O fotógrafo Vincent Cianni conta as histórias dos militares homossexuais no exército norte americano
Foto principal por Vincent Cianni: Zachary Werth e Dustin Hiersekorn (da esquerda para a direita).

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Identidade

O fotógrafo Vincent Cianni conta as histórias dos militares homossexuais no exército norte americano

Relatos e imagens dos que resistiram à descriminação de pessoas homossexuais no exército dos EUA.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

O livro fotográfico de Vincent Cianni é um testemunho visual e pessoal da vida dos homossexuais que foram discriminados pelo exército norte-americano, algo que remonta a 1949 e teve continuidade no chamado Don't Ask Don't Tell (DADT), que teve início em 1993. O DADT foi uma medida legislativa que permitia a existência de uma pessoa gay no exército, mas apenas se não contasse nada a ninguém. Imagina que tens um parceiro do mesmo sexo: segundo o DADT, não podias falar dele (ou dela) com os teus companheiros, nem mesmo se essa pessoa adoecesse ou morresse.

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Não é segredo nenhum que, pelo menos até 2011 - quando a medida foi banida -, na vida dos homossexuais que serviram no exército americano predominavam o sofrimento em silêncio, o stress e o transtorno pós-traumático. Nalguns casos, até mesmo suicídio. Actualmente, ser militar nos EUA é ainda uma experiência carregada de preconceitos. O livro de Cianni reune várias fotografias e entrevistas realizadas durante a sua viagem pelos EUA, ao longo de três anos, em que se perguntava porque raio a malta LGBT queria servir uma instituição que os negligenciava constantemente? E que repercussões tiveram este tipo de situações na vida das pessoas que o experienciaram?

"Pensei na minha própria experiência, em que tive de esconder a minha própria identidade da minha família, amigos e colegas e fui vítima de crimes de ódio e preconceito".

Este livro contempla as histórias de soldados - homens e mulheres - que serviram o exército norte-americano, desde veteranos com 92 anos que estiveram na Segunda Guerra Mundial, a militares recém chegados do Afeganistão. Histórias há muito tempo guardadas que, finalmente, vêem a luz do dia, nas suas próprias palavras, com as suas próprias vozes. Resolvemos conversar com Cianni sobre o livro e a experiência de ter conhecido estas pessoas, vítimas de uma lei opressiva - que só foi completamente erradicada há apenas quatro anos.

VICE: Olá Vince. Por que razão te interessaste por este tema?
Vincent Cianni: Cresci durante a reviravolta política e cultural dos anos 60, na época da Guerra Fria. Eu era o tipo de pessoa que não sabia bem o que se estava realmente a passar, mas, em contrapartida, tinha bastante interesse por temas políticos. Já no liceu e depois na faculdade fui hippie - na altura da Guerra do Vietname. Era tão convicto politicamente, que estava disposto a viajar para o Canadá caso fosse chamado. Passei a vida inteira sem qualquer interesse no exército e nos militares, porque eu apelava à paz - a única "arma" para lutar contra a violência e a injustiça. E não conseguia perceber como é que alguém poderia sequer alistar-se por vontade própria, ainda para mais os homossexuais, que se sujeitavam a uma instituição que os maltratava.

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Em Novembro de 2009, lembro-me de estar a ouvir rádio. Estava a passar uma entrevista de uma mãe cujo filho gay de 19 anos tinha sido dispensado do Iraque. Quando ouvi a mãe de Nathanael Bodon falar do seu filho com tanto amor, orgulho e confiança, pensei na minha própria experiência, em que tive de esconder a minha própria identidade da minha família, amigos e colegas e fui vítima de crimes de ódio e preconceito.

Como fotógrafo/fotojornalista e contador de histórias percebi que, independentemente das minha convicções políticas e experiência pessoal, as histórias dos soldados e veteranos LGBT demonstravam a vida de pessoas a quem lhes tinham sido negados os seus direitos civis e, em muitos casos, terão sido vítimas de tratamentos absolutamente injustos e inumanos. Como parte de uma comunidade que continua a lutar pela igualdade, não poderia virar as costas à humanidade.

Como funcionou este método de violência psicológica?
Como a sua própria natureza, o DADT era ambígua e a sua aplicação dependia da percepção, ou atitude dos responsáveis, mas também das atitudes e percepção dos que se alistavam. E não podemos esquecer que o objectivo do DADT era proteger a comunidade LGBT, mesmo que o fizesse através de inibições e proibições.

A "caça à bruxas" era bastante comum nos anos 80, porque o exército estava a dispensar militares e muitos membros da comunidade LGBT foram perseguidos, investigados, interrogados e acusados de abuso de drogas e crimes. Os resultados do abuso psicológico e sexual perpetrado, a par das perseguições, foram bastante traumáticos.

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Travis Jackson

Estas pessoas estão aliviadas agora, depois de contarem as suas histórias?
Em alguns casos, as pessoas que entrevistei e fotografei não puderam recorrer da sua dispensa. Houve momentos em que percebi que o que me estavam a contar nunca tinha sido exteriorizado daquela forma. Participar neste projecto serviu para eles próprios reaverem a sua própria dignidade. Durante as entrevistas reviveram as experiências difíceis, algumas que já tinham até esquecido. Foi uma catarse emocional para grande parte deles. As fotografias evocam a sua humanidade, as suas qualidades e as suas fraquezas.

Como é que eles se sentiam por terem que servir uma instituição onde não eram aceites?
As razões para se juntarem ao exército foram iguais, ou semelhantes, às dos companheiros heterossexuais. Para eles, era uma honra servir o seu país. Veja-se o que me disse Joseph Rocha, por exemplo [um dos entrevistados, oficial da marinha norte americana]: "O meu amor pelo exército, pelas forças armadas, pelos serviços, pelos membros nunca desvaneceu. Eu é que estava no sítio errado à hora errada. As pessoas costumam dizer algo como, Não sejas gay, e ponto final, não me digas que és gay, por favor, mas isso inibe-me de ter a fotografia do meu namorado em cima da minha secretária ou contar histórias pessoais, ou ser tratado como uma pessoa. Essa outra face da moeda é terrível".

"Ver os meus companheiros a voltarem-se contra mim era horrível, mas deixar as pessoas que amo era ainda mais horrível e insuportável".

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Que histórias ficaram marcadas na tua memória?
Pessoas como Kevin Brannaman - violado pelo seu sargento - e Travis Dobbs - também violado pelo seu sargento e depois interrogado por um período de três dias - que sofreram actos de violência sexual terríveis e degradantes, sujeitos a métodos de interrogatório bastante duros e emocionalmente esgotantes.

Também Joseph Rocha - que sofreu assédios sexuais contínuos e abusos que violavam direitos humanos, do tipo: "Ser forçado a simular sexo com um cão enquanto estava a ser filmado, ser atado a uma cadeira, ficar preso na casota dos cães junto com as fezes e ser obrigado a comer comida de cão".

Sabes qual é a situação actual dos transgénero que se alistaram no exército norte americano?
Curiosamente, sei que o exército se refere a esse assunto utilizando a palavra "LGB". Os transgénero ainda não são bem recebidos no exército. Se algum soldado se assumir transgénero, ou se alguém o descobrir, será imediatamente dispensado.

Há alguma história, das que ouviste, em que uma pessoa homossexual conseguiu manter-se mentalmente saudável e optimista durante o serviço militar?
Muitos dos militares que servem e muitos dos veteranos tentam, simplesmente, concentrar-se na sua missão. E quando as coisas ficam mais difíceis, como não podem confiar em nenhum dos seu companheiros, apoiam-se na família e nos amigos.

Katie Miller [ex-cadete] põe a situação de uma forma bonita: "Ver os meus companheiros a voltarem-se contra mim era horrível, mas deixar as pessoas que amo era ainda mais horrível e insuportável".

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Greer Puckett - "Eu era responsável por 30 jovens marinheiros. Um dia, um deles veio ter comigo dizendo-me que ouviu o rumor de que eu era gay. E eu respondi-lhe: 'Não sei o que ouviste. Não me interessa o que ouviste. O que eu quero é que faças o teu trabalho e cumpras as tuas funções de acordo com o regulamento da marinha'. Não ía ser gozado por um bando de marinheiros. Nem pensar".

Will Chandlee - "Tive uma relação com um oficial da Marinha de Arkansas. Ele era bastante competente na cama. Levei-o a conhecer os meus pais. Um dia, quando estava lá por casa connosco, disse-me que se ia casar com uma rapariga que conhecia desde criança. Isso deixou-me em baixo; apanhou-me de surpresa".

Denny Meyer - "Em 1968, ninguém se assumia, dentro ou fora do exército. Se te descobrissem, faziam-te a vida negra. Se sobrevivesses, serias 'desonradamente' dispensado. E estavas lixado, porque naquele tempo era difícil arranjar um emprego se descobrissem que tinhas sido dispensado daquela forma".

Zachary Werth (direita) - "Andava com o Dustin e, naquela altura, estava assustado porque eu era o comandante. Trabalhei muito para isso - o meu posto, as minhas medalhas. Detesto-os pelo que fazem. Não percebo como é que conseguem fazer coisas tão terríveis a alguém. E sinceramente espero que o meu serviço sirva de exemplo e inspiração para alguém".

Heather Davies - "Na altura andava com uma pessoa que já estava na Marinha há mais tempo que eu. Ela crescera no regime antigo, em que a 'caça às bruxas' era bem mais activa e andavam à procura de homossexuais para depois os expulsarem. Conheci essa cultura e andava aterrorizada o tempo todo".