A incansável busca pela maratona de duas horas

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A incansável busca pela maratona de duas horas

Como a ciência do esporte espera que, no futuro próximo, atletas possam atingir a Nárnia das corridas de longa distância: completar 42,2 quilômetros em menos de 120 minutos.

Foto: Geoff Burke/USA TODAY Sports

Norman Higgins não pretendia vencer a maratona de Nova York em 1971. Morador de Connecticut, a quase 300 quilômetros dali, ele viajara de carro à terra da Estátua da Liberdade na expectativa de correr apenas cinco quilômetros de uma pequena competição. Quando chegou ao local, porém, percebeu que havia confundido a data. No lugar de sua prova amadora, aconteciam os preparativos para a segunda maratona anual da cidade. Sem ter muito o que fazer, Higgins resolveu ir pra pista — por que não, afinal? "Na última volta, havia vários garotos de bicicleta ao meu redor dizendo 'ei, velho, você está na frente de todo mundo!'", lembra Higgins, que na época tinha 34 anos. "Colocaram um cordão policial depois disso." Higgins já era um corredor de elite a longas distâncias; um mês depois, a sua marca de duas horas e quinze minutos em Culver City, em Los Angeles, nos Estados Unidos, o colocou entre os dez melhores maratonistas do mundo. Contudo, ele não correu por dinheiro nem fama em Nova York. A maratona da cidade não oferecia nada disso na época. Eram apenas duas voltas pelo Central Park, e o grande prêmio era um conjunto de roupa de treino e uma réplica de 18 polegadas da Estátua da Liberdade — longe da corrida prestigiada de hoje que dá uma bolsa de 705 mil dólares (valor do ano passado). O que motivou Higgins? Durante uma entrevista no terraço do quintal de sua casa, no interior de Connecticut, ele, aos 78 anos, contou que simplesmente adorava correr. Esse era o seu grande segredo. E ele acredita que isso é fundamental para realizar o próximo grande marco nas corridas de longa distância: quebrar a barreira de duas horas em uma maratona. "A paixão pela corrida: essa é a chave para a primeira maratona em menos de duas horas", disse Higgins, que se tornou um treinador renomado após a carreira de velocista, incluindo diversos atletas de alto calibre. "O cara tem que adorar correr. Também é preciso acrescentar os demais elementos ao bolo: ciência, equipamentos, dinheiro."

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Dennis Kimetto quebrou o recorde mundial de maratonas em 2014, em Berlim.Foto: Rainer Jensen/EPA

Será possível percorrer 26,2 milhas (42,2 quilômetros) em menos de duas horas? Fazer uma milha (1,6 quilômetro) em quatro minutos e meio e então manter o ritmo 25 vezes seguidas? Em caso afirmativo, quem será o primeiro? Em que percurso? Qual será o equipamento? Toda vez que alguém quebra um novo recorde em uma grande corrida, surgem as mesmas perguntas. E essas questões se tornaram mais urgentes ainda em 2014, quando o queniano Dennis Kimetto quebrou o recorde anterior com uma margem de 26 segundos, concluindo a maratona em Berlim em 2:02:57 — a apenas 177 segundos da marca. No ano passado, às vésperas da 45a maratona da cidade de Nova York, o debate voltou a esquentar com o lançamento do livro Two Hours: The Quest to Run the Impossible Marathon (Duas Horas: Em Busca da Maratona Impossível, em tradução livre, sem edição em português). O autor, Ed Caesar, não é o primeiro a explorar as medidas necessárias para quebrar a barreira das duas horas, nem o primeiro a ir à África Oriental para investigar o que impulsiona os grande maratonistas de hoje. A força da obra está na combinação de uma pesquisa extensa com uma narrativa humana e emotiva, construída em um ritmo acelerado. Conforme o próprio Caesar descreve, "o sonho da maratona de duas horas nasceu em forma de ressaca". Na manhã seguinte a uma noite de bebedeira em 1977, o velocista universitário Mike Joyner perdeu para um atleta que, por acaso, era fisiologista do exercício. A conversa subsequente entre eles deixou Joyner curioso quanto às medidas necessárias para vencer as duas horas.

O próprio Joyner acabou se tornando fisiologista e, em 1991, publicou um artigo na revista acadêmica Journal of Applied Physiology, declarando que o melhor tempo possível para completar uma maratona seria de uma hora, 57 minutos e 58 minutos, tendo em vista alguém com máxima capacidade pulmonar, máxima economia de movimentos e máximo limiar anaeróbico. "É o documento seminal do debate sobre a maratona de duas horas", segundo Caesar. "Foi o estopim para uma discussão acirrada na comunidade científica e desportista, ainda vigente." Caesar chama a maratona em menos de duas horas de "a Nárnia das corridas de longa distância". Ainda assim, em entrevistas com Joyner e outros fisiologistas, Caesar apresenta fortes evidências de que a ideia não é mera fantasia. Estamos falando de ofertas de grandes prêmios a métodos refinados de treinamento e corrida, como quando pesquisadores descobriram que um maratonista de duas horas poderia economizar 100 segundos ficando atrás de andarilhos durante o percurso. Esses avanços permitiram que o recorde baixasse quase uma hora desde as Olimpíadas de 1896 e colocaram a perspectiva de que maratonistas de elite possam correr uma maratona em menos de duas horas em 2022 ou 2035, dependendo de onde você prefere começar a sua linha de tendências, nos anos sessenta ou nos anos oitenta.

O percurso de Nova York não parece ideal para a maratona de duas horas. Foto: Gregory Fisher/USA TODAY Sports

A maratona da cidade de Nova York é um microcosmo de tendências que, segundo Caesar, por fim baterá a marca das duas horas. Ele destaca como, em 1976, Nova York se tornou a primeira grande maratona a atrair velocistas com cachês como forma de intensificar a competição; também foi a primeira a oferecer uma bolsa-bônus de um milhão de dólares para quem quebrar a marca de duas horas. Desde 1971, quando Higgins venceu em duas horas e 22 minutos, o recorde do percurso decaiu em mais de um quarto de hora, baixou para 2:05:06, marca do queniano Kenyan Geoffrey Mutai em 2011. No mesmo ano, Mutai obliterou o recorde da maratona de Boston com uma diferença de quase três minutos, em 2:03:03. (Na época, foi a maior velocidade em uma corrida de 26,2 milhas, mas não contou como recorde mundial porque o percurso de Boston não segue os padrões da Assocação Internacional de Federações de Atletismo.) Para descobrir o segredo de Mutai, Caesar o procurou em sua terra-natal, nas alturas do Vale do Rift, no Quênia, região que propele grandes velocistas no mesmo ritmo em que Vale do Silício lança startups de tecnologia. "Mutai adorava a sensação da coisa toda, de correr sozinho", escreveu Caesar (grifo dele). "Ele disse que tinha algo 'no sangue' que o fazia correr." Mutai chama isso de "o Espírito". Ele adora correr. Com foco em Mutai, Caesar defende que a etnia Kalenjin, do Vale do Rift, apresenta a melhor combinação natural — pulmões maiores para lidar com a altitude elevada, por exemplo — e cultural — "pés superfortes" graças a infâncias descalças — para trazer à tona o primeiro velocista a correr uma maratona em menos de duas horas. Essa convicção soa descabida para Higgins, que observa que o epicentro das corridas de longa distância variou nas últimas décadas entre os Estados Unidos, Europa, Austrália e Etiópia, e apenas recentemente é que se estabeleceu no Quênia. Para ele, a região de origem de um velocista é menos importante do que as circunstâncias que o circundam ao longo da vida. É como a pergunta retórica que o grande velocista Haile Gebrselassie direcionou a Caesar: "Você acha que pode virar um excelente velocista vindo de uma boa família?" Gebrselassie acredita "que um déficit de oportunidades e a ciência da dor desde a juventude não reprimiram seu talento, mas o fertilizaram". Mutai enfrentou a pobreza, fome, abuso dos pais e trabalho duro. Higgins brinca e credita parte de sua tolerância à dor aos seus dentes perfurados sem procaína na juventude. Mutai, que ainda estava se recuperando da marca decepcionante de 2:09:29 na maratona de Berlim, realizada em setembro do ano passado, não correu em Nova York. E mesmo se corresse, era improvável que fosse ele o recordista ou que a marca fosse atingida em Nova York. Com 34 anos, Mutai já passara da idade que as novas pesquisas indicam ser o auge do maratonista. Durante muito tempo, acreditaram que o pico culminava entre os vinte e tantos e trinta e pouquinhos; no entanto, um estudo de 2011, da universidade francesa Aix-Marseille, fixou a idade ideal "em torno dos 25 anos ou menos". Quanto a Nova York, o solo é irregular, sinuoso, venta bastante, e por isso o percurso costuma ser mais devagar do que locais mais planos e retilíneos, como Berlim, onde os últimos seis recordes masculinos foram atingidos, inclusive o de Kimetto. Apesar da incumbência de aproximar a maratona de menos de duas horas da realidade, é improvável que a maratona da cidade de Nova York e Mutai façam parte do marco quando e se acontecer. Two Hours apresenta uma defesa convincente da possibilidade — entre atletas de elite que se juntarão um dia em um percurso plano e retilíneo, em um dia frio, em torno dos quatro graus centígrados, sem vento, e que trabalharão para transformar a Nárnia das corridas de longa distância em realidade. "Em vez de ser uma corrida para vencer", Higgins me contou, "será uma corrida para bater as duas horas".