, mais cinco mil em Berlim… é surreal.

Don Ed Hardy em Reno, em 1975. Foto por Emiko Omori

O que é que sentes em relação a esse crescimento de popularidade? Quando começaste era uma arte marginal.

Eu venho dos anos 60 e nessa altura a única coisa que queríamos era ser minimamente aceites e reconhecidos, fosse em termos raciais, de género, o que fosse. Detestava que a tatuagem fosse olhada como lixo. Queria travar essa luta e fazer com que se entendesse que a tinta na tua pele não era sinónimo de menos cérebro. Ainda assim, o facto de hoje ter uma aceitação tão abrangente não deixa de ser um bocadinho estranho. Até gosto bastante de conhecer pessoas que não tenham uma única tatuagem.

Agora são eles os esquisitos.

São. É do género, "como é que não tens uma tatuagem?!".

Vi uma fotografia tua a desenhares "tatuagens" nos teus amigos quando eras crianças. Como é que começaste a fazer isso?

O pai do meu melhor amigo tinha estado na Segunda Guerra Mundial e tinha um monte de tatuagens. uma coisa que eu achava absolutamente poético era o facto de uma delas ser a sua música favorita, "Stardust", uma canção grandiosa de Hoagy Carmichael, que era um sucesso nos anos 1940. E mesmo com 10 anos de idade achei aquilo absolutamente fora! Foi aí que tive a ideia de começar a desenhar em todos os miúdos do bairro.

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Don Ed Hardy no estúdio Kings Avenue Tattoo. Foto pela autora.

Estudaste com Sailor Jerry e Hirohide, correcto?

Sim, é verdade. Quando comecei a tatuar, Sailor Jerry era o número um, o gajo mais talentoso do Mundo, numa altura em que tatuar era uma coisa bastante secreta. Ou seja, as pessoas não publicitavam, tinhas de conhecer alguém. Arrisquei, escrevi-lhe uma carta e enviei algumas fotografias dos meus trabalhos. E o Jerry começou a escrever-me. Foi o primeiro de vários renegados intelectuais que conheci neste negócio. Ele não tinha qualquer tipo de estudo formal, mas era verdadeiramente brilhante e profundo. Tive uma ligação muito forte com ele e em 1968 fui ter com ele a Hollywood.

Através do Jerry comecei a corresponder-me com Hirohide no Japão. Acabámos todos por nos encontrar pessoalmente em 1972, na festa de Natal do Jerry e Hirohide tatuou-nos. Depois perguntei-lhe se podia trabalhar com ele se fosse para o Japão. Ele disse que sim, embora eu ache que o disse só porque entendeu que era o que eu queria ouvir. Seis meses depois lá estava eu.

Depois de me ter mudado soube que o Jerry tinha morrido. Aconteceu umas três semanas depois de ter ido para. A sua viúva disse-me que eu tinha prioridade se quisesse ficar com o estúdio, mas acabei por lhe dizer que iria ficar no Japão, porque queria mesmo aprender o estilo artístico japonês.

Os outros dois gajos que estavam na lista acabaram por ficar com o espaço. um deles era Michael Malone, que acabou por comprar o estúdio Sailor Jerry e por ensinar o meu filho Doug. Malone tinha jurado que se o meu filho, ou o filho do Jerry quisessem entrar neste negócio lhes ensinaria tudo. Disse isto ao Doug e ele perguntou-me "achas que ele está mesmo a falar a sério?. [Risos]. Eu respondi-lhe: "Filho, não te queiras juntar a esta máfia!".

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Don Ed Hardy em Nova Iorque, em 2015. Foto pela autora.

Se tivesses de dar um conselho a alguém que quisesse agora aventurar-se no mundo da arte da tatuagem, o que dirias?

Têm de encontrar alguém realmente talentoso e inteligente com quem trabalhar. Alguém que saiba o que está a fazer, que tenha a atitude certa. O problema com as tatuagens é que há um grande potencial para "engordar" egos. É óptimo quando encontras um tatuador que é suficientemente sensível e talentoso para fazer as coisas como tu queres.

Como é que evitaste essa espécie de complexo de superioridade?

Desde o início, mesmo desde os primórdios, assumi que a minha cena era ser o fio condutor daquilo que as outras pessoas me ensinavam. Tive a sorte de me cruzar com pessoas extraordinárias e depois chateá-las até me ajudarem. eu era bom a chatear. um gajo tem de pressionar. [Risos].

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