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Salvando o Sudão do Sul

A Terra Sagrada

De barco, numa viagem de 11 horas pelos rios do Sudão do Sul.

Um curandeiro nuer. Misticismo, profecia e crenças tradicionais estão arraigadas na cultura dessa etnia. Machar integrou as forças de profetas tribais, da mídia e da diplomacia ao longo de sua carreira. Foto por Tim Freccia 

:A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Depois de passar dias conversando com Machar - vice-presidente do recém-criado Sudão do Sul deposto pelo presidente Salva Kiir sob acusação de conspiração -, descobrimos que o Exército Branco estava indo rumo ao norte para organizar um ataque a Malakal. Então precisamos chegar até lá – primeiro de barco até Nasir, depois de carro até nosso destino.

Ao abrirmos caminho por Akobo, um curandeiro se aproxima para apresentar uma musiquinha e dançar para nós. Ele pavoneia como uma galinha, finge cuspir em Kiir e insiste que os nuer vencerão. Espectadores curiosos riem e o apoiam. Ele talvez faça mais sentido do que qualquer outra pessoa que conhecemos em nossa viagem até agora. Akobo é considerada terra sagrada pelos nuer, e o profeta atual, o homem que controla o Exército Branco, mora a cerca de 16 quilômetros de distância e se encontra com Machar regularmente.

O barqueiro que contratamos para nos levar até Nasir vem ao nosso encontro. Ele usa uma camisa rosa e tem brilho nas unhas. Ao falarmos sobre a viagem que nos aguarda, ele nos diz que além do combustível precisa de óleo e vela de ignição – isso sem contar a taxa. Ele quer US$ 200. Negocio e o convenço a aceitar metade disso, mais ou menos o salário de um mês para o que deveria ser uma viagem de cinco horas. Ele nos diz onde encontrar combustível.

O vendedor está convenientemente localizado atrás do campo da ONU, vendendo comida e combustível que uma pessoa mais cínica poderia pensar que ele saqueou do complexo. Compramos seis galões de gasolina por US$ 100 cada, pouco menos de US$ 20 por galão [3.78 litros], que é o que (esperamos) precisaremos para subirmos o rio e voltar a Akobo.

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Acabamos de gastar o que custa uma viagem de ida da Etiópia até Nova Iorque no que deveria ser uma viagem curta de barco. A pedido de Machar, também precisamos ter a bordo meia dúzia de soldados, que insistem estar juntos para nossa segurança.

O Rio Pibor e Sobat, um rio ainda mais complicado, podem parecer uma maneira tortuosa de viajar de Akobo a Nasir, mas é mais rápido do que seguir pela mata densa. Carregamos o barco, o barqueiro dá a partida e quase imediatamente atingimos uma rede de pesca. Logo atingimos uma outra, depois outra, voando para frente no casco. Para cada rede que atingimos, nosso piloto leva um período de tempo excessivo para desembaraçar os fios da hélice. Elas continuam vindo, dezenas delas. É como apertar o breque do seu carro a cada cinco minutos na autoestrada.

Um dos soldados nos acompanhando avisa que se algum pescador nos vir destruindo suas redes, vai se zangar e provavelmente atirar no barco. Essa claramente não será uma viagem de cinco horas.

Ela envolve uma maratona de 11 horas tirando redes do caminho, diminuindo e aumentando a velocidade, ficando presos nos jacintos d'água e então, depois de escuro, procurar algo para comer. Os soldados não trouxeram nada para a jornada além de alguns biscoitos.

Nosso barqueiro para em toda vila no caminho para perguntar se alguém tem comida. Nada. O sol se põe e libélulas dançam ao redor de nossas cabeças. A fumaça sobe de um horizonte vermelho de campos incendiados. Finalmente, os soldados avistam alguns homens jovens com fileiras de peixe seco penduradas em suas cabanas. Fogueiras são acesas e bagres crocantes são jogados numa panela com água do rio fervendo ou simplesmente tostados pelas chamas até que os soldados fiquem satisfeitos. Eles partem sem pagar, e retomamos nossa viagem rio abaixo, agora sob a luz da lua.

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Ao longo da margem vemos movimentos nas sombras. Uma lanterna revela dezenas de animais aterrorizados bebendo humildemente da água infestada de crocodilos. Os pelicanos estão assustados, quase acertando nossas cabeças quando voam em disparada da água para o céu.

Agora estamos morrendo de frio por causa dos espirros constantes da água que vem de baixo. Nosso único consolo vem quando o barqueiro quase bate num barco de passageiros lotado e em vez disso nos leva à terra firme a toda velocidade.

Finalmente vemos as luzes de Nasir. São 2h da manhã e ninguém está acordado, então dormimos em cima de um barco de aço virado. Ao amanhecer descobrimos que estamos acampados no meio do mercado da cidade, rodeados de espectadores curiosos.

Vamos caminhando visitar o comissário, que aparentemente é alguém que devemos encontrar. O posto onde está tem duas novas escolas e um centro do governo – sinais de crescimento.

O comissário amavelmente nos coloca num complexo abandonado de uma ONG, a Adra (Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais). As coisas aqui estão um pouquinho melhores do que no campo em Akobo, e ele avisa que pode nos providenciar internet e eletricidade se comprarmos combustível para o gerador.

O complexo está cheio de lixo, mas tem bebida no pedaço. Uma senhora arranca nossas garrafas assim que acabamos de beber delas. Parece haver um negócio de combustível funcionando fora do prédio da ONG, operando da gasolina deixada para trás. Assistimos a um “homem de negócios” entrar no complexo e vender combustível da Adra ao nosso barqueiro para sua viagem de volta. Somos apresentados à economia da guerra quando o ele explica que sua estimativa original estava errada e que, na verdade, pagaremos pelo combustível para ele voltar a Akobo.

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Explico que já compramos o combustível de que precisávamos, antes da nossa partida, como ele havia pedido e que nos baseamos em sua estimativa. Esse argumento não o interessa. Machot intervém e tenta negociar um acordo, mas ele, com suas unhas pintadas e camisa rosa translúcida, continua a argumentar através do “administrador” da ONG abandonada, que agora parece ter um grande interesse em extorquir mais dinheiro da gente em nome do barqueiro.

Logo este e Machot começam a gritar e a discutir em nuer. O último diz que mais combustível é necessário, porque o barqueiro tem de viajar rio acima para retornar. Aponto que ele usou todo nosso combustível, porque tínhamos uma tonelada de peso e uma dezena de pessoas no barco – três delas, da equipe dele. Digo a ele que sem o peso extra ele deve conseguir voltar, e além disso, que era o preço combinado.

Isso não convence o barqueiro, então ele decide que não vai levar o barco de volta. Eu concordo e digo a ele que está ótimo: ele pode ficar aqui e fretaremos seu barco na volta – contrataremos um outro barqueiro para conduzi-lo. Aturdido, me avisa que irá ao comissário buscar satisfação. Logo o barqueiro volta com um bando de homens bravos armados.

Machot me diz que espalharam rumores de que estávamos enganando o barqueiro, e a cidade toda veio nos impedir de sair.

“Sair de onde?” Pergunto.

“Sair”, resume.

Vejo um aglomerado de cabeças, armas e paus do lado de fora do portão. Mas não vamos sair: estamos bem confortáveis no complexo da Adra com nossa internet de graça.

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“Beleza, a segurança extra é útil”.

Minha resposta confunde Machot. O populacho protesta fora do portão. Ele faz outra tentativa para aceitarmos a extorsão do barqueiro, insistindo numa nova conduta: precisamos devolver o barco ao comissário, porque pessoa feridas têm de ser levadas embora para obter cuidados médicos. Aponto que o hospital dos Médicos Sem Fronteiras na verdade é aqui, em Nasir, não em Akobo. À medida que nossa discussão se arrasta, o grupo do lado de fora do portão se aquieta.

Peço para Machot trazer o acusador até mim e pergunto a ele por que ele é um barqueiro tão ruim. Por que levou 12 horas em vez de 5, por que quebrou tantas redes de pesca, por que exige mais dinheiro e por que trouxe um grupo para bater e atirar na gente? Ele olha para Machot, que se recusa a traduzir. Eu digo a ele para ir embora e que contrataremos outro barqueiro.

Machot está agora mais frustrado ainda. Ele oferece pagar o homem do seu próprio bolso, apesar de não ter dinheiro nenhum. Aparentemente, estou queimando seu filme, porque ele trouxe esses homens brancos malandros para enganar os locais. Cansado do jogo, dou o dinheiro a Machot. Como por um toque de mágica, a multidão do lado de fora se dispersa. De alguma forma passamos de visitas estimadas a instigadores de violência, roubalhões e saqueadores, mas ao longo do dia voltamos a ser o que éramos.

Traduzido por: Julia Barreiro

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