As Mulheres de Uganda que não Conseguem Usar Banheiros sem Temer Doenças e Estupro

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As Mulheres de Uganda que não Conseguem Usar Banheiros sem Temer Doenças e Estupro

Em Uganda, só 19% da população têm acesso a saneamento melhorado que não são compartilhados e que proteja do contato direto com excrementos humanos — condições que botam em risco a saúde e a segurança das mulheres do país.

Mary Businge estava na cadeira de seu consultório diagnosticando uma paciente quando as trabalhadoras chegaram. Elas estavam de péssimo humor enquanto arregaçavam as mangas e desciam até a vala cheia de esgoto. A vala, que se estende pela favela Nankulabye na capital de Uganda, Kampala, é onde os aproximadamente 40 mil moradores jogam seu lixo: latas vazias, sapatos estragados, cartas de baralho, bitucas de cigarro, documentos, absorventes e sacos com fezes.

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Quando chove, a água malcheirosa sobe como uma coisa viva; então, o governo da cidade mandou funcionários para limpar a vala. Na última visita, as trabalhadoras, que entram na água na altura do tornozelo apenas com botas de borracha, luvas de látex e pás, encontraram um feto enrolado num saco plástico.

Businge, uma enfermeira de 52 anos que comanda seu consultório de uma sala em frente a esse local, ficou imaginando quanto tempo levaria para a vala se encher de novo. Uma semana, ela estimou. Não há banheiros suficientes na favela – cada um é compartilhado por algo entre dez e 50 pessoas –, e quase todos recebem pouca manutenção. Se você vai à escola ou ao trabalho, pode esperar para usar o banheiro lá. Mas, se você tem de ficar em casa e é mulher, geralmente é mais fácil usar um saco plástico e depois jogá-lo na vala. "Ficamos doentes todos os dias", ela disse. "Mas temos vergonha de falar sobre as doenças que pegamos dos banheiros. Temos vergonha."

"Sofremos em silêncio, mas sofremos muito." – Mary Businge

Mulheres contribuem fundamentalmente para o sucesso de programas de saneamento no mundo todo, notou um estudo conduzido pelo Sanitation and Hygiene Applied Research for Equity, um consórcio de cinco ONGs e instituições acadêmicas. "Mas a consideração sobre mulheres e saneamento não pode focar apenas o que as mulheres podem fazer pelo saneamento", atesta o relatório. "Isso também precisa considerar o que o saneamento inadequado está fazendo com elas."

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Businge diagnostica mulheres de uma mesa coberta por jornais, uma caixa de fósforo, uma espátula, tesouras, aspirina, um rolo de ataduras e antibióticos. Ela pode tratar o desconforto físico, mas não tem cura para as ansiedades que atormentam as pacientes: o que os maridos vão pensar, o que essa doença diz sobre elas e suas práticas sexuais, quão vergonhoso é ter uma doença ali embaixo. "Higiene é o único jeito de combater doenças", ela afirmou. "Mas, se têm uma doença, elas não devem esconder, porque isso pode piorar. Mesmo se têm medo de que os maridos pensem que elas são infiéis."

Toda semana, Businge, que estudou no Nsambya Hospital, trata entre oito e nove mulheres com dores abdominais, corrimento, coceira, vômito, sintomas de infecção no trato urinário e candidíase, que, segundo ela, vêm da exposição a latrinas cobertas de fezes, urina e vômito. Às vezes, elas até aparecem com infecções intestinais e respiratórias. A consulta custa 10 mil xelins de Uganda, ou R$ 9, menos que a taxa de uma visita ao hospital. No último ano, a enfermeira vem se tratando repetidamente de candidíase, que ela suspeita ter contraído usando a latrina que Businge e a filha dividem com pelo menos mais 15 famílias. "Sofremos em silêncio, mas sofremos muito", ela frisou.

Em Uganda, só 19% da população têm acesso a saneamento melhorado (o que significa um banheiro não compartilhado que contenha um mecanismo que separa o excremento do contato humano), de acordo com a última Pesquisa de Demografia e Saúde conduzida em 2011 pela Bureau de Estatísticas de Uganda. Os pesquisadores do Sanitation and Hygiene Applied Research for Equity entrevistaram 32 mulheres das favelas de Kampala e descobriram "uma ligação entre a falta de acesso a saneamento adequado e experiências de humilhação e violência". Eles mapearam cinco tendências: número inadequado de banheiros, risco à segurança, uma profunda sensação de vergonha associada à falta de privacidade, saneamento inadequado como um fardo mais pesado para as mulheres e um sentimento generalizado de desamparo. "Quando um indivíduo é privado de seu direito a saneamento, ele também é privado de seu direito à dignidade, privacidade e segurança", destaca o relatório.

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Fatimah Nagawa, 18 anos, não usa o banheiro coletivo a menos que alguém a acompanhe. Ela pode esperar ou usar um balde em casa, ela completou. Em Wankulukuku, uma favela na fronteira de uma zona industrial com cerca de 16 mil habitantes, "há muitos perigos", disse. "Eu me sinto incomodada, acho que vou ser atacada. Garotos aparecem e perguntam quem está lá dentro; depois, começam a dizer coisas idiotas, como 'O que você está fazendo?', 'Posso entrar?', 'Eu te amo', 'Quero seu corpo'."

A mãe de Nagawa, que fica fora o dia todo trabalhando para um alfaiate, a incumbiu de cuidar de seus irmãos Kasim, 12 anos, Matridah, de 9, e Zahara, 6. Um ano atrás, uma amiga de escola de Nagawa contou que foi estuprada dentro de um banheiro local, tendo desaparecido com a família quase da noite para o dia. "Ela não podia mais ficar aqui", falou Nagawa. "Penso nela e tenho medo pelas minhas irmãs."

Na casa ao lado, Aminah Namujju, 36 anos, está secando roupas no chão de sua casa, porque está garoando lá fora. Suleyman, 4 anos, seu quinto filho, estava atrás de uma cortina chamando pela mãe e se escondendo. Namujju disse que conhecia pelo menos dez mulheres que foram atacadas em banheiros coletivos na favela. Ela não sabia onde elas estavam agora. "É perigoso, mas, quando você tem de ir, você tem de ir", ela frisou.

Namujju, como muitas pessoas na favela, não é dona da terra onde vive. Ela vê a construção de um banheiro próprio como uma despesa inútil. "E essa é uma área pantanosa; então, se você tem uma latrina, ela vai transbordar quando chover", ela acrescentou.

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Namujju, que vende galinhas, perdeu o marido, um motorista, dois anos atrás. Agora, ela mora apenas com os sete filhos. "É vergonhoso ir ao hospital e dizer que sinto coceira lá embaixo, mesmo não tendo marido. Eles vão ficar pensando 'Onde você pegou isso?'."

De acordo com um estudo conduzido por uma equipe de seis pesquisadores, acadêmicos e funcionários de ONGs de Kampala e Zurique, 78% das pessoas entrevistadas de 1.500 casas em favelas compartilhavam um banheiro com uma média de seis famílias. Dessas, cerca de 10% dividiam um banheiro com mais de 100 famílias. Os pesquisadores fotografaram 1.500 latrinas coletivas e as classificaram por limpeza, observando que 20% delas tinham uma quantidade considerável de material sólido (papel, excrementos, material de construção), grandes poças e líquido nas beiradas, o que tornava "difícil usar as latrinas sem se sujar".

Grace Apiro estava engraxando seus sapatos em frente à sua casa em Kifumbira, uma favela no norte de Kampala, se preparando para ir trabalhar. Alguém tinha vomitado no banheiro coletivo na noite anterior e ela não pôde entrar. "Eles só lavam o banheiro de vez em quando", ela informou. "Quando você entra e não há água lá dentro, você tem de tapar o nariz."

Cada ida ao banheiro custa 100 xelins, ou R$ 0,10. Parte do dinheiro deveria ir para o zelador, um homem pálido sobrecarregado que ganha 50 mil xelins (menos de R$ 50) por mês para limpar quatro banheiros com apenas uma vassoura, água e desinfetante. Em muitos dias, ele fica doente por limpar os banheiros.

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"Quando chove, os banheiros transbordam e ficamos com febre. Quando eles enchem, baratas entram nas nossas casas e nos deixam doentes." – Evlin Kafero

A Autoridade Municipal de Kampala (KCCA) estava comprometida em melhorar o saneamento das favelas, tendo construído, desde 2012, cerca de 15 banheiros em assentamentos informais, segundo informações de Jude Zziwa, porta-voz deles, por e-mail. Banheiros coletivos nas favelas das cinco divisões da cidade são esvaziados por uma taxa subsidiada, o lixo é recolhido gratuitamente e os canais de drenagens são limpos com regularidade, ela completou. "A KCCA fornece banheiros gratuitos em 18 locais da cidade (estacionamentos de táxi, ruas movimentadas e mercados). A população-alvo desses serviços é a população transitória, parte dela vindo de assentamentos informais", ela acrescentou.

Durante a Semana de Saneamento, que aconteceu entre 12 e 18 de março deste ano, mais de 100 banheiros foram esvaziados em favelas selecionadas. "Cerca de 393 mil litros de lodo fecal foram retirados. Tudo de assentamentos informais", destacou Zzima. Mas a manutenção de banheiros coletivos era responsabilidade de comitês nomeados dentro das favelas, ela disse – a KCCA só podia fornecer suporte técnico.

Evlin Kafero, parteira e secretária de um grupo de mulheres em Kifumbira, afirmou haver lacunas entre a política e a prática. Comitês existem, mas ela conta que o fardo de manter os banheiros limpos acaba sobre mulheres como ela. "Se você contrata uma empregada, chega em casa e descobre que ela não fez o trabalho, você se recusa a fazer isso sozinha, porque esse não é seu trabalho?", ela perguntou. "Você vai fazer, porque isso é prejudicial para você e a sua família. Quando chove, os banheiros transbordam e ficamos com febre. Quando eles enchem, baratas entram nas nossas casas e nos deixam doentes."

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Kafero, que falava numa voz macia e suave, estava sentada em frente a um supermercado. Era ali que ela queria realizar reuniões para educar mulheres sobre como se evitar doenças. Por exemplo: lavando as roupas de baixo em água quente com sal, comprando calcinhas com forro de algodão, passando a roupa de baixo a ferro antes de usá-la, como jogar fora os absorventes, como limpar um banheiro, etc. Mas fazer as mulheres aparecerem quando podiam estar trabalhando é difícil. "Elas não se preocupam em participar. Elas dizem que é perda de tempo, que é muito longe, que estão cansadas de andar – elas se tornaram preguiçosas. Elas não acham que isso é importante", ela lamentou. E, quando Kafero aparece na porta das casas delas, as mulheres temem que sua campanha de saúde faça seus maridos suspeitarem delas; então, a mandam embora. "Essa mentalidade não é boa", ela finalizou.

Betty Nyangoma, 25 anos, estava fazendo sua pausa de almoço como cozinheira num restaurante de rua em Kifumbira que vende feijão com arroz. O problema com as mulheres, ela opinou, é que elas não pensam em si mesmas. Elas sofrem com doenças, mas não fazem o suficiente para aliviar sua condição. "Elas pensam em todo mundo, menos nelas mesmas", ela falou. "Elas têm um pensamento próprio."

Nyangoma vive com a tia e o filho de quatro anos, Jonathan, na favela, compartilhado um banheiro com outras cinco famílias. Ela tem um diploma em administração hoteleira, mas ainda não conseguiu arranjar um emprego na área. "Preciso do meu próprio banheiro, mas não tenho dinheiro; então, não tenho opção. Agora tenho de me focar em começar um novo negócio. Tenho de pensar na minha família e no meu filho", ela disse. "Quando tiver dinheiro, terei minha própria casa e construirei meu próprio banheiro. É assim que penso."

Essa matéria foi possível através da African Great Lakes Reporting Initiative da International Women's Media Foundation.

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Tradução: Marina Schnoor