Uma entrevista com Andres Serrano, o fotógrafo que estetiza a violência
'Dog Position II', por Andres Serrano. Todas as fotos cortesia de Andres Serrano.

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Uma entrevista com Andres Serrano, o fotógrafo que estetiza a violência

Conversamos com o controverso artista nova-iorquino sobre a sua nova e impactante exposição que retrata a tortura na história humana.

O sofrimento pode ser belo. Ou pode ser tornado belo, de certa forma. O fotógrafo norte-americano Andres Serrano há tempos vem experimentando com o terreno espinhoso da estetização da violência. Sua nova série, Torture, em exposição este mês no festival de fotografia francês Rencontres d'Arles, não é exceção. Com imagens de instrumentos de tortura medievais e retratos de vítimas contemporâneas de abuso de direitos humanos, as quarenta fotos de Serrano exaltam formalmente a selvageria sistematizada, fazendo com que o olhar permaneça um pouco mais sobre o repulsivo tema.

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A exposição, apresentada na galeria de Paris Collection Lambert e na organização de arte socialmente consciente a/political, mostra vítimas reais dessa violência reencenando seu horror, além de modelos que se voluntariaram para recriar cenários da idade das trevas.

A série inclui um retrato de uma mulher, com o pseudônimo Fatima, que foi presa, torturada e estuprada várias vezes pelas Forças de Segurança Sudanesas quando morava em Cartum. O sofrimento dela foi magnificado quando ela escapou para o Reino Unido e foi detida várias vezes no Centro de Imigração Yarl's Wood. Serrano também fotografou os "Homens Encapuzados", suspeitos do IRA que foram vítimas das "cinco técnicas" — posição de stress, encapuzamento, sujeição a barulho, privação do sono e privação de comida e bebida — pelos militares britânicos nos anos 70. Outras fotos mostram voluntários encenando punições do velho mundo. Em uma das imagens, uma mulher aparece sentada num cavalo de madeira criado para rasgar o corpo ao meio, com pesos amarrados nos calcanhares.

'Kevin Hannaway', "The Hooded Men"' por Andres Serrano.

Muitas das fotos de Torture foram encenadas no Foundry, uma instalação de armamentos do século 19 em Maubouguet, França, que o a/political converteu num espaço para artes experimentais em 2015. Outras mostram locais onde realmente aconteceram atrocidades, como uma prisão da Stasi em Berlim e um campo de concentração nazista em Mauthausen, Áustria. A variedade de eras, vítimas e locais que Serrano escolheu fotografar parece arbitrária, aplainando diversos incidentes numa experiência universal de tortura. Mas a série também funciona para sugerir a racionalização da violência inerente às sociedades humanas.

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Serrano ficou conhecido por capturar temas perturbadores com uma reverência chocante. Em 1987, o artista causou polêmica com Piss Christ, uma imagem de um crucifixo dentro de um copo de sua própria urina. Ele já fotografou corpos carbonizados e esfaqueados em Morgue (1992) e excremento de todos os tipos, incluindo seus, em Shit (2008). Ele documentou os sem-teto de Nova York, assim como membros da Ku Klux Klan. O Royal Museum of Fine Artes da Bélgica está expondo uma retrospectiva do trabalho dele, "Uncensored Photographs", até o final de agosto.

Em 2013, a VICE US acompanhou Serrano em Cuba para fotografar o povo da ilha. Desta vez, falamos com ele por telefone sobre tortura, poder e o legado da polêmica.

'The Wooden Horse' por Andres Serrano.

VICE: Como você abordou os temas das suas fotos, como os Homens Encapuzados?
Andres Serrano: The Hooded Men mostra irlandeses que foram detidos pelas autoridades britânicas — praticamente escravizados — e eles ficaram encapuzados o tempo todo em que estiveram presos, por vários anos. Agora eles estão processando o governo britânico graças a Amal Clooney, advogada de direitos humanos. Ela está defendendo o caso deles.

A primeira vez em que os fotografei, escolhi não fotografar de um jeito tradicional — ou seja, não tirar retratos convencionais deles, mas sim deles como os Homens Encapuzados, com sacos pretos cobrindo a cabeça. Acho que eles ficaram surpresos com meu pedido. Eles não estavam esperando. Acho que eles sentiram um senso perturbador de déjà vu, não apenas o medo de voltar para aquele tempo e espaço, mas também pelo fato de que isso desencadeava memórias para eles. Mas no final, eles concordaram. Antes de colocar os capuzes, eles respiravam fundo. Fiquei muito grato por eles terem topado.

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"Tortura parece quase ser parte da condição humana." — Andres Serrano

Em muitas dessas imagens, você está usando objetos e cenários que parecem a-históricos — genericamente antigos. Como se pudessem ser de qualquer era. Você queria implicar que é inevitável para nós infligir sofrimento aos outros?
Tortura parece quase ser parte da condição humana. Toda guerra tem vítimas torturadas; todo século tem sua porção de atrocidades. Estamos falando dos tempos medievais, da caça às bruxas, da Inquisição, das Cruzadas. E, além da tortura, você tem a exploração e a humilhação. De muitas maneiras, pessoas são torturadas, mesmo que não literalmente, mas isso continua sendo tortura. Atualmente as pessoas querem mudar a opressão e mudar a pobreza. No mundo todo há uma revolução acontecendo contra o status quo, porque o status quo faz de todos nós prisioneiros. Tortura é uma coisa específica. Pode ser uma tortura física, pode ser tortura mental. Mas há um tipo de luta que sempre estará entre nós, especialmente quando temos uma classe dominante e o resto.

'Room of Blood' por Andres Serrano.

Os modelos que você fotografou sentiram dor durante as sessões?
Mesmo sendo apenas uma encenação, há muito desconforto físico em manter essas posições. Mesmo sendo faz de conta, houve um certo nível de tortura.

Fazendo esse projeto, descobri que as pessoas torturam outras quando têm poder sobre elas. Os modelos faziam exatamente o que eu mandava. Imagine se eles não fossem voluntários, se não tivessem escolha a não ser passar pela tortura que eu queria que eles passassem? A tortura vai além da dor física. Também é a humilhação pela qual a vítima vai passar para fazer o que você pediu a ela.

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'Untitled XXIII' por Andres Serrano.

Esse projeto e muitos dos seus trabalhos têm uma dimensão política, mas li numa entrevista que você prefere o termo "ato de consciência", porque arte política parece propaganda.
Não me vejo como um defensor de uma causa ou um artista com uma agenda. Não estou tentando salvar o mundo. Me vejo como a criança da história da roupa nova do imperador. A criança é a única que pode dizer que o imperador está nu.

Somos condicionados a não olhar para certas coisas. É uma sobrecarga olhar porque você se sente mal sobre tudo, então escolhemos ignorar. Eu chego e digo "Ei, veja isso". Sinto que o que faço é dizer o óbvio.

'Untitled II' por Andres Serrano.

Sei que você é cristão, e muitos dos seus projetos visam destacar o sofrimento dos outros humanos.
Sou cristão. Às vezes sou um cristão mal compreendido, mas sou cristão. Também sou um artista. Não é como se você pudesse dizer "ele é um homem bom" ou "ele é um homem ruim". Talvez eu seja um pouco dos dois. Mas eu diria que meu trabalho tem um senso de humanidade. Me preocupo com as mesmas coisas que o Papa se preocupa — abrir um diálogo com Cuba, o problema dos sem-teto. Meu sonho é encontrar o Papa Francisco, que ele me dê sua benção e talvez uma comissão para trabalhar com a igreja, do mesmo jeito como artistas religiosos trabalhavam com a igreja antigamente.

Tento fazer conexões com artistas religiosos do passado como Hieronymus Bosch. Mesmo Luiz Buñuel eu consideraria um artista religioso. Ele tinha sentimentos ambivalentes e contraditórios sobre o catolicismo. Isso mostra que a igreja ainda está em você.

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"Há uma certa estética que tenho que seguir. Escolhi fazer objetos belos, mesmo que seja sobre coisas que te deixam desconfortável." — Andres Serrano.

Mesmo formalmente, há uma qualidade de reverência em como você enquadra seus temas, o que talvez se conecte com artistas religiosos do passado e contemporâneos.
Muitas vezes, a arte contemporânea é intelectual, e isso é algo frio. Não é político; não é social. É arte sobre o nada. Minha arte é sobre alguma coisa, e não é fria, porque não sou uma pessoa fria. Francamente, não entendo muito de arte, então isso me faz sentir que algumas pessoas também não entendem meu trabalho.

'Untitled VIII' por Andres Serrano.

Seu trabalho mais antigo era controverso para os conservadores que ficam facilmente ofendidos. Mas com os anos, parece que seus críticos mudaram. Há intelectuais que tiveram um problema com a maneira como seu trabalho torna o sofrimento belo. Quando você aborda um tema, você quer torná-lo belo?
Essa é uma noção rejeitada nas artes hoje. As pessoas não querem fazer arte bela. Mas eu acredito que há uma certa estética que tenho que seguir. Escolhi fazer objetos belos, mesmo que seja sobre coisas que te deixam desconfortável. Se meu trabalho não tivesse esse impulso, essa dualidade, o contraste entre o bem e o mal, o belo e o feio, eu só estaria fazendo fotos bonitas. Seria um trabalho decorativo, e ninguém ia querer isso de mim.

As pessoas esperam que eu seja provocador ou polêmico, e quando não sou, elas ficam decepcionadas e não escrevem sobre mim. Uma coisa com que me sinto mal é que nos últimos 25 anos, tive 15 grandes exposições na Europa, mas apenas uma nos EUA. Nos EUA, sou conhecido como "Andres Serrano, o artista polêmico". Na Europa, sou conhecido apenas como "Andres Serrano, o artista". Nos EUA, sou conhecido apenas por Piss Christ.

'Crematorium Urns, Buchenwald' por Andres Serrano.

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