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Uma entrevista com um combatente das ruas do Egipto

A revolução está longe de chegar ao fim.

A crise política do Egipto continua a sofrer reviravoltas. Nas vizinhanças do palácio presidencial, tiveram lugar confrontos mortais entre manifestantes mais secularistas (que desaprovam o presidente Morsi) e os partidários da Irmandade Muçulmana (IM).

Há umas semanas, o presidente Morsi autoconcedeu-se amplos poderes, que o elevam a uma posição de autoridade quase irrepreensível. Essa decisão enfureceu os poderes judiciário e público, que salientaram que o ex-ditador Mubarak nunca procurou esconder-se numa posição tal de poder ilimitado. Os intensos protestos por todo o país resultaram em incêndios nos escritórios da Irmandade Muçulmana — que dominou o governo egípcio pós-Mubarak — e em dois manifestantes mortos, nos confrontos com a polícia.

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Recentemente, um projecto de constituição foi aprovado à pressa pelo parlamento, facto que polarizou, profundamente, o país. Centenas de milhares de manifestantes marcharam até o parlamento para demonstrar o seu descontentamento perante a decisão. Imediatamente, iniciaram-se confrontos com a polícia e o presidente Morsi teve de evacuar o prédio. Alguns manifestantes acamparam em frente ao edifício durante a noite e acordaram com o som das suas tendas a serem destruídas a pontapés. Eram os membros da Irmandade Muçulmana — que vieram de autocarro de todo o país — a tentarem limpar a zona.

O que se seguiu foi uma das cenas mais violentas alguma vez testemunhadas no país, com os ambos os lados a usarem armas de fogo. Seis pessoas perderam a vida enquanto a polícia, em desvantagem numérica, assistia, impávida, ao caos. Os confrontos no Egipto sempre foram perigosos para os jornalistas, mas esta situação de violência foi excepcional. Houve, inclusive, um fotógrafo egípcio baleado na cabeça à queima-roupa e outros jornalistas foram ameaçados.

De forma a saber o que realmente acontece nas ruas, conversei, através do chat de Facebook, com um manifestante anti-Morsi, que abandonou a sua câmara por uma pedra e que enfrentou a Irmandade Muçulmana durante oito horas.

VICE: A que horas chegaste ao palácio presidencial?

Manifestante:

Logo após a oração Maghrib, perto das 18 horas.

O que é que te fez querer ir até o palácio e protestar?

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Ajudar os outros manifestantes, porque tenho noção de que a Irmandade Muçulmana e os partidários de Morsi são uns cabrões. Tinha comigo a minha câmara e a minha máscara. Geralmente, não atiro pedras, nem me envolvo nas lutas. Só costumo ir lá para tirar fotos e para ajudar as pessoas a atirarem os cartuchos de gás lacrimogéneo para longe. Mas, naquele dia, não consegui resistir — tive de atirar pedras e de lutar.

Por que é que sentiste que tinhas de lutar?

Porque eles são pessoas sem escrúpulos. Eles estiveram na prisão durante os últimos 60 anos. São uns sanguinários perigosos.

Ouvi muitas pessoas a dizer que alguns dos membros da IM foram pagos para fazerem dispersar os manifestantes acampados. O que achas disso?

A IM é como a maçonaria. Eles não recebem dinheiro, eles são afiliados. São uma sociedade secreta e têm de obedecer as regras — se eles obedecerem isso, conseguem empregos e benefícios da organização.

Percebo. Então, o que aconteceu, quando a IM apareceu no palácio?

Eles chegaram logo com violência. Começaram a dar pontapés às pessoas e baterem nos manifestantes anti-Morsi. Deram pontapés a duas pessoas até a morte. Logo que isso aconteceu, milhares de manifestantes voltaram ao palácio para mostrar a nossa força. A certa altura, éramos tantos que poderíamos ter invadido o palácio. Mas preferimos não o fazer.

Por que não?

Somos manifestantes pacíficos, como o Gandhi. Os manifestantes voltaram ao palácio, porque tinham ouvido dizer que alguns dos manifestantes tinham sido despidos e enforcados. Foi aí que começaram os combates em redor do palácio e nas ruas adjacentes.

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E, no início, eram só pedras e bombas de petróleo, certo?

Sim, mas a IM tinha armas e gás lacrimogéneo. Não sei onde é que eles arranjaram o gás…

Achas que foi a polícia que lhes deu essas armas?

Não sei. A polícia também estava lixada com eles, mas talvez sim. A IM tem muitas armas, principalmente depois da revolução na Líbia.

Por que é que a polícia não tentou deter os confrontos?

Acho que receberam ordens para não o fazer. Além do mais, este é um regime da IM, e a polícia fica, geralmente, do lado do regime. Mas, acho que, desta vez, eles ficaram parados a contragosto. O número de pessoas chateadas ali presente era gigante, por isso eles decidiram ir-se embora. Foi uma guerra.

Será que eles ficaram com medo de interferir?

Certamente. Vê este vídeo, gravado a partir do lado da IM. Os manifestantes anti-Morsi estão do outro lado, por trás dos muros amarelos.

O gajo com a arma é da IM?

Sim.

Vi alguns vídeos que mostram os manifestantes anti-Morsi a carregarem armas, igualmente. O que achas disto?

Sim, também tínhamos armas de fogo, mas elas só apareceram ao fim da noite. E só porque não iríamos conseguir sobreviver sem elas. Foi uma decisão de última hora.

OK. Sentiram, portanto, que precisavam de se defender?

Sim.

Por que motivo é que a IM diz que os manifestantes anti-Morsi são todos membros do partido político do ex-presidente Mubarak?

Tudo isso faz parte da guerra de informação deles, porque o povo egípcio se uniu e a IM ficou sozinha com seu partido.

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Achas que estão a tentar denegrir a vossa reputação?

Sim. Topa este vídeo:

O que estes gajos têm nas mãos, que estão sempre a mostrar para a câmara?

Eles estão a reclamar das embalagens de queijo, porque estas são de uma marca norte-americana.

Ahah. Ou seja, eles estão a dizer que os norte-americanos estão a financiar os manifestantes anti-Morsi por causa do queijo?

É. Estamos no meio de um caos. Isto é insano.

O que aconteceu quando chegaste à cena?

Quando lá cheguei, a luta estava acirrada. Havia pedras a voar dos dois lados. A atmosfera estava pesada, estávamos com medo porque não sabíamos quem era da IM e quem era manifestante. Não sabíamos quem era quem, porque estávamos vestidos de igual e todos tínhamos o mesmo visual. O pessoal da IM tem barbas um pouco mais compridas, mas nós não sabíamos bem se estávamos do lado certo, até nos aproximarmos dos manifestantes.

Começaste a atirar pedras logo que chegaste? Ou isso foi depois?

Não, como já disse, não costumo fazer isso.

Houve um momento específico no qual percebeste que tinhas de lutar? Viste algo que te deixou chateado, ou que não te deu outra escolha?

Sim, eles agarraram num de nós e bateram-lhe fortemente, à nossa frente e à frente da polícia.

Parece que ele teve sorte em sair dali vivo.

Completamente.

Entraste em lutas físicas, ou só atiraste pedras?

Não, só atirei pedras.

Viste se alguma das tuas pedras atingiu alguém da IM?

Não, não consegui ver. Estávamos a usar os escudos para nos cobrir, logo não dava para ver nada.

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Alguma das pedra da IM te acertou?

Sim, algumas vezes, nas mãos e nas pernas. Ainda bem que são ferimentos pequenos.

Mesmo tendo sido atingido, consideras-te uma pessoa com sorte?

Ou ficas, somente, com marcas pequenas ou levas em cheio. Não há um meio termo.

Gostaste de lutar ou encaras isso como um dever?

É um dever, certamente. Mas, depois, acabas por sentir uma excitação, causada pela adrenalina.

Durante quanto tempo continuaram os confrontos?

Muito tempo. Começaram às 5h30 da manhã e continuaram. Saí de lá perto da hora de almoço.

O que vai acontecer agora no Egipto e a esta crise? Achas que o Morsi vai desistir dos seus novos poderes?

Tenho a certeza que vai.

Mas achas que o Morsi vai recuar e que deveria acontecer outra eleição?

Claro. Contudo, penso que vai demorar para atingirmos esse outro nível. Não sabemos o que vai acontecer, mas confiamos em Deus.

O que aconteceu mostra que a revolução ainda não terminou?

Sem dúvida. E somos como tubarões: quanto mais sangue, mais tubarões.

O que achas que a oposição egípcia tem de fazer agora?

Os políticos precisam de ser homens e de fazer a coisa certa. Eles devem unir-se e fazer um conselho presidencial. A nação egípcia continua nas ruas.

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Depois destes incidentes, sete dos conselheiros mais próximos de Morsi demitiram-se em protesto com a maneira como o presidente tem vindo a lidar com as manifestações. O exército chegou a ser convocado para proteger o parlamento presidencial, o que não acontecia desde a revolução. Com Morsi a recusar-se a voltar atrás, os manifestantes voltaram à acção, cortando o arame farpado das barricadas, abraçando as tropas e dançando nos tanques. Até agora, os protestos continuam pacíficos, mas, com desavenças ainda não resolvidas entre os dois lados, essa paz não deve durar muito.