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Música

A noite de rap da penitenciária da Ilha Rikers, em Nova York

Visando diminuir a violência dentro das grades e a reincidência, a ‘Beats, Rhymes, & Justice’ é uma oficina semanal que ensina jovens detentos a escrever letras e fazer batidas.
​Adolescentes, que não puderam ter os seus nomes divulgados, numa aula de rap na Ilha Rikers. Todas as fotos por Jason Bergman.

Nossas cadeiras estão arrumadas num círculo ao redor de um notebook ligado a alto-falantes. A música tocando é "Dear Mama" do Tupac — uma carta de amor do falecido rapper para sua mãe, se desculpando pelas celas de cadeia onde ela teve que visitá-lo. Todo mundo está sentado em silêncio, lendo a letra enquanto a música toca.

Um dos primeiros versos ressoa forte nas pessoas aqui: "When I was young, me and my mama had beef / 17 years old, kicked out on the streets".

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"Entendo ele…", diz um adolescente no microfone, rapidamente enxugando as lágrimas quando a música termina. "Fui expulso de casa quando tinha 17 anos, e minha mãe não queria nada comigo. Meu pai, nem falo com ele."

O microfone passa pela roda, para os outros membros do círculo — todos vestindo macacões marrons, meias brancas e tênis de velcro — que comentam a música de 1995. Alguns não falam muito, outros se abrem. O microfone acaba voltando para outro adolescente que se recusou a falar na primeira rodada.

"Minha mãe é a mulher mais forte que conheço", ele diz. "Ela fez tudo por mim, e fez tudo sozinha." Ele pausa, abaixando o microfone, balançando a cabeça e continuando com uma risada curta, "E agora estou preso".

O oficial Nishaun McCall conversa com os detentos na aula de beats. Todas as fotos por Jason Bergman.

É noite de sexta-feira na Ilha Rikers, e cerca de 15 adolescentes do Complexo Robert N. Davoren (RNDC), uma instalação para detentos do sexo masculino, estão na sala de aula. Livros de matemática e ciência estão enfileirados nas paredes, junto com retratos de famosos líderes afro-americanos, incluindo Martin Luther King Jr. e Herriet Tubman.

A aula de rap de duas horas acabou de começar.

Em janeiro de 2015, o Departamento de Correção (DOC) da Cidade de Nova York decidiu proibir confinamento na solitária para detentos da Rikers menores de 21 anos. (Essa proibição já estava em vigor para detentos de 16 e 17 anos.) A decisão, aprovada por unanimidade pelo Conselho de Correção, veio na esteira das manchetes horríveis sobre a famigerada instituição. Mas a história trágica de Kalief Browder, que ficou confinado três anos na ilha sem julgamento — assim como outros casos de espancamento, corrupção e violência de gangues — continuam a assombrar o enorme complexo penitenciário.

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Finalmente, parece que a cidade, comandada pelo prefeito Bill de Blasio e o Comissário de Correção Joseph Ponto, quer fazer algo a respeito disso.

Pedidos de fechamento da instituição têm ganhado impulso, mas ano passado, oficiais penitenciários divulgaram uma "agenda antiviolência" de 14 pontos, que incluía algo chamado programa de redução da ociosidade. A ideia é fornecer oportunidades educacionais para os detentos de todas as idades, para que em vez de se envolverem com gangues e violência atrás das grades, eles se ocupem trabalhando para reentrar na sociedade de maneira saudável. É uma abordagem mais "mão na massa" para reduzia a reincidência — um remédio que oficiais e ativistas buscaram em Nova York, EUA e no exterior.

A cidade vai investir milhões nesses programas nos próximos anos, oferecendo um teste real para ver quanto tempo a velha guarda da Rikers consegue resistir à mudança. As aulas variam de atuação e meditação à formação profissional e testes vocacionais.

"Batidas, Rimas e Justiça", uma oficina semanal que ensina jovens detentos como escrever letras e fazer batidas, é uma delas.

Ryan Burvick, dono da Audio Pictures.

Desde março passado, Cameron Rasmussen, Ryan Burvick e Darnell Hannon, junto com outros coordenadores, já cruzaram a ponte para Rickers algumas dezenas de vezes. O programa acabou de terminar seu quinto ciclo — o que quer dizer que cinco grupos de detentos de diferentes alojamentos alcançaram o objetivo da aula: escrever e gravar uma música depois de cinco semanas.

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Depois do ciclo, os adolescentes recebem um certificado para mostrar aos oficias de condicional, e a música é tocada para os parentes dos detentos/produtores num evento familiar. Se e quando forem soltos, eles também são convidados para aulas na Carnegie Hall, onde a Universidade Columbia tem um programa para que eles continuem trabalhando em faixas.

Antes de começarmos, o oficial Nishaun McCall, nosso guia, pergunta aos jovens o que eles querem fazer quando saírem. Um detento diz que quer escrever um livro — "sobre minha vida na cadeia… quero terminar antes de cumprir toda minha sentença". Outro detento começa a responder: "Espero que se eu sair…"

McCall o corrige rapidamente: "Quando você sair."

"É um programa, mas também é um projeto", Rasmussen me explica. "Há anos investimos em prisões e cadeias, mas não investimos nas comunidades. Para o paradigma mudar, precisamos lidar com essa questão dos dois lados — antes deles entrarem e quando sairem."

Rasmussen trabalha como diretor do programa do Centro de Justiça da Universidade Columbia, que também está no comando da "Social Enterprise Startup", uma aula de negócios e brainstorm para os detentos. Quando o programa começou, ele abordou Burwick e Hannon, fundadores da Audio Pictures, um grupo de produção que fica no Queens. Eles são os responsáveis pelo material: iPads, teclados, fones e equipamento de estúdio.

Toda sessão começa com uma música. A faixa é tocada e a letra é discutida em círculo. Desta vez é "Dear Mama" do Tupac, mas uma das favoritas da classe foi "Real Friends" do Kanye. "One Love" do álbum Illmatic de 1994 do Nas, também fez sucesso — a música é basicamente uma carta para um amigo cumprindo pena.

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Depois que a faixa toca, a conversa começa com perguntas enfatizando o aperfeiçoamento, como "Quem inspira vocês?" No final da nossa sessão, os detentos estão atentos e envolvidos.

As coisas começam para valer quando a classe se divide em dois grupos: os responsáveis pela letra e os responsáveis pela batida. Na outra sala de aula, iPads com software de mixagem e cabos permitem que várias pessoas escutem a batida ao mesmo tempo. Um detento me deixa ouvir a dele, com uma faixa intensa de bateria e um som frenético parecido com de videogame — uma versão trap de Sonic the Hedgehog. Ele chama isso de "Heat".

Linda Eaddy, diretora das parcerias na Rikers, assiste enquanto os detentos balançam a cabeça ao som de diferentes loops e mostram suas criações. Ela elogia o comissário Ponte por enviar trabalhadores da Rikers para outros centros de detenção do país para estudar programas similares. "Estou aqui há 28 anos", ela me conta, "e eu nunca poderia imaginar algo assim".

Na sala da letra, vários detentos com dicionários de rimas esboçam versos sobre fumar maconha, sair com os amigos e lidar com drama — coisas clássicas de adolescente. Eles quase nem mencionam a Rikers. São apenas garotos sendo garotos.

A coisa toda parece muito uma sala de aula numa escola comum: tem os palhaços da turma, os tímidos, as piadas internas — aquela sensação comunal que só pode ser alcançada na juventude. Quando os detentos apresentam seu trabalho no final, eles zoam e aplaudem uns aos outros. E quando a aula acaba, todo mundo parece estar com a autoestima no alto.

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"Quando estamos aqui, não estamos na cadeia — estamos num estúdio", explica Burwick. "E tentamos viver esse momento."

Sair de Rikers, mesmo que mentalmente, não é tarefa fácil. Antes de entrarmos, tivemos que deixar nossos celulares na portaria e nossas mochilas foram cuidadosamente revistadas. Passamos por detentos ao entrar, e os carcereiros aparecem pontualmente às 20 horas para levar os garotos de volta às celas. "Toda vez que vejo os detentos fazerem fila", diz Burwick, "lembro de onde estou".

Não tivemos permissão de citar o nome de nenhum detento, nem perguntar qual era o crime deles. E estávamos atrasados quando chegamos: um bloqueio em outro bloco da Rikers colocou o lugar todo em alerta — uma ocorrência frequente.

Cameron Rasmussen.

Rasmussen diz que estar na classe é o que mais importa; fazer os detentos se sentirem humanos. Por outro lado, quando há tensão na cadeia, isso é palpável. Hannon me conta que já encontrou um ex-aluno preso aqui — ele não o via há dois anos, desde quando o garoto estava na nona série.

Ouvir rap e criar música estando na Rikers é algo muito simples e humano, algo que não tem preço. É uma oportunidade para esses garotos escaparem do medo e da alienação, pelo menos por duas horas por semana.

"Você é a liberdade que eles veem", me diz Rasmussen. "É uma semente."

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Tradução: Marina Schnoor

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