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A Irlanda Tem um Problema Sério Com a Heroína

Durante anos, o uso de heroína na Irlanda esteve confinado a Dublin. Esse não é mais o caso; o uso da droga se espalhou pelo país e agora chega a diversas cidades menores.

Dublin (Foto por Paul Roban).

No começo dos anos 1980, um cara chamado Tony “King Scum” Felloni começou a importar grandes quantidades de heroína para a República da Irlanda. A droga se infiltrou rapidamente na vida diária dos bairros da classe trabalhadora de Dublin e, graças à sua natureza relativamente viciante, ela continua muitíssimo popular. Dê uma volta por certas ruas de Dublin e você terá uma boa ideia do predomínio da droga na capital.

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Infelizmente, os planos do governo para tratar do vício em heroína hoje parecem ser os mesmo dos anos 1980: quase inexistentes. Na época, o governo prestou pouca atenção ao problema e – apesar da implementação de leis de redução de danos em outros países da Europa – as atitudes da Irlanda continuam na década do fax e do Billy Idol.

De acordo com um relatório de 2012 do Centro de Monitoramento Europeu para Drogas e Vício, a Irlanda tem o maior número de usuários de heroína – juntamente com Letônia, Luxemburgo e Malta – de toda a Europa. O CMEDV calcula que de cada mil pessoas, sete são viciadas na droga, o que pode ser traduzido em mais ou menos 30 mil cidadãos irlandeses. Mais preocupante ainda, a Irlanda também tem a terceira maior taxa de morte por uso de drogas na Europa, atrás somente da Noruega e Estônia. A média da União Europeia é de 21 mortes por milhão de pessoas; na Irlanda, esse número é de 68 por milhão.

No entanto, as estatísticas não contam toda a história. Durante anos, o uso de heroína na Irlanda esteve confinado a Dublin. Esse não é mais o caso; o uso da droga se espalhou pelo país e hoje chega a diversas cidades menores. Infelizmente, mesmo que o vício tenha um alcance muito maior agora, o tratamento continua predominantemente confinado à capital.

Falei com o Dr. Cathal Ó Suilliobháin, um especialista em tratamento de vício do Serviço Executivo de Saúde da Irlanda, sobre o problema. Ele me disse que, em algumas partes do país, não existe qualquer tipo de tratamento. “Na região central há um número muito limitado de clínicas e nenhum médico na clínica geral capacitado para iniciar o tratamento”, ele disse. “A oeste do Rio Shannon não há nenhuma clínica, o que inclui o condado de Donegal – nem mesmo uma.”

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Foto via.

A falta de serviços para lidar com o crescente problema da heroína fora de Dublin precisa ser abordado. O fato de haver apenas seis locais de troca de agulhas fora da capital (muitos operando apenas algumas horas por dia, um dia por semana) significa que os usuários acabam compartilhando as agulhas e – diferentemente da atitude do governo – o HIV e a hepatite não ficaram nos anos 1980. Isso tem consequências potencialmente desastrosas em comunidades rurais, que já foram afetadas pela crise da emigração; como Cathal me disse: “Estamos sentados numa bomba-relógio e eu me preocupo que possamos ver algo como uma miniepidemia de HIV começando em uma dessas áreas”.

Com pouco ou nenhum serviço fora de Dublin, é possível pensar que a concentração de tratamento na capital deixaria a cidade bem equipada para ajudar os viciados. Mas, novamente, parece não ter havido muito progresso nas últimas décadas. Pouco mais de 9.200 irlandeses fazem tratamento com metadona, a maioria deles em Dublin, e esse é o único tratamento disponível. Se vários outros – como implantes antiopiáceos e buprenorfina – estão disponíveis em diversos países da Europa moderna, então, por que a Irlanda não adotou nenhum deles?

Porque na Irlanda o vício não é visto como deveria. Em vez de tratá-lo como uma questão médica, os viciados são vistos pela maioria como criminosos em quem não se pode confiar, quanto mais tomar decisões por si próprios. O estado sabe o que é melhor para os viciados, e o que é melhor é a metadona. Quem não confia no julgamento do estado pode ir se foder e encontrar seu próprio tratamento – ou seja, voltar a usar.

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Dr. Garrett McGovern.

Conversei com o Dr. Garrett McGovern, um clínico geral especialista em tratamento de vício, que se declarou publicamente a favor da lei de descriminalização da cannabis proposta recentemente na Irlanda. Infelizmente, a proposta acabou sendo derrubada pelo governo no começo do mês.

Garrett explicou sua opinião sobre a situação: “Não temos nenhum controle sobre quem está usando heroína. Os números tendem a ser encolhidos um pouco, e eles se resumem às pessoas em tratamento. Mas nem todo viciado em opiáceos deve ou quer usar metadona, e nós esquecemos dessas pessoas. Não fornecemos nenhum serviço a elas. Você vem se tratar e nós te damos metadona. Se você não quiser metadona, então vamos dizer que não podemos te ajudar”.

Também conversei com “Zoe”, uma usuária de heroína, que vem usando a droga – com seu namorado – nos últimos dez anos. Ela vem tomando metadona juntamente com a droga nos últimos sete anos e me contou suas experiências com o serviço de tratamento oferecido. “Vemos nosso médico uma vez a cada duas semanas”, ela explicou. “Fazemos um teste de urina e recebemos nossa receita de metadona. É só isso.”

Muitos usuários complementam a metadona com heroína, o que – claro – significa que eles não passam no teste de urina exigido para conseguir uma nova receita semanal. Quando não passam no teste, eles precisam ir até o centro de tratamento todo dia para tomar sua dose sob supervisão. O problema é que nem todo mundo consegue visitar o centro todos os dias. “Se um viciado em heroína perde sua dose de metadona, ele entra em pânico”, disse Zoe. “A escolha que você tem é passar por uma noite de síndrome de abstinência ou usar mais heroína. Nessa situação, a gente sempre usa mais heroína.”

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Ela continuou: “Expliquei isso para o meu médico e ele disse que, se não conseguia ir até o centro na hora, eu devia trabalhar menos horas. Eu disse a ele que meu chefe não me daria essa opção, então, ele sugeriu que eu largasse o emprego. Meu emprego é a única coisa que me mantém na linha, mas meu médico sugeriu que eu largasse o trabalho e vivesse de seguro desemprego para poder ir ao centro de tratamento todos os dias. Isso me pareceu uma ideia muito ruim, então, fico feliz por não ter aceitado o conselho dele.”

Pensar que um médico pode encorajar alguém a largar o emprego só para poder tomar sua dose diária de metadona é inacreditável. Claro, nem todo médico irlandês faria isso – mas isso indica que há um problema sistemático na provisão de tratamento de redução de danos no país. Isso se você conseguir ter acesso a ele. E só para acrescentar um pouco mais de desespero à situação, o orçamento para o tratamento de viciados em opiáceos vem sofrendo diversos cortes no país.

Assim, o que pode ser feito? Não vejo a Irlanda contemplando a descriminalização tão cedo.

Como o Dr. McGovern me disse: “Vamos ser bem claros quanto à legalização das drogas: legalizar a cannabis é algo que devia ser feito sem pensar. Em termos de heroína, as pessoas só podem estar dormindo neste país. Elas não percebem que, na Suíça, por exemplo, há 23 clínicas especializadas. Na Inglaterra, eles têm feito experiências com prescrição de heroína. Holanda e Austrália já prescrevem heroína, fornecendo drogas seguras aos usuários que não se adaptam aos métodos convencionais, o que tem se mostrado muito efetivo”.

A recente lei de descriminalização da cannabis poderia ter sido um passo importante na reavaliação das políticas irlandesas com relação às drogas, mas isso foi descartado pelo parlamento como uma piada, e os defensores da lei foram rotulados como malucos pelo governo. Essa atitude também vale para vários meios de comunicação irlandeses, que adotam a lógica simplista de que todos que têm um problema com drogas são criminosos, não pessoas com problemas de dependência que se voltaram para o crime para sustentar o vício.

A solução para o que eles percebem como perigo é óbvia: trate o vício, diminua o crime. Infelizmente, eles preferem manter os olhos fechados. Até que o governo se decida por uma legislação construtiva, a Irlanda está destinada a ficar no topo das pesquisas sobre uso de drogas na Europa.

Siga o David no Twitter: @davidfleming68