FYI.

This story is over 5 years old.

cenas

Viver com medo

Vivo com protecção policial há quase oito anos, por causa de um livro que escrevi.

Vivo com protecção policial há quase oito anos, por causa de um livro que escrevi. Tinha 26 anos quando publiquei Gomorra. Conta a história da Camorra, a máfia de Nápoles, a cidade onde nasci. Queria escrever sobre o poder empresarial da organização, porque a máfia não é só Coppola (um tipo de chapéu) ou espingardas de cano serrado. Não é o Michael Corleone. A máfia é um negócio, um comércio, uma ordem social que se opõe à lei. Decidi transmitir todas essas ideias, decidi descrevê-lo numa narrativa, com nomes e apelidos. Nunca imaginei tudo o que aconteceria depois, a quantidade de problemas que surgiriam apartir do livro.

Publicidade

Ainda me lembro do dia em que regressei a Nápoles, de comboio. O último dia em que fui livre. Vinha de um festival literário no norte da Itália e fui recebido pela polícia militar. Meteram-me num carro blindado. Eu não disse nada. Fiquei ali, a olhar para os meus sapatos, como se tivesse sido preso – embora estivessem na verdade a salvar-me a vida. Disseram-me: "Desculpe, mas temos que colocá-lo sob protecção". Pensei que ia ser por pouco tempo. Eles garantiram-me: "Serão apenas algumas semanas, depois tudo voltará ao normal". Passaram oito anos – quase um quarto da minha vida – , e o julgamento de Antonio Iovine e Francesco Bidognetti (os dois chefes da Camorra, acusados de ameaçar-me de morte, numa carta lida pelos seus advogados, durante o julgamento) termina este outono – talvez.

Oiço muitas perguntas: Porque é que os chefes da máfia odiariam alguém que escreve? O que é que eu desvelei? E acima de tudo, agora que publiquei as minhas descobertas, matar-me não seria algo sem sentido? Matar-me não confirmaria todas as coisas horríveis que as pessoas já pensam sobre a máfia?

As organizações criminosas não têm medo de escritores, mas de leitores. Por isso é que os assassinatos de jornalistas em todo o mundo, levados a cabo por organizações criminosas, não têm fim. A internet recolhe todos os dados, e os criminosos não temem as fugas de informação, mais cedo ou mais tarde tudo se sabe. Os juízes e a polícia investigam, prendem e às vezes condenam, e eles, os mafiosos, acatam. O que não aceitam, o que os preocupa, é que o público comece a entender o crime organizado, a discuti-lo, a partilhar informações, e que, eventualmente, as pessoas comecem a pensar seriamente numa mudança. Pressão cultural, pressão política, a exigência de uma transformação – é isso que assusta os chefes da máfia. A coisa mais perigosa que um jornalista – um narrador – pode fazer é juntar as peças, encontrar teorias novas e válidas, e partilhá-las.

Publicidade

Desde que o meu livro foi publicado, a pergunta que mais me fazem é: "Como é que podes viver sabendo que estás condenado a morrer? Não tens medo?". Quando convives constantemente com o medo, deixa de ser medo. Torna-se familiar e já não é hostil. Tentas entender como relacionar-te com ele. Não rego a terra onde a planta do medo criou raízes. Deixo que seque, mas não deixo essa planta morrer. A raiz vive. Tenho que lembrar-me do medo para poder senti-lo.

Na terra onde nasci matam muitas pessoas. Vi muitos cadáveres quando era pequeno. Faziam-me sentir adulto. Aprendi a reconhecer os sinais. Através das feridas nas mãos dos cadáveres pude perceber que as usaram para tapar a cara. É o instinto. Ninguém acredita que as suas mãos podem parar o tiro de uma 9 milímetros ou de uma AK-47, mas o instinto é mais forte. Assim como alguém que acelera em direcção a um muro, e que no último segundo larga o volante para cobrir o rosto. Uma pessoa prestes a ser baleada na cabeça faz o mesmo.

Mais tarde, aprendi que o cheiro diz muita coisa: se um cadáver cheira a peixe podre, isso significa que a pessoa comeu peixe antes de morrer. Se sentes o cheiro de lixo azedo, comeu frutas ou carne. O cheiro de comida é mais forte quando a vítima foi baleada no estômago ou várias vezes no peito. Pela urina e merda à volta do corpo, sabes se a pessoa morreu em agonia. Quando acertam nas pernas, na barriga ou no peito e as balas não atingem imediatamente um órgão vital, o corpo tem tempo para ter medo e mijar-se ou cagar-se. Também havia o rigor mortis do pénis. Quando era miúdo chocavam-me essas erecções ridículas e obscenas que saiam dos calções dos homens que morriam no verão. É mais comum morrer durante o verão, porque a gente dá menos importância. Matam mais no verão porque as pessoas saem mais, e mesmo que te escondas porque tens medo, o calor força-te a sair.

Publicidade

Se esse for o meu fim, espero não morrer na rua, com milhares de pessoas em cima de mim, a perguntar como é que eu me chamo, para quem é quem devem telefonar, ou a dizer que vai ficar tudo bem. Sempre pensei, quando via esses cadáveres, que seria melhor morrer rapidamente, numa rua isolada, tu e a tua alma. Morrer como viveste: sozinho.

***

Comecei a escrever sobre a Camorra para me vingar deles. Acredito que essa é a melhor maneira de fazê-los pagar todo o mal que fizeram e continuam a fazer – como por exemplo envenenar a terra com o tráfico de lixo, destruir as costas com violações das leis de construção, e dominar a vida pública e privada das pessoas. Tentei responder, falar sobre este assunto com o maior número de pessoas possível.

Eu tinha a certeza que o tinha conseguido com as minhas palavras, que as tinha transformado em armas. Que tinha conseguido forçá-los a reagir. A luz que liguei tinha provocado prisões e atraído televisões do mundo inteiro. Mas comecei a pensar: se o meu trabalho me destruir, valeu a pena? Valeu a pena, mesmo com sete polícias à minha volta, 24 horas por dia?

Os chefes da máfia sabem que, mais cedo ou mais tarde, serão mortos ou sentenciados à prisão perpétua. Não têm alternativa. Eles assumem a responsabilidade, e isso torna-os únicos, num país onde ninguém assume a responsabilidade por nada.

Percebes que chegou a altura de deixar o teu país, quando entendes que não morrer te torna culpado. Ouves uma ladainha silenciosa: Não devias ter sido morto pela máfia? Continuas vivo? Conseguir sobreviver a uma sentença de morte torna-te suspeito. Estás vivo, então não os assustaste realmente. Uma vez, o Comité do Prémio Nobel convidou-me a mim e ao Salman Rushdie para falarmos sobre as nossas experiências, na Academia Sueca. Ele disse-me: "Vão culpar-te por não estares morto". Na altura não acreditei, mas foi isso que aconteceu.

Esta é a minha introdução. Isto é o que eu sou. Neste espaço, nos próximos meses, encontrarás histórias sobre máfia e violência, reflexões sobre o poder e os mecanismos que tornam as organizações criminosas na vanguarda do capitalismo contemporâneo. Estas palavras são a prova de que estou vivo, e é assim que pretendo permanecer. Lá no fundo, sou um privilegiado. É raro que as palavras de um escritor lhe destruam a vida – e é ainda mais raro que essas mesmas palavras a regenerem.

Roberto Saviano é um escritor e jornalista italiano. É o autor de Gomorra e Zero Zero Zero. Nos últimos oito anos, tem vivido sob protecção policial por causa de ameaças de morte feitas pela Camorra. O filme Gomorra, baseado no livro, recebeu o Grand Prix de Cannes em 2008. A série de televisão, que estreou em 2014, é distribuída em 50 países.

Segue-o no Twitter.