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Em processo de McDonaldização

O facto de que uma criança tenha um diagnóstico positivo de TDAH não é surpreendente.

O catedrático de Psicologia da Universidad de Oviedo, Marino Pérez, afirma que o TDAH (Transtorno por Déficit de Atenção e Hiperactividade) é uma invenção. Explica-o no seu novo ensaio Volviendo a la normalidad (Alianza Editorial), juntamente com o psicólogo Fernando García e o biólogo Héctor González.

Como fui (mau) aluno de Marino há muitos anos, quis que mo explicasse melhor. Sentámo-nos, ele com o seu café e paciência, eu com o a minha cerveja, e atacámos a questão.

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VICE: Comecemos pelo início : O que é um transtorno?

Marino Pérez: Um transtorno psicológico é um termo, que sugere um problema que dificulta a vida da pessoa, mas que também tenta evitar a noção de "doença", procura neutralidade, já que a doença supõe que existe uma condição biológica.

Ok. A segunda parte: O que é o "déficit de atenção e hiperactividade"?

Supõe que a atenção e a falta de auto-controlo das crianças constituem um problema para os adultos, começando pelos pais e pelos professores. As crianças não prestam atenção ao que os adultos consideram importante, por exemplo, as tarefas escolares e, em vez de estar quietos, estão sempre em movimento.

O título de um dos capítulos do vosso livro é bastante polémico: " Como estragar uma criança ". Como é que se estraga uma criança ?

Esse título, irónico, refere-se a práticas muito comuns que, embora bem intencionadas, prejudicam muito as crianças. Por exemplo, uma delas é achar que que as crianças têm de ir à escola para divertir-se, quando estes, para divertir-se não têm porquê ir à escola. Podem perfeitamente fazê-lo em casa. Quando se está na escola há diferentes momentos e espaços: uns para divertir-se, como o recreio, e outros para aprender matérias que não são necessariamente divertidas. Se o fossem, dificilmente poderíamos diferenciá-las do recreio. Outro exemplo é a auto-estima, uma moda que nos chegou da Califórnia, durante os anos setenta. Acreditava-se que os problemas que as crianças e os adolescentes tinham, como a ausência, a violência, e as gravidezes indesejadas, estavam relacionados com a falta de auto-estima, e pensava-se que fomentando a auto-estima esses problemas desapareceriam. Não só se descobriu que não era assim, como se entendeu que as coisas se processavam de forma contrária. Treinava-se a auto-estima dizendo às crianças e adolescentes que repetissem "sou muito competente", "tenho muito valor", "posso"… sem que houvesse, necessariamente, esforço ou sucesso envolvido. Se procedemos assim criamos crianças com um ego muito insuflado, e isto torna-os muito vulneráveis, sobretudo nesses momentos que mais cedo ou mais tarde terão de viver, como é o caso da frustração: quando as coisas não acontecem com a rapidez ou da maneira que esperam e querem. Consequentemente, esta frustração produz agressividade.

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Imagina que sou um pai com umfilho a quem diagnosticaram TDAH, e o meu filho corresponde a todos os pontos do diagnóstico o que é que faço ?

O facto de que uma criança tenha um diagnóstico positivo de TDAH não é surpreendente. É muito fácil encaixar nele porque se define por uma série de comportamentos muito genéricos, e que muitas crianças cumprem. Não negamos que esses comportamentos possam representar um problema para o adulto. Uma criança deve saber responder e esperar, e talvez a algumas destas crianças não lhes tenham ensinado esse tipo de comportamento. É um problema de aprendizagem. Mas podemos ensinar-lhes estas coisas através da prática e dos hábitos que, nós adultos, empregamos na hora de relacionar-nos com eles.

Shin Chan seria o perfeito exemplo da criança irritante.

Os defensores do TDAH responderão que existem umas bases genéticas

O diagnóstico formal do TDAH já supõe uma doença com alguma alteração cerebral, de origem genética. No entanto, estudos levados a cabo metodologicamente não encontraram nenhum gene ou marcador biológico associado ao TDAH. A suposta origem genética do TDAH só serve para dar pedigree médico a esta condição, e para liberar a sociedade e os adultos de responsabilidades. Vivemos numa sociedade em que as pessoas não estão habituadas a assumir a responsabilidade do que lhes acontece na vida, e a sociedade também não quer assumir que gera contradições, e que estas provocam problemas nos indivíduos. Nesse contexto, aparecem a biologia ou a genética como bode expiatório. O indivíduo e a sociedade safam-se da responsabilidade, e além disso há diversos agentes muito interessados em aproveitar-se desta dinâmica. Um deles é, sem dúvida, a indústria farmacêutica, que capitaliza os problemas dos indivíduos como se fossem doenças, para comercializar medicamentos, como se houvessem medicamentos para resolver problemas de comportamento social ou interpessoal! Assim como a indústria também existem determinados profissionais, tanto psiquiatras como psicólogos, que encontram no TDAH um problema social muito fácil de diagnosticar. Oferecem uma espécie de explicação à sociedade. A própria sociedade é muito receptiva a esta explicação devido aos motivos que expliquei antes: no há culpados, é a neuroquímica do cérebro. Ninguém tem responsabilidade.

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No teu livro falas de uma McDonaldização da infância, mas aqui já entramos na McDonaldização do adulto, como mecanismo para não sentir-se responsável, encontrar soluções fáceis…

Efectivamente. É uma expressão de um pediatra inglês que se refere ao facto de que convertamos problemas da vida em supostas doenças medicáveis em série. A McDonaldização começou com os adultos. Muitos problemas existenciais que temos, próprios da nossa sociedade de consumo, competitiva, frustrante… transformaram-se em supostos transtornos, como a depressão, a ansiedade ou a fobia social. "Patologizamos" a vida adulta, e o processo estende-se até à infância.

A depressão clínica partilha muitas condicionantes com o TDAH, como explicasteno livro anterior

Nos últimos vinte e cinco anos a depressão transformou-se numa epidemia, quando antes era muito menos frequente. O que é que aconteceu? As pessoas aprenderam a deprimir-se porque foram induzidos a fazê-lo. Começaram a viver os problemas quotidianos da vida, como as decepções, as frustrações, os conflitos ou as perdas, como se fossem uma doença que tem um remédio… e que curiosamente consiste na medicação. Com a comercialização do Prozac através de campanhas publicitárias propagou-se uma sensibilização extrema entre a população, de tal maneira que os maus-estares quotidianos, aos quais as gerações anteriores não davam importância, se converteram em anormais e susceptíveis de medicação. Há depressões que precisam de ajuda especializada, mas essa ajuda deveria centrar-se nas condições existenciais, e não numa suposta neuroquímica. Não se encontrou nenhuma alteração neuroquímica que esteja na origem da depressão. Medicamentos como o Prozac não corrigem uma alteração específica de uma determinada condição. São úteis do ponto de vista da dopagem: aumentam a energia e isso pode ajudar-te a resolver o problema.

Estamos a criar uma geração de crianças e adultos dopados? Estamos a criar uma geração "D"?

Seria uma boa definição. Estamos perante uma sociedade que quer solucionar os seus problemas através da química. Isto não só implica os efeitos nocivos dos fármacos, como também cria indivíduos incapazes de assumir a responsabilidade que têm, no que diz respeito a mudar a sociedade ou assumir o comando da sua vida. Remetem-se a uma solução mágica, o fármaco, e a uma explicação impessoal, a neuroquímica. Acabaríamos numa sociedade de indivíduos dopados, incapazes de assumir a sua vida…

E numa sociedade controlada pelas farmacêuticas , quatro ou cinco empresas, que seriam as 'dealers' que nos passamsubstâncias para afrontar a nossaexistência.

Exacto. Dominada por empresas que não são ONG's. O que fazem é vender fármacos, e os seus clientes são os cidadãos diagnosticados. Este mecanismo encaixa no desejo do cidadão, que não quer viver os problemas normais da vida, e as farmacêuticas por sua vez oferecem-lhe soluções mágicas. É como "Um mundo feliz" do Huxley, onde o indivíduo é identificado com a condição de consumidor, e cujo critério mais importante para avaliar o mundo é "gosto". Estamos perante uma redução brutal da capacidade do indivíduo para julgar, distinguir ou diferenciar, e dar valor às coisas. É onde vivemos hoje em dia, nesta espécie de campo de concentração sem arame farpado.