​O fenômeno do futebol de amputados

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VICE Sports

​O fenômeno do futebol de amputados

Rogerinho, o novo R9 do Corinthians, brilha muito na capital brasileira dos boleiros sobre muletas.

A bola procura o craque. Vestindo a indefectível camisa 9 alvinegra, ele desfila sua habilidade pelo gramado com rara frieza. Recebe o passe na intermediária, chapela o marcador e toca por cima do goleiro para abrir o placar. No segundo tempo, vira passeio. O último gol é uma pintura. Ele tabela dentro da área e serve de bandeja ao companheiro de ataque, que só tem o trabalho de empurrar para as redes. Goleada de 4 a 1 na final. Mais um show do R9, mais uma taça para o Timão.

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Foto: Daniel Kfouri

Essa poderia ser a descrição fiel de uma partida de Ronaldo Fenômeno na época em que defendia o Corinthians, mas é apenas o resumo do que Rogério de Almeida, mais conhecido como Rogerinho ou R9, aprontou na final do Campeonato Paulista de Amputados, realizada no último sábado. Assim como o pentacampeão do mundo, o atacante, que foi artilheiro de todas as competições nacionais que disputou desde 2011, também é considerado um fenômeno em sua modalidade esportiva.

Foto: Daniel Kfouri

Rogerinho nasceu em 16 de março de 1981 sem a perna esquerda devido a uma má formação congênita. Sempre foi louco por futebol. Quando criança, participava das aulas de educação física como qualquer outro colega de escola, mas nunca pode competir. "Desde os sete anos eu jogava com os meninos da minha idade. Só que não me deixavam disputar campeonatos por causa da deficiência", conta. "Eu ia para os jogos como auxiliar do professor. Ficou essa frustração de não me sentir um competidor de verdade." Em 2001, aos 20 anos, um amigo lhe apresentou o futebol de amputados em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, e sua sorte mudou.

Seu faro de gol logo chamou a atenção de olheiros de outras cidades. Em 2008, jogou o Campeonato Brasileiro pelo time de Praia Grande. No ano seguinte, já disputava e vencia a primeira Copa América da categoria com a seleção brasileira, na Argentina, onde sagrou-se o maior goleador da competição. De lá para cá, Rogerinho se tornou muito mais que um craque. Virou militante do futebol de amputados em Mogi das Cruzes. Graças a ele, a cidade da região metropolitana de São Paulo se transformou no pólo brasileiro do esporte adaptado para quem não tem uma das pernas.

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Foto: Daniel Kfouri

Com o apoio da prefeitura e entidades sociais como o Sesi, que oferece sua estrutura para a preparação dos times, e de empresas locais, que contratam atletas deficientes por meio da Lei de Cotas e os liberam para treinos e jogos, Mogi das Cruzes é hoje a cidade com mais representantes na seleção de amputados (seis jogadores, além do técnico Renê Quintas) e a que reúne mais atletas praticantes da modalidade (32, divididos em dois times). A final do Campeonato Paulista teve duas equipes mogicruzenses como protagonistas. Além do Corinthians, o Instituto Só Vida também faz parte do projeto encabeçado por Rogerinho.

"O grande desafio é divulgar o futebol de amputados e trazer mais gente para jogar", conta o craque, que corre atrás de patrocínios e parcerias para viabilizar a modalidade. Ao contrário de jogadores famosos, o R9 de Mogi das Cruzes não vive só da bola. Há 17 anos, ele trabalha como gestor financeiro e concilia a profissão com a militância pelo esporte adaptado. Ao lado de companheiros de time, o atacante faz visitas frequentes a escolas da região para mostrar o futebol de amputados a crianças e adolescentes. "Acima de jogos e resultados, é importante conversar com as pessoas, principalmente as mais jovens, sobre a necessidade de respeitar as diferenças."

Foto: Daniel Kfouri

Juliana Jacques, esposa de Rogerinho, atua como psicóloga no projeto. A maioria dos atletas vem de outras cidades e mal consegue se equilibrar sobre as muletas no primeiro contato com a modalidade. Muitos falam em desistir. Era o caso de João Batista Santos, zagueiro do Instituto Só Vida. Agora, além do futebol, ele já acumula mais de 40 medalhas em provas de corrida e treina para uma ultramaratona. Exemplos diários de superação que fazem Rogerinho não poupar esforços para seguir em sua luta. "Já tive que tirar dinheiro do bolso várias vezes para manter o projeto. Mas cada centavo vale a pena. A gente prova que a pessoa com deficiência é capaz, que todos podem jogar futebol."

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"Não somos pobres coitados. Somos atletas"

Felipe Gonçalves, o Formiga, era um atacante raçudo da várzea no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo. Hoje, aos 25 anos, enverga a camisa 5 do Corinthians. Às vésperas do Natal de 2011, ele andava pelo bairro com três amigos quando foi atropelado na calçada. Só acordou no hospital. Os médicos já haviam amputado sua perna esquerda, que acabou prensada em uma coluna de ferro no momento do acidente. "Naquele dia pensei que o futebol tinha acabado pra mim", diz. O motorista que o atropelou fugiu sem prestar socorro e desapareceu. Felipe superou o trauma somente em 2012, ao entrar para o time dos amputados de Mogi.

Foto: Daniel Kfouri

"O futebol me ajudou a aceitar a amputação", conta. "Quando cheguei aqui, pensava que minha história era a mais triste de todas. Mas, ao conhecer melhor a vida de cada um, percebi que tenho sorte. Depois disso, virei outra pessoa." No ano passado, ele foi convocado para a seleção de amputados e ajudou o Brasil a ganhar o tricampeonato da Copa América, no México.

Na final do Campeonato Paulista, Formiga recebeu gritos de incentivo de oito amigos integrantes da Pavilhão 9, uma das organizadas do Corinthians. A presença de torcidas uniformizadas não é novidade nos jogos dos amputados. Na decisão do Estadual em 2015, um jogador foi expulso depois de subir no alambrado para comemorar o gol com a Gaviões da Fiel, principal organizada alvinegra, que compareceu em peso na arquibancada. Por ironia, boa parte da equipe é formada por são-paulinos, incluindo Rogerinho.

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Foto: Daniel Kfouri

A parceria com o Corinthians surgiu no início do ano passado. Por enquanto, o clube fornece apenas uniforme e o direito de usar sua marca. Com a projeção do time de Mogi, Rogerinho espera que mais clubes tradicionais do futebol brasileiro apoiem equipes de amputados em outros estados. No próximo dia 23 de julho, no intervalo da partida entre Corinthians e Figueirense pelo Campeonato Brasileiro, os jogadores do Timão mogicruzense serão saudados pela torcida na Arena Corinthians.

Ainda não é um jogo de exibição, mas, para os campeões de muletas, o simples fato de entrar no estádio corintiano representa uma grande conquista. "Por causa da deficiência, muita gente imagina que o futebol de amputados é uma brincadeira, um jogo sem graça. Mas a gente leva a sério. Para nós, é esporte de alto rendimento. Por isso que, quando visto a camisa para entrar em campo, esqueço que sou são-paulino. É um orgulho enorme poder contar pra todo mundo que eu jogo no Corinthians", diz Rogerinho. Já Felipe vai além para explicar que a causa dos amputados não é pela compaixão dos outros, mas sim pelo direito de competir. "Não somos pobres coitados. Somos atletas."

Um sonho paralímpico

No rosto de cada atleta, é visível o esforço para se sustentar sobre as muletas e correr atrás da bola. O futebol de amputados rema em direção contrária à própria essência do jogo, que, em tese, seria uma atividade praticada com os pés. Mas eles provam que não é preciso duas pernas para chutar, passar e driblar. Tampouco são necessárias duas mãos para executar uma defesa milagrosa. Nessa modalidade, o goleiro tem de ser um atleta amputado de um dos braços. As partidas são disputadas em campos soçaite, com sete jogadores de cada lado e dois tempos de 25 minutos. A muleta não pode tocar na bola de maneira intencional. Fora isso, as regras seguem o padrão do futebol.

Foto: Daniel Kfouri

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"Não podemos usar a muleta como arma", observa Rogerinho, com a experiência de quem já presenciou algumas tretas ao longo da carreira. Na Copa América do ano passado, por exemplo, um jogador brasileiro deu uma "flechada" (quando o atleta atira a muleta com as mãos em direção ao adversário) em um argentino depois de receber um carrinho por trás. Não que o esporte seja violento. Mas, assim como no futebol convencional, encaradas, divididas e lesões são corriqueiras em jogos de amputados. Só na final do Paulista que a reportagem acompanhou, quatro atletas tiveram de deixar o campo machucados. Ossos do ofício, dizem.

Apesar da disputa acirrada e de ser praticado em mais de 35 países, o futebol de amputados ainda não é considerado esporte paralímpico – o que dificulta muito a popularização da modalidade no Brasil. "Não recebemos apoio nem recursos do Comitê Paralímpico Brasileiro", afirma Rogerinho. "Temos de dormir em escolas quando viajamos para os campeonatos, fazer vaquinhas e alguns sacrifícios para o projeto não morrer." O Corinthians Mogi já desistiu de campeonatos por falta de dinheiro para bancar as viagens. Atual campeão brasileiro e invicto há mais de dois anos, o time precisa arrecadar fundos para disputar o Mundial de Clubes no fim do ano, em Guadalajara, no México. Sua participação no torneio ainda é uma incógnita.

Foto: Daniel Kfouri

Com seus gols dentro e fora de campo, R9 trabalha para que o futebol de amputados seja incluído nas Paralimpíadas de 2020, no Japão. Lá, um atleta brasileiro com passagem pelo projeto em Mogi já atua como embaixador da modalidade. Outra façanha que Rogerinho quer realizar é a de ser campeão mundial com a seleção brasileira, único título que ele ainda não tem, em nome de seus três filhos que o inspiram. "Nunca pensei em desistir. Vou lutar muito para alcançar esse objetivo."

Felipe compartilha do mesmo sonho e resume bem o que significa chegar lá. "A gente tem de enxergar o lado bom da vida. Não fosse a amputação, eu jamais teria a chance de vestir a camisa da seleção e jogar uma Copa do Mundo." Salve o Corinthians Mogi e o futebol de amputados, que, alheio a todas as barreiras, sempre altaneiro, é o orgulho dos desportistas com deficiência do Brasil.

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