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A nova prisão de Rafael Braga é o reflexo de um sistema de punição seletivo

O ex-catador de lixo da Lapa foi o único condenado das Jornadas de Junho de 2013 e agora enfrenta uma nova prisão por -supostamente- traficar drogas.

Rafael Braga Viera. Foto retirada da primeira entrevista concedida à VICE em Bangu. Crédito: Matias Maxx

"Foi flagrante forjado… de novo", foi tudo que Rafael Braga (sim, o único condenado pelas Jornadas de Junho) conseguiu falar antes de desabar em lágrimas para uma advogada do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, na manhã de ontem, 13 de janeiro, na carceragem do TJ no Rio de Janeiro. O ex-catador de lixo da Lapa foi preso injustamente no dia 20 de junho de 2013 por porte de material explosivo que, na verdade, eram produtos de limpeza. Após muita mobilização popular e representação dos advogados do DDH, ele finalmente conseguiu a progressão de pena para prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica. Diferentemente da maioria dos jovens negros e periféricos que saem das prisões todos os dias, Rafael saiu de lá com uma garantia de emprego no escritório de advocacia João Tancredo (o presidente do DDH), no qual recebe R$ 1.330 mensais. Tudo parecia encaminhado para Rafael recomeçar a vida apesar dos injustos anos de cárcere.

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Só que não. Na manhã da terça-feira, dia 12 de janeiro, Rafael saía da casa onde mora com sua mãe, na Vila da Penha, para comprar pão. No caminho da padaria, uma vizinha o avistou e brincou com ele: ela viria a testemunhar o início de mais um capítulo triste na vida de Rafael. Sua tornozeleira de monitoramento (mais ou menos do tamanho de um celular de última geração) chamou a atenção de PMs da UPP da Vila da Penha que lhe pediram documentos e o revistaram. Ele não trazia nada nas mãos, apenas o dinheiro do pão. Segundo seu depoimento, os policiais então levaram Rafael para um quintal, onde começou uma sessão de tortura física e psicológica. Os canas queriam que ele "desse a boca". A dona da casa do quintal apareceu na janela, mas foi obrigada a voltar para dentro sob a mira de um fuzil. A vizinha de Rafael que havia testemunhado a abordagem correu para alertar a sua mãe, porém, quando elas chegaram ao local trazendo seus documentos, ele já havia sido levado para a base da UPP, onde prosseguiu a tortura, sobretudo psicológica (os canas sabem que machucados podem aparecer no laudo médico feito nos prisioneiros). Na viatura, policiais apresentaram uma sacola com pequena quantidade de maconha, cocaína e um rojão. Eles abriram um dos pinos de pó e ofereceram a Rafael, que recusou, dizendo que respeita a polícia e jamais consumiria drogas na sua frente. Não foi a resposta que os canas queriam, e ele apanhou mais: teve arma apontada para a cabeça, obrigaram-no a enviar pelo rádio uma mensagem para seus supostos cúmplices, dizendo que tinha rodado, que tinha perdido. Também chegou a ser ameaçado de estupro: "Vamos te comer" e "Vamos pôr essa droga em cima de você", repetiam os agentes da lei.

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Mediante as negativas de Rafael em fornecer informações que ele não tinha, o detido foi conduzido à delegacia, onde as drogas e o rojão (0,6 g de maconha e 9,3 g de cocaína) foram atribuídos a ele. Ainda que o artigo 33 da lei de drogas deixe bem claro que tem de existir alguma troca (ainda que gratuitamente) para ocorrer o crime de tráfico, para o entendimento do TJ variedade de drogas (no caso, cocaína e maconha) já denotam o tráfico. O delegado ainda enquadrou Rafael no artigo 35, de associação ao tráfico, sob a justificativa de que "uma pessoa que trafica numa comunidade dominada por uma facção criminosa não trafica sozinho, senão ela morre". A testemunha tentou ir à delegacia dar seu depoimento, mas não foi ouvida. De bermuda, tornozeleira, chinelo e sem camisa, Rafael passou a noite na carceragem da delegacia e foi levado para o fórum na manhã seguinte. A audiência de custódia estava marcada para as 11h, embora o juiz só tenha chegado às 17h, e a audiência rolou lá pelas 18h. Durante todo esse tempo, Rafael permaneceu algemado e em jejum, uma vez que a carceragem do TJ não provê alimentação. Os advogados tentaram, porém não foram autorizados a levar comida para ele.

As audiências de custódia são algo muito novo. Elas foram implementadas no Rio de Janeiro em outubro do ano passado, numa sessão escolhida a dedo, com a presença do ministro Lewandoski, do STF. Na ocasião, um jovem que praticou um furto pequeno teve a liberdade provisória concedida. Em entrevista ao G1, o ministro disse: "Dos nossos presos, 40% são provisórios que nunca viram o juiz – ou seja, 240 mil pessoas que passam meses (em média, seis meses presos), e lá sofrem todo tipo de maus-tratos, às vezes violência sexual, e são aliciados pelo crime organizado. Esses são os males que vamos combater agora". A intenção da audiência de custódia, portanto, é boa: desentulhar as prisões de gente que não deveria estar lá, dando-lhes a chance de responder por seus crimes em liberdade, embora, na prática, isso seja muito diferente. "Ele certamente não vai ouvir a testemunha e provavelmente vai dar muito pouco tempo para a defesa", contou-me uma funcionária do fórum. Quando questionei qual costuma ser o resultado dessas audiências, ela me responde: "Olha, para crime de furto, eles costumam relaxar na maioria das vezes. Agora, tráfico não; tráfico, eu nunca vi relaxarem."

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Uma vez acusado de traficante, você é marcado para sempre como uma ameaça à sociedade, o pior tipo de sujeito do mundo. É muito curioso o comércio de substâncias milenares ser entendido como algo pior do que um crime patrimonial ou, muitas vezes, contra a vida (quanto homicida rico tem por aí respondendo em liberdade? Tipo aquele boyzão com nome de super-herói da Marvel); ainda assim, eu não vim aqui dissertar sobre a guerra às drogas, eu vim contar a história do Rafael Braga Vieira. A primeira vez que eu estive com ele foi bem desconfortável.Entrevistei-o em Bangu acompanhado de dois agentes penitenciários e uma assessora de imprensa.

Não consegui tirar muitas informações, mas, interpretando o que ele falou, sua linguagem corporal e outros dados apurados, bolei na minha cabeça a hipótese de que os canas que plantaram o rojão nele em 2013 já o conheciam (ele tinha passagem por roubo naquela região); além disso, como todo cana sabe que ninguém fica preso muito tempo por roubo (vide o que a funcionária do fórum me falou sobre as audiências de custódia), eles aproveitaram o caos do dia 20 de junho pra plantar o rojão nele e despachá-lo pra Bangu de uma vez. É uma hipótese minha que nunca pude confirmar.

A segunda vez que estive com o Rafael foi na sala de audiência de custódia. Ele estava com as algemas bem apertadas, mal conseguia gesticular enquanto falava. Arrumaram uma camiseta pra ele, seus olhos estavam vermelhos de choro e a tornozeleira ali à mostra. Dos poucos jornalistas presentes no fórum naquele dia, eu fui o único autorizado a acompanhar a sessão (aparentemente, o TJ não te considera jornalista se você não trabalhar para algum "veículo grande") e fui o primeiro a entrar na sala. Perguntei educadamente ao juiz se podia tirar uma foto, ele respondeu que não, pois não queria expor sua imagem. Eu devia ter falado – educadamente, é claro – que meu interesse não era registrar o seu terno caro e seus óculos modernosos, e sim o réu; no entanto, para não atrapalhar a sessão, resolvi ficar calado. À medida que os advogados iam entrando, os olhos de Rafael se enchiam de lágrimas. Durante mais ou menos uma hora e vinte (tempo que durou a sessão), um PM ficava do lado do Rafael e outro, na porta, ambos constantemente com a mão na pistola.

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O juiz começou a sessão explicando o que era a audiência de custódia, uma inovação em que o preso tem de ser apresentado a um juiz em 24 horas para "aferir sua integridade física" e avaliar a "necessidade de manter a prisão preventiva ou não". Ele afirmou, no entanto, que o objetivo não é contestar o que já foi decidido pelo juiz de plantão. Em seguida, fez um breve interrogatório com o preso: sabendo que o laudo médico não havia apontado sinais de tortura, ele insistia em perguntar sobre a agressão, queria saber se ele tinha "apanhado muito". Mais tarde, a defesa alegaria que a maior parte da tortura foi de ordem psicológica, a qual o laudo pericial não tem como constatar. Ele perguntou por que os policiais o haviam abordado. Rafael respondeu que foi por conta da tornozeleira, que ela lhes chamou atenção. O juiz, em seguida, perguntou por que eles teriam agido daquela maneira. "Foi pra tirar onda, me esculachar mesmo", frisou Rafael.

Em seguida, após o interrogatório, foi a vez de o Ministério Público falar. Um gordinho rosado, daqueles tão loiros que você mal consegue ver a sobrancelha, foi sucinto e ralo: ele declarou que não havia sinais de tortura, que o flagrante foi legal e que Rafael tem de ser preso pela "necessidade de garantia da ordem pública". Eu fico pensando como um sujeito desses consegue dormir todas as noites – só pode ser com o auxílio de drogas pesadas, aquelas de tarja preta. Finalmente deu-se a sustentação oral da defesa, conduzida impecavelmente pelo Dr. Carlos Eduardo Martins. Talvez por ser um "preso famoso", ou talvez pela imprensa estar presente, o juiz até deixou a defesa falar mais do que o normal. Só que não teve jeito: ele não ouviu a testemunha que dizia que Rafael não carregava nada na hora da abordagem e ignorou o fato de ele estar trabalhando e ter boa conduta. Não teve jeito, não houve relaxamento da prisão. Os advogados se despediram de Rafael, deixando claro que ele não estava sozinho e que brigariam por ele. De volta ao corredor do fórum, não foi necessário abrir a boca: nossa cara emburrada e as lágrimas nos olhos já transmitiam o veredito aos vários militantes da campanha "Liberdade para Rafael Braga" que aguardavam do lado de fora.

Conversei com o Dr. Carlos sobre o julgamento. "A nossa representação foi apresentar uma defesa em três vias: a primeira, de que ele sofreu tortura psicológica; que ele ficou sem comer; teve ameaça de estupro, ameaça contra a vida, foi constrangido e teve as drogas apresentadas a posteriori, o que inviabilizava o fragrante. Apresentamos isso para dizer que o flagrante era materialmente viciado, mas, ainda assim, a prisão foi considerada regular e não foi relaxada nesse ponto. Nós também rebatemos a argumentação do MP de que ele seria um 'perigo para a sociedade'; na verdade, esse argumento de manutenção da prisão com base na ordem pública é um argumento abstrato diante até do entendimento do STF. Do próprio [ex-ministro] Joaquim Barbosa, que, no HC 94509 do Rio Grande do Sul, refuta esses argumentos, dizendo que a prisão para garantia da ordem pública não deve subsistir. Também apresentamos argumentamos contra a possibilidade de ele fugir, pois ele tem endereço fixo, emprego e está monitorado por tornozeleira eletrônica, mas, mesmo assim, o juiz insensivelmente reforçou essa periculosidade. O que é um conceito abstrato, ninguém tem um perigômetro para medir a periculosidade de alguém." Lamentável. Mas… e daqui pra frente, doutor? "Vamos aguardar a distribuição do processo e entrar com pedido de liberdade e habeas corpus no Rio e em Brasília; assim como no outro processo, vamos até a última medida. Tudo que for possível vamos fazer em defesa de Rafael, que está vivendo uma situação complicada, de flagrante forjado duplamente. Isso precisa ser revisto urgentemente pelo poder judiciário, que tem se mostrado muito insensível ao caso."

Indo embora, já no elevador, uma funcionária do fórum me confirmou o que eu já sabia: ela vê histórias como a do Rafael todos os dias. Mediante essa triste experiência, concluí que, no Rio de Janeiro, um cana pode facilmente arruinar a vida de alguém através da lei de drogas – desde que essa pessoa seja preta, pobre e fudida, claro. Por mais absurda e desconexa que seja a história plantada pela polícia, delegados, promotores e juízes vão comprá-la sem questionamento. No julgamento do Rafael, o promotor não se deu nem ao trabalho de fundamentar a acusação, falando que Rafael era uma ameaça à ordem pública – e pronto. O juiz, com seus óculos de armação de ferro modernosos, ignorou a testemunha e toda a argumentação da defesa, mantendo a prisão. Ah, os juízes… esses profissionais com anos de estudo e experiência que não raramente curtem posar de ser superior aos demais, cedendo aos caprichos de um soldadinho qualquer. Seria má vontade? Racismo? Incompetência? Medo de perder sua fama de mau? Ou uma orientação política de "não dar arrego para traficante"? Infelizmente, eu acredito que a resposta seria "todas as alternativas acima".

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