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quadrinhos

O Espírito-Que-Anda (Torto)

O primeiro trabalho solo totalmente independente do Diego Gerlach, que é bem fã do Fantasma.

O Diego Gerlach é um gaúcho bem fã do Fantasma. Não ao ponto de contestar uma namorada -- pelo jeito muito da sensata --, mas o suficiente pra ter empenhado cinco semanas da sua vida à feitura (arte e roteiro) da sua primeira HQ solo, e totalmente independente, dedicada ao "Espírito-que-Anda". Lançada quando ele ainda vivia em João Pessoa, Ano do Bumerangue conta a história de um tal Sr. Opeña – convocado pela sei lá qual geração de Kit Walker – pra trabalhar em um “recenseamento para melhorias” em Awibo, na Bagalla cheia de suor, durante a época de eleições presidenciais. Nisso rolam umas feitiçarias, surto de moscas tsé-tsé, assassinatos, conspirações e até grafomania.

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Tô contando isso pra ver se você, caso ainda não tenha lido, fica menos perdido durante a conversa. É que a história toda é tão doida que deixa qualquer um mais atordoado que tomar murro com anel de caveira e te assombra mais que caucasiano de collant colorido -- e se o Diego continuar assim, você ainda vai ouvir falar bastante dele (jornalismo divinatório não, ele mesmo contou que, além de já ter publicado na +SOMA, Revista Prego e Peixe Fora D'Água, vai logo menos aparecer na Tarja Preta, Golden Shower e num projeto da Editora Barba Negra). Enfim, tentei ver se ele me ajudava a esclarecer tudo isso um pouco melhor.

VICE: Na contra-capa de Ano do Bumerangue você conta que começou a desenhar o Fantasma "em situações atípicas", e chegou a "fantasiar um personagem meu como Fantasma a pretexto de uma festa à fantasia". O que isso quer dizer? Você já foi vestido de Fantasma a uma festa à fantasia?
Diego Gerlach: Fazia rabiscos e HQs de um quadro com o personagem, em geral fora de contexto. Como esse aqui. O personagem que fantasiei de Fantasma foi o Boy Rochedo, um ogro protagonista de outra HQ minha. Mas, rapaz, uma vez levantei a ideia [de se fantasiar de Fantasma] -- cheguei a procurar uma costureira. Mas minha namorada da época conseguiu me dissuadir. Provavelmente foi uma boa ideia, eu era meio gordo.

Eu já li e reli A.D.B. algumas vezes e ainda não acredito ter chegado a uma conclusão sobre o que se passou ali. Eu sou muito burro? O que se passou pela sua cabeça quando você escreveu o roteiro, pode me contar -- por favor -- pra eu conseguir ficar em paz comigo mesmo?
Você é muito burro [risos]. Nah. A história foi sendo montada sem que houvesse um roteiro pronto, com base em cenas e vinhetas soltas. Conforme pesquisava e refletia sobre o personagem, e pensava no mundo que queria criar com base nisso, as coisas foram se encaixando. De certo modo, a narrativa espelha o processo caótico de construção, com as coisas interagindo da maneira mais espontânea possível. Meio que me propus a entrar num transe, escutando músicas em looping, me fechando e embarcando em processos mântricos de consciência.

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Quando os arquivos digitais estavam na gráfica pra impressão, me ligaram com urgência pra avisar que provavelmente eu tinha organizado as páginas na ordem errada. Fui até lá e assegurei a eles de que era aquilo mesmo [risos]. Várias pessoas me perguntaram se "faltava uma parte da história", ou simplesmente classificaram como nonsense. Não é nem uma coisa nem outra, acho que é o fato de não ser uma narrativa tradicional de três atos, de se propôr mais a uma experiência do que a uma história no sentido clássico.

A trama se recusa a um fechamento completo, acredito que isso é o que fica mais claro numa primeira leitura. Em termos morais, ela é propositalmente ambígua, com uma certa dança das cadeiras em termos de relações raciais e instâncias políticas. Mas me preocupei em mapear por que motivo cada coisa acontece e a motivação de cada personagens (que, vale ressaltar, não é necessariamente a minha motivação). A história não termina, ela para, como ocorre com qualquer evento histórico. Começo, meio e fim são conceitos bastante arraigados, e também irreais. Mas não sejamos condescendentes: há indícios suficientes para que o leitor conclua algo por si mesmo. E, em última análise, o que eu quis dizer, ao menos nessa história, não é importante: tudo que importa é o que o leitor acha que eu quis dizer, o que colhe disso e como se concilia com isso.

Li uma entrevista sua falando que essa HQ já tinha umas 100 páginas, mas aí você resolveu condensar pras 27 publicadas. Por quê? Teve alguma coisa que você acha que ficou mal resolvida nesse corte?
Na verdade essa HQ de 100 páginas é outra, uma história sci-fi, Pinacoderal da Parahyba, que vinha publicando de maneira seriada em zines xerocados. Quando decidi ir à Comicon do Rio em 2010, percebi que lançar um zine xerocado (que é ainda mais caótico do que A.D.B. em termos de narrativa) não seria a estratégia mais sábia. Tinha essa ideia de fazer uma história com o Fantasma fazia algum tempo, mas nunca tinha parado pra pensar como seria, ou qual o ângulo de abordagem. Comentei com um amigo meu que um dia ainda faria uma HQ do Fantasma. Ele disse: "Você não vai fazer, gaúcho. Tá doido?''. Ele se referia ao fato de que nunca iriam chamar um cara com um traço quebrado como o meu pra fazer uma história do personagem. Digamos que essa foi a fagulha. Daí fiz alguns esboços em busca de inspiração, e com base nesse, começaram a rolar mil idéias. E o Pinacoderal no momento está em hold (porque surgiram uma série de convites pra publicar em antologias, por conta dos contatos que fiz na Comicon), mas é uma história que pretendo concluir.

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Por exemplo o motivo de o Faluma ter a marca da caveira (que apesar de eu não ser lá um conhecedor a fundo do Fantasma, sei que é do anel depois do soco que ele dá em quem não gosta) e ainda ser apoiador do Fantasma? Ou isso é outra sacada que eu deveria ter tido ao ler a HQ e não tive?
Exato (pra todas as perguntas).

O Ano do Bumerangue é a tradução de “The Year of tha Boomerang”, música do Rage Against the Machine que, vi na Wikipédia, faz referência ao prefácio que o Jean Paul-Sartre escreveu para o livro Os Condenados da Terra, do Frantz Fanton (inspirador de movimentos anti-coloniais), a quem você também presta homenagem na HQ -- além do músico Fela Kuti --, como afirma no próprio prefácio. O nome veio mesmo daí? De onde vem e qual o motivo desse seu interesse por essas características da cultura ‘negra’ (na história ainda rola bastante vodu e magia negra)?
Quando comecei a história, pesquisei bastante sobre a mitologia do personagem. Lee Falk, o criador do Fantasma, poderia ser considerado quase um libertário pra sua época. O Fantasma tratava os negros de Bangalla (o país africano fictício que protege) com dignidade. O que não quer dizer que os tratasse como seus iguais, até onde entendo. Tenha em mente que estamos falando de uma tira de jornal criada nos Estados Unidos do final dos anos 1930, pré-Movimento dos Direitos Civis, etc.

Lendo algumas histórias antigas, percebi que os nativos eram tratados como debilóides. Em uma história que me chamou a atenção em particular, um grupo de sujeitos brancos se vestia com fantasias de gorila e atacava um vilarejo. Os negros, que viveram na savana africana sua vida toda e em grande contato com o meio natural, ACREDITAVAM que se tratavam de gorilas de verdade. Ficavam confusos, se fodiam, precisavam que o Fantasma matasse a charada.

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Hoje, num mundo pós-Alan Moore, até o pior gibi da Marvel aborda temas 'tópicos' de algum modo. Essas aberrações só eram possíveis numa época em que os quadrinhos, sobretudo os quadrinhos de super-herói, eram só um veículo de diversão escapista proletária. Não recrimino essas histórias, elas são um retrato toscamente fiel de uma era ainda mais brutal, mas esse obscurantismo gritante me deu gás pra fazer uma história diferente, inflamada.

O nome 'Ano do Bumerangue' surgiu pronto na minha cabeça, quando ainda fazia as primeiras páginas da HQ, sem que eu entendesse bem o porquê. Parecia apropriado, sonoro, carregado de um teor político misterioso.

Uns dois dias depois, lembrei que provavelmente tinha vindo de "Year of Tha Boomerang" -- eu conhecia a música, embora a conexão não fosse clara num primeiro momento. Fiquei um pouco broxado, tipo, "E se a música abordar algo nada a ver com o que eu quero passar com a história?" Aí percorri o mesmo caminho que você, Wikipedia, Sartre, Frantz Fanon. O curioso é que eu vinha de um período de leitura intensa de Sartre, e fiquei de cara com essa série de coincidências, que se encaixavam perfeitamente com o que estava elaborando.

Sempre achei Fela Kuti uma figura extraordinária, além de criador de um dos estilos musicais mais engajados e convidativos a uma boa foda da história da humanidade. A meu ver, enquanto revolucionário, ele é conceitualmente mais perfeito do que Sartre e Che Guevara juntos. Se considerarmos que ele tem uns 37 mil filhos, e que sua tradição musical é passada adiante através deles, Fela é o mais próximo que o continente africano tem de um Fantasma de verdade: um herói político glorioso, imortal através de sua genealogia.

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Os temas abertamente políticos e eleitoreiros vazaram pra história porque produzi ela em meio ao ápice da asquerosa campanha pro governo da Paraíba de 2010. Um dos candidatos tentou utilizar 'magia negra' como um argumento de campanha contra o outro. Alugou um helicóptero que despejou milhares de panfletos no brejo paraibano, avisando a população de que o candidato da oposição era adepto de religiões pagãs afrobrasileiras (até onde entendo, uma calúnia, e das mais pífias). Achei isso tudo francamente inacreditável, e óbvio que meti na história. Enquanto fazia os letreiros do gibi, ouvia ao longe a festa da vitória do candidato vencedor (o macumbeiro).

Pra finalizar, há magia, magia de verdade, envolvida na criação da história. O Holístico Extrapiramidal realizou um ritual de pixações em João Pessoa que mudou o rumo das eleições no Estado. Ninguém vai acreditar nisso, mas é verdade. As pixações em A.D.B. são um recordatório disso.

Há quem diga que o Fantasma é um ser colonialista, quem afirme ser anti-colonialista e os que vejam nele uma posição ambígua quanto a isso. O que representa pra você um branco de sei lá qual geração usando uma máscara e um collant cinza no meio da África?
Creio que o Fantasma é um arquétipo bem-intencionado, mas que pratica uma justiça paliativa e míope, como toda política condescendente em geral é. Já num nível alegórico, digamos que uso na história um herói representante do quadrinho gringo, que, a seu modo, colonizou meu inconsciente de modo bem pouco sutil e com valores que me são (ou deveriam ser) alienígenas. É um mito ao qual dediquei uma boa dose de obsessão mas que, como já foi dito, nunca abrigaria a minha visão particular sobre ele. Ao menos não de modo oficial.

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Alguém já encheu o seu saco por você ter usado o Fantasma numa história não ‘autorizada’? Seja gente cobrando direito autoral ou fã do próprio te azucrinando?
Até agora não. Alex Vieira, da Prego, me disse que o cara responsável pela catalogação de todos os gibis do Fantasma no Brasil comprou uma cópia de A.D.B. dele, mas é tudo que sei.

Planeja uma continuação pra essa história?
De momento, não. Nem houve reimpressão, e, dada a natureza da publicação, acho que nunca vai haver. Não quero abusar da sorte. É tudo independente -- todos os dias levava as páginas pra UFPB, onde estudava, e o pessoal do Holístico Extrapiramidal ajudava muito com sugestões e opiniões equanto a história era criada --, e também teve o auxílio inestimável da Revista Prego, que comprou 1/5 da tiragem, e do meu bróder Meq, que fez o projeto gráfico e bolou a capa com base em instruções gerais que passei a ele.

Tá, beleza. Agora me explica a história aí, vai.
Me explica você.

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