A cura gay não funcionou com a pastora Lanna Holder
Lanna Holder ao lado de sua mulher, a cantora e também pastora Rosânia Rocha. Foto: Raphael Tognini/VICE

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A cura gay não funcionou com a pastora Lanna Holder

Casada com um pastor evangélico, mãe e conhecida por pregar a cura gay, ela se apaixonou por outra pastora. E o mundo gospel ficou puto (Malafaia e Feliciano inclusos).

Desde pequena, Lanna Holder conhece bem sua preferência sexual: meninas. Aos 18 anos, fugiu de casa para se juntar a outra mulher. Ao mesmo tempo, se envolveu com drogas e bebida. Perturbada com as pregações evangélicas da mãe, que insistia em dizer que ela ia para o inferno por ser lésbica, Lanna largou a namorada — com quem vivia há três anos — e os vícios, fez as malas e rumou para o interior de Pernambuco, onde se isolou do passado e convivia somente com outros evangélicos. Seus primeiros testemunhos se destacaram entre os crentes. Afinal, ela se dizia uma ex-homossexual, curada e liberta. Lanna se tornou pastora, viajou o mundo levando consigo o testemunho da cura gay e ganhou cada vez mais destaque no universo evangélico. Casou com um pastor e teve um filho. Durante uma viagem aos Estados Unidos, conheceu Rosânia Rocha, pastora, cantora, mãe e também casada com um pastor. Ambas se apaixonaram, se envolveram e resolveram contar para os maridos sobre a traição. É aí que o mundo gospel virou de cabeça para baixo. Choveram ofensas e críticas, inclusive dos pastores Malafaia e Feliciano.

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No vídeo a seguir, Malafaia fala sobre Lanna em seu programa de TV. Ao lado dele, está o pastor Joide Miranda, ex-travesti, com sua esposa e filho, ou seja, um homossexual "curado".

Juntas há cinco anos, Lanna e Rosânia abriram a Cidade de Refúgio, uma igreja evangélica que, diferentemente da maioria, aceita gays sem considerá-los doentes ou "endemoniados". "Costumo dizer que tudo aquilo que Jesus pôde mudar em mim, ele mudou. Hoje, não sou alcoólatra, não uso drogas, mas a minha sexualidade continua a mesma", desabafa. A seguir, leia a conversa que tivemos numa noite em seu escritório de paredes verde-oliva na igreja, no centro de São Paulo.

VICE: Como você se tornou evangélica? Antes disso, você era religiosa?
Lanna Holder: Minha família era de formação católica e espírita. Meu pai até hoje é pai de santo da umbanda. Aos 10 anos, fui para um colégio de freira. Fiquei interna durante dois anos. Lá, me aprofundei na religiosidade. Eu já sabia que era diferente e até tive vontade de ser freira. [risos] Ainda bem que nunca funcionou. Saí da escola por conta de minha orientação sexual, que já dava indícios desde a infância. Quando completei 17 anos, comecei a lutar contra minha sexualidade. Mais por causa de minha mãe. Tínhamos caso de homossexuais na família, mas ela se mostrava muito avessa e dizia que me mataria se um dia descobrisse que eu era lésbica. Dizia também que preferia que eu fosse prostituta do que lésbica. Eu já sabia quem eu era. Comecei a lutar contra isso, até perceber que não ia conseguir. Então, comecei a ter envolvimentos, a namorar com menina, enfim. Nessa época, eu morava em Recife e comecei a me envolver com drogas pequenas como Loló e lança-perfume. Quando completei 18 anos, saí de casa para me assumir. Me desliguei totalmente de minha mãe. Aí tive um relacionamento de três anos com outra mulher. Nessa época, eu me envolvi com drogas mais pesadas como cocaína e maconha. Me tornei uma dependente química. Tinha problema também com álcool. Era praticamente uma alcoólatra. Bebia todos os dias, compulsivamente. A conversão veio com a proposta de restaurar minha vida. Costumo dizer que tudo aquilo que Jesus pôde mudar em mim, ele mudou. Hoje, não sou alcoólatra, não uso drogas, mas minha sexualidade continua a mesma. É a única coisa que não mudou, embora eu tenha me sujeitado a todos os protocolos que a igreja evangélica recomenda para que você seja curado ou liberto. Fiz todo esse checklist para buscar essa mudança, essa cura, essa transformação. Casei, tive filho. Mas cheguei num momento em que percebi que nada do que eu fazia mudava minha natureza. Foi quando realmente descobri que precisava confrontar toda a teoria que eu tinha aprendido com a prática que eu estava vivenciando naquele momento. Foram sete anos buscando essa mudança de sexualidade, e eu não via isso acontecer. Sublimei de todas as formas possíveis, imagináveis e dolorosas. Lutar contra quem você é te faz beirar a loucura. Foi assim que eu conheci o evangelho. Minha família por parte de mãe se converteu e começou a pregar para mim, dizendo que se não me convertesse, eu iria para o inferno, principalmente pelo fato de eu ser gay.

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Você lidava bem com o fato de ser gay?
Sempre lidei muito bem com minha diferença com relação às minhas amiguinhas. O que eu gostava de fazer aos sete anos de idade, elas não gostavam, como jogar futebol, empinar pipa, bolinha de gude, carrinho de rolimã. Então, eu andava com os meus amiguinhos. Não era nada excepcional. Não me achava uma aberração. A inocência te dá a oportunidade de viver sem se punir e condenar. Minha mãe já percebia que eu era diferente e dizia "Aí de você se virar sapatão". Ela tem duas irmãs lésbicas. Para ela, era como se fosse uma maldição. Com 10 anos, eu me apaixonei pela professora de redação. Coisa de criança mesmo. Com 12 anos, na escola de freira, me apaixonei pela minha melhor amiga. Por isso fui expulsa, porque descobriram que estávamos de namorinho. Nada de sexo, coisa de adolescente mesmo. Com 15 anos, comecei a namorar rapazes para ver se mudava isso em mim. Com 17 anos, decidi conhecer intimamente um homem para ver se eu conseguia gostar. Aí percebi que estava indo contra minha natureza. Minha mãe era uma mulher muito autoritária. Apanhei muito na adolescência. Tinha um medo terrível de assumir minha sexualidade para ela. Sete dias depois de completar 18 anos, fugi de casa. Saí de madrugada, deixei uma carta para ela dizendo que eu tinha saído de casa e que eu ia viver com outra mulher.

Como foi a decisão de virar evangélica? Você achava que precisava mudar?
Minha mãe me apresentou o evangelho quando eu tinha 20 anos. Eu era bombardeada pelas pregações dela, que dizia "Minha filha, se você não se converter, você vai para o inferno. Jesus está voltando". Eu ouvia esse sermão constantemente. Minha conversão não foi por conta das drogas e do álcool. Sempre compreendi que se me internasse numa clínica de reabilitação, eu pararia. O que era difícil de conceber era ver Deus mudando minha sexualidade. Porque eu já conhecia minha essência desde a infância. Eu sabia que se alguém pudesse fazer alguma coisa por mim seria Deus. A igreja evangélica não sabe definir o que causa a homossexualidade. Ela diz que é demônio, outras dizem que é doença. A igreja não tem as respostas. Quando eu me converti, pensei: ou Jesus vai me curar ou me libertar. Eu falava para Deus "Se for demônio, pode manifestar, pode babar, pode girar a cabeça que nem o Exorcista, mas tem que sair". Eu me submeti a tudo. Ficava desesperada para que aquela situação fosse mudada. Ninguém quer ir para o inferno. Só se o cabra for doido. Se aquilo ali fosse me levar para o inferno, eu estava disposta a mudar e sacrificar minha vida inteira. E foi o que fiz durante sete anos buscando essa mudança. Minha conversão foi motivada por esse fator: mudar minha sexualidade.

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Durante esses sete anos, você se casou e teve um filho. No testemunho antigo que assisti, você diz com todas as letras que "homossexualismo (sic) é pecado". O que passava em sua cabeça naquela época? Era mesmo um pecado? Dentro de você, você sabia que era lésbica e isso não teria "cura"?
Com seis meses de convertida, fiz uma viagem missionária para a Europa para aprender a evangelizar pessoas. Éramos um grupo de 32 crentes. Lá, visitaríamos sete igrejas diferentes. Em cada uma, contaríamos um pouco de nossa história. Na primeira igreja, me destaquei com o que contei. Lembro que, um dia antes, praticamente não dormi. Estava fazendo intercâmbio na casa de uma senhora inglesa. Ela percebeu que eu não estava bem. Disse para ela, com meu inglês meio quebrado, que teria que contar minha história. Não queria que as pessoas soubessem que eu tinha sido lésbica ou que eu estava lutando contra minha sexualidade. Acabei dando o testemunho no dia seguinte. Nas outras demais igrejas da Europa continuei a dar meu testemunho, dizendo que Deus tinha me tirado das drogas, do álcool e da homossexualidade. Então, aquilo ali começou a se tornar uma verdade para mim. Eu pensava assim: eu ainda sinto vontade, eu ainda sinto desejo, mas isso é tentação. Deus me curou. Deus me libertou. Mas eu era confrontada por minhas dúvidas. Se Deus me curou, por que eu ainda sinto isso? Então, comecei a acreditar que o fato de estar falando e testemunhando que eu era uma ex-lésbica iria surtir um efeito real em minha vida. Esse era meu desejo. Quando algum fundamentalista vem conversar com a gente, a primeira coisa que diz é "Mas você falou durante sete anos que Deus tinha te curado, então você mentiu". E eu digo "Não, eu não menti. Eu falei aquilo que eu queria que acontecesse em minha vida, que eu ansiava desesperadamente". Quando percebi, tinha um marketing em cima do meu ministério. Era sempre "Amanhã teremos na igreja a ex-lésbica missionária Lanna Holder". Vinha primeiro o ex-lésbica, depois o meu nome. Esse era o marketing que existia em cima de mim.

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Na internet, vi muitos pastores condenando suas atitudes. Como você lida com essas críticas?
Sabe por que nunca foi difícil? Porque eles falam contra minha orientação sexual. O que eles veem como abominação, aberração, como um pecado, eu vejo como parte de minha natureza. A única coisa que eles têm para falar de mim é contra minha orientação sexual. O que será que Deus tem para falar de cada um deles? Conheço um pouco da história de cada um porque andei com eles. Não vou descer o nível. Mas a vida deles tem muita coisa que precisa ser curada e transformada.

Você acha que existe uma "cura gay"?
Se eu falar que sim, vou dizer que a homossexualidade é uma doença. E está mais do que provado que não existe nenhum problema na homossexualidade nem na heterossexualidade. O problema está na imoralidade do ser, seja ele hétero ou homossexual. Não existe cura para quem não está doente. Assim como não existe libertação para quem não está endemoniado. A homossexualidade não é uma questão de possessão demoníaca. Ninguém escolhe ser alvo de preconceito, de crítica, de falatório, de xingatório. Não acredito que exista uma cura.

De que maneira a intolerância religiosa interfere na vida dos homossexuais no Brasil?
Cem por cento. A gente tem recebido muitas pessoas na igreja que são exatamente fruto dessa intolerância. Pessoas que acreditavam que a igreja não era seu lugar porque são homossexuais. A igreja sempre trouxe um discurso de religiosidade demasiada, mas nunca um discurso de amor e aceitação. Hoje em dia, a intolerância religiosa tem colocado muitos gays no inferno — não no inferno subterrâneo, no inferno de vida.

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Quando você resolveu abrir uma igreja que não visse homossexuais como doentes?
Eu e Rosânia nos conhecemos em 2002, nos Estados Unidos. Ela já era pastora de uma igreja e uma das cantoras mais conhecidas na comunidade brasileira de lá. Nos conhecemos, nos envolvemos. Na época, ambas éramos casadas. Procuramos os pastores e nossos maridos para reconhecer nosso erro. Fazemos questão de falar sobre isso porque não fazemos apologia ao pecado, ao contrário do que muita gente pensa. Buscamos confessar nosso erro, o adultério. Tentamos, de alguma forma, nos separar, mas nos amávamos demais. Hoje, nos amamos mais ainda. [risos] E assumimos nossa sexualidade e nosso relacionamento. Passamos praticamente sete anos tentando ser curadas. Terminamos descobrindo muitas pessoas iguais a nós que estavam fora da igreja. Começamos a pensar em chamar essas pessoas para um culto em nossa casa. Mas se fizéssemos em casa, não ia caber todo mundo. Precisávamos de uma igreja, uma igreja que aceitasse essas pessoas. Na época, eu comecei a estudar teologia inclusiva. Levamos quatro anos para aceitar essa teologia. Percebemos que Deus não queria que vivêssemos na imoralidade, casadas e adulterando. Se você me perguntar qual é a diferença da Cidade de Refúgio para uma igreja que não aceita os homossexuais, respondo que a única diferença é que aceitamos os homossexuais. Ensinamos as mesmas coisas. Crente não vai para balada, crente não bebe para encher a cara, crente não fuma, crente não usa droga, crente não pode se prostituir, crente só pode fazer sexo depois do casamento… é o que ensinamos aqui. Quando as pessoas veem um homossexual, parece que elas só conseguem enxergar duas genitálias num ato sexual. Aqui, dizemos: queremos que você viva uma vida de santidade. Mas o que é uma vida de santidade? A maioria deles vem desse contexto de promiscuidade. A vida de santidade é você conhecer alguém, namorar – não é fazer sexo, é namorar. Costumo dizer que crente não namora, crente casa, né. Então namore, mas já com planos para casar.

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Há quanto tempo você está com a Rosânia?
Nossa história já tem 11 anos. Mas juntas mesmo, estamos há cinco.

Vocês pretendem se casar oficialmente?
Sem dúvida. Você está convidada. Será dia 19 de dezembro. Casaremos no civil e no religioso. Vai ser em Mauá.

Pretendem ter filhos?
Eu estou tentando convencer a Rosânia. Ela disse que só casando. [risos]

Siga a Débora Lopes no Twitter: @deboralopes

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