FYI.

This story is over 5 years old.

Coluna do Pussy Riot

A Coluna do Pussy Riot: a Luta pelo Direito ao Aborto na Rússia

Na Rússia, como em toda parte, muitos grupos antiaborto admitem que não são somente contra o aborto, mas contra métodos contraceptivos modernos.

Manifestantes antiaborto em Vladivostok, 2007. Foto via AP Photo.

"O feminismo está de licença-maternidade!", eu grito. É outono de 2011: estou com o Pussy Riot protestando contra a possibilidade de a Rússia adotar uma nova lei antiaborto. Estamos usando nossas balaclavas e tocando punk rock feminista old school numa plataforma estreita, que fica num andaime duma estação do metrô de Moscou, seis metros acima das cabeças do público e da polícia. É o primeiro show do Pussy Riot.

Publicidade

Naquela época, se você acordasse uma feminista russa típica no meio da noite e perguntasse qual era o maior medo dela, ela responderia imediatamente: "Que eles aprovem a lei antiaborto". A lei propunha tirar o aborto da lista de procedimentos médicos gratuitos fornecidos pelo Estado e proibi-lo caso não houvesse o consentimento do marido, se a mulher fosse casada, ou dos pais, se ela fosse menor de idade. Isso também obrigaria os médicos a dar sete dias "para a mulher pensar" antes de fazer o procedimento, a obrigaria a passar por uma "consulta psicológica", exigiria que ela "fosse informada sobre os perigos do aborto" e tivesse de "ouvir o batimento cardíaco do feto". (Similar à lei exigindo que as mulheres passem por um período de espera e vejam uma imagem do ultrassom do feto antes de fazer um aborto, medida proposta e adotada por vários estados norte-americanos.)

"Vocês mencionaram a lei antiaborto na sua música. Por quê?", perguntou uma jornalista depois que saímos do show.

"Claro que mencionamos", eu disse a ela. "Já vivemos num país onde não temos direito nenhum de escolha."

"As mulheres já passam muitas dificuldades aqui, e estão tentando nos restringir ainda mais", acrescentou Bullet. Ela é outro membro do Pussy Riot.

"Temos de parar de estragar tudo", afirmou uma ativista chamada Hat, entrando na conversa. "Por que temos de estragar tudo sempre?"


Assista: Jovem e Gay na Rússia de Putin

Publicidade

No final, a lei antiaborto de 2011 foi apenas parcialmente adotada. A "semana de silêncio" obrigatória entre a visita da mulher ao médico e o aborto se tornou lei, o que significa que a Rússia aceitou a ideia de que as mulheres são criaturas irracionais e que não se pode confiar em suas decisões sobre seus próprios corpos. A nova lei também permitiu que médicos se recusem a fazer abortos devido a "convicções morais".

Agora, a Duma está considerando uma lei que vai tirar o aborto da lista de serviços cobertos pela saúde pública do Estado, além de proibir clínicas particulares de realizá-los. A proposta surgiu depois de o Patriarca Cirilo, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, ter falado na Duma em janeiro, quando disse, entre outras coisas, que restrições ao aborto ajudariam a aumentar a taxa de natalidade na Rússia. "Se conseguirmos cortar o número de abortos pela metade, teremos um crescimento populacional estável e poderoso", ele opinou.

A conversa sobre aumento populacional é um negócio sério na Rússia: aqui, o declínio da taxa de natalidade é discutido em tons de crise nacional. Inclusive, o presidente Valdimir Putin reiterou uma vez que o país precisava "se limpar" dos gays para aumentar o número de nascimentos. A taxa de natalidade também é invocada pelos políticos que querem atacar direitos reprodutivos.

Gennady Onishchenko, que era o equivalente russo de um cirurgião geral e hoje é conselheiro de gabinete, comentou recentemente que "produtos de borracha (camisinha) não têm nada a ver com saúde". A frase do burocrata soa ainda pior quando você considera que o número de russos com AIDS foi de 500 mil em 2010 para 900 mil hoje – uma tendência que é o oposto do que você espera de um país desenvolvido. Onishchenko também falou abertamente que espera que uma proibição na venda e importação de camisinhas obrigue os russos a "ser mais discriminatórios, mais restritivos e seletivos na escolha de parceiros" e que a proibição "serviria nossa sociedade bem, resolvendo problemas demográficos".

Publicidade

É estranho que o Patriarca e Onishchenko não saibam disso, mas reduzir abortos não quer dizer que os nascimentos vão aumentar. Segundo o site russo Meduza, de 1990 a 1999, o número de abortos na Rússia caiu 1,8%, enquanto o número de nascimentos caiu 1,6%. A taxa de natalidade continuou a cair na Polônia depois que a proibição do aborto foi introduzida por lá em 1993: em 2003, por exemplo, a taxa de natalidade polonesa foi uma das mais baixas do mundo. Perdas demográficas aconteceram no começo dos anos 30 mesmo após a proibição do aborto por Stalin na União Soviética, uma proibição que durou de 1936 a 1955. A lei quase não teve efeito na taxa de natalidade: 1937 viu um salto de 10% nos nascimentos, mas logo a taxa voltou a cair, enquanto a mortalidade materna subia dramaticamente.

Iniciativas antiaborto provavelmente não vão dar à Rússia uma taxa de natalidade mais alta, embora com certeza estejam em harmonia com os valores conservadores de Putin. Elas se encaixam em outra tendência também – na qual as autoridades russas recorrem a proibições para resolver problemas em vez de trabalhar para melhorar as condições que causam esses problemas. Uma proibição requer menos gasto de recursos governamentais. Proibimos queijo estrangeiro, férias fora da Rússia e abortos. Essa tendência de proibir tudo é um solo fértil para grupos russos que contestam o direito das mulheres de controlar o próprio corpo.

Publicidade

"Na Rússia, como em toda parte, muitos grupos antiaborto admitem que não são somente contra o aborto, mas contra métodos contraceptivos modernos."

Esse desejo de controle, de que as mulheres se submetam, permeia todo o movimento antiaborto. "Como qualquer mulher sabe, o propósito das relações sexuais é o nascimento de filhos, enquanto o prazer é de importância secundária para seu corpo", atesta o site do grupo antiaborto russo "Guerreiros da Vida". "DIUs e fórmulas hormonais são normalmente listados como métodos contraceptivos modernos", o site continua. "Os dois são, na verdade, métodos abortivos. Não há diferença entre esfaquear uma pessoa ou envenená-la. O resultado é o mesmo." Na Rússia, como em toda parte, muitos grupos antiaborto admitem que não são somente contra o aborto, mas contra métodos contraceptivos modernos.

Em 1920, a Rússia se tornou o primeiro país do mundo a legalizar o aborto. Porém essa decisão foi revertida por Stalin no final daquela década, e a discussão sobre sexo e nascimentos caiu no subconsciente do público. Não era educado falar sobre sexo na União Soviética; em 1986, uma mulher russa ficou famosa por dizer "Não há sexo na URSS" numa transmissão televisiva entre URSS e EUA. Isso resumia a situação perfeitamente. Enquanto os EUA passavam pela revolução sexual nos anos 60 e 70, o Ministério da Saúde soviético escrevia sobre os perigos de contraceptivos hormonais. O país ainda não superou sua desconfiança em relação aos anticoncepcionais modernos – o que pode explicar as taxas de aborto notoriamente altas do país.

Publicidade

Para cada 100 mulheres entre 15 e 44 anos na Rússia, há 25 abortos. Nos EUA, são 17. Razão, história e experiência nos dizem que, se queremos reduzir o número de abortos, proibição não é o meio de atingir esse resultado. Esse índice pode cair fazendo com quem informações confiáveis sobre planejamento familiar estejam disponíveis para todos, garantindo que as pessoas possam consultar especialistas sobre esses métodos e oferecendo uma variedade de opções contraceptivas e educação sexual.

Aborto continua legal na Rússia, mas é óbvio que forças antiaborto – e também as que são contra os contraceptivos e essa escolha ser da mulher – estão em ascensão. Quanto à educação sexual, lembro-me de ouvir: "Seu futuro filho vai parecer o homem que tirou sua virgindade. Seu corpo se lembra daquele primeiro homem; então, seja cuidadosa com quem você escolher!". Essa foi a única "educação sexual" de toda minha carreira escolar. Em duas horas de aula, a professora nunca mencionou as palavras "sexo" e "contracepção". Isso foi em 2005.

As coisas não estão muito melhores em 2015. Neste ano, a Câmara Cívica da Federação Russa fez uma reunião do comitê sobre ciência e educação. Membros do clero e organizações conservadoras lotaram a sala, incluindo Larisa Pavlova, a promotora do julgamento do Pussy Riot. Eventualmente, todas essas vozes se misturaram em uma na minha cabeça:

"Sou professora, e temos essas pessoas na nossa escola agora… elas falam sobre 'sexo seguro', vocês me perdoem a expressão."

Publicidade

"Vamos dar queixa com a promotoria contra qualquer um conduzindo educação sexual entre nossas crianças!"

"O principal papel dos jovens é garantir a reprodução da sociedade. No entanto, nosso ambiente informacional de hoje está implantando nos jovens não valores espirituais, mas hedonismo, individualismo e outros valores negativos."

"As forças trabalhando para destruir a família estão usando táticas de salame: cortando a família em fatias."

"Devemos exigir módulos dedicados aos valores familiares em todo o currículo básico. Mesmo na matemática e computação!"

"Quando contratamos diretores escolares, o foco não deve ser nas qualidades profissionais da pessoa, mas na imagem espiritual e moral que ela projeta!"

"Hitler matou apenas metade dos russos que o governo soviético matou com abortos. Abortos só foram legalizados nos EUA em 1972; logo, eles tiveram 50 anos de vantagem."

"Temos de deixar claro que a sociedade é contra educação sexual nas escolas."

Vozes como essa são o motivo para o Pussy Riot ter cantado "Dê aos sagrados o que eles precisam! Façam as mulheres amarem e procriarem!" na Catedral do Cristo Salvador em 2012 – antes de sermos presas.

"Da próxima vez que alguém me perguntar por que levamos nossa oração punk para dentro da Igreja Ortodoxa em 2012, vou dizer: 'Porque não queremos que o aborto seja criminalizado'."

Na República Popular de Donetsk, a região pró-Rússia que se separou da Ucrânia, o aborto não é mais legal. O artigo três da constituição da RPD, adotada em maio de 2014, descreve: "O ser humano e seus direitos e liberdades são altamente valorizados. Reconhecê-los, cumpri-los, respeitá-los e defendê-los é uma obrigação da República Popular de Donetsk e de suas agências e oficiais do governo, e são garantidos no momento da concepção". Qualquer término artificial da gravidez é considerado assassinato premeditado.

Tenho uma pergunta para as pessoas que argumentam contra o direito das mulheres de decidir se querem ou não ser mães: vocês estão preparados para aceitar a RPD como seu modelo?

Da próxima vez que alguém me perguntar por que levamos nossa oração punk para dentro da Igreja Ortodoxa em 2012, vou dizer: 'Porque não queremos que o aborto seja criminalizado. Quero que eu e, um dia, minha filha possamos escolher o que acontece com nossos corpos. E quero que, algum dia, as feministas russas não tenham mais de se preocupar por quanto tempo ainda terão controle sobre suas funções biológicas básicas'.

Tradução do russo por Brendan Mulvihill e do inglês por Marina Schnoor.