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VICE Sports

Batemos um Papo Retíssimo com o Goleiro Aranha

O jogador do Santos conversou com a gente sobre o tumultuado caso de racismo que ele sofreu na Arena Grêmio, em Porto Alegre.

Discreto para os moldes dos boleiros, um carro preto para dentro do CT Rei Pelé, em Santos. De dentro dele, sai Mário Lúcio Duarte Costa. Calça de moletom e camiseta preta, crocs azuis nos pés e um cordão de ouro descendo do pescoço ao umbigo escrito ARANHA. O goleiro do Santos Futebol Clube nos recebeu para quase uma hora de papo reto sobre o tumultuado caso de racismo que ele sofreu na Arena Grêmio, em Porto Alegre. O atleta falou também sobre o preconceito fora dos gramados, a torcida tricolor, a imprensa, Pelé, Felipão, Peninha e, de quebra, como o rap o preparou para lidar com esse tipo de adversidade.

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No dia 30 de setembro, além de Patrícia Moreira, reconhecida no dia do jogo, mais três torcedores gremistas foram indiciados pela polícia gaúcha sob a acusação de injúria racial, o que pode tornar a pena mais branda do que a acusação de racismo. O caso, que rola na justiça e nos debates de boteco, deve demorar algum tempo até sair um veredicto.

VICE: Num histórico recente, tivemos alguns jogadores brasileiros que sofreram racismo dentro de campo. Em fevereiro deste ano, o Tinga ouviu injúrias raciais no Peru. Em março, o Arouca, também do Santos, ouviu algo parecido contra o Mogi Mirim. Teve o caso do Daniel Alves na Espanha também. Por que você acha que isso é tão reincidente no futebol?
Aranha: Primeiro, eu acho que não é reincidente e não tá acontecendo agora. Sempre aconteceu. Só que hoje a gente tem as redes sociais e a internet. Quase todo mundo tem acesso à internet; então, uma notícia que aconteceu lá no Norte, quem tá lá no Sul fica sabendo. De um extremo a outro, uma notícia corre com uma velocidade muito grande. Tudo o que acontece agora toma uma dimensão maior e mais rápida, por isso talvez tenha tomado a dimensão e a repercussão que deu.

Numa entrevista, você comenta que o rap te preparou para situações como essa.
Normalmente - era até um período atrás -, o rap era uma forma de protesto e ele falava somente daquilo que ele via e daquilo que tava dentro da realidade dele. Ele não falava de coisas que ele não conhecia. As coisas que eles não tinham acesso, até falavam, mas como sonho, sonho de consumo. E hoje acabou se tornando realidade pra muitos. Então, o que acontece? Muitas coisas que o pessoal do rap falava nas suas letras eram coisas que, pelo cotidiano, a gente se identificava. Eu sou de Minas, de Pouso Alegre, e falava: 'Pô, então isso acontece em São Paulo também?', porque tem rap no Brasil todo. Então, quando você ia pra São Paulo, você já sabia mais ou menos como é que a banda tocava lá, porque eles falavam. As histórias dos condomínios. Na minha cidade, agora tem um condomínio fechado, mas a gente só tinha ouvido falar, porque como não tinha internet e não dava pra você ver foto e ver como era e tal, mas a gente sabia que existia o tal do condomínio. Então, muitas coisas que acontecem hoje na minha vida, eu já sei e, de certa maneira, eu sei lidar, porque eu ouvia muito rap, e não é uma surpresa.

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E quando começou a ouvir rap?
Acho que desde que eu começo a entender as coisas. Uns treze, catorze anos. Eu sou de 80, mesma época em que o rap se consolidou.

Das histórias da São Bento, aqui em São Paulo, né?
É, foi nessa época aí que eu nasci.

O que você ouve hoje em dia?
Hoje, eu escuto bem menos do que eu escutava antes, até porque também não só a minha vida, mas o rap em geral mudou; então, tem coisas que eles falam em algumas músicas ou alguns grupos que eu não acho interessantes, que não servem pra mim. Outras servem. E a minha vida também mudou, melhorou bastante. Então, eu acabo não me identificando ou entendo bem aquele recado. Ouço bem menos que antes, mas curto muita gente, principalmente os caras mais antigos também.

E quem são esses caras?
Racionais, eu curto o GOG, escuto Thaíde, Comando DMC, Câmbio Negro. Da antiga assim, praticamente todos, eu tô ouvindo.

E o que você ouve antes de um jogo?
São várias, várias. Porque o pessoal vê a galera com o fone de ouvido indo pro jogo e acha que é onda, que o cara tá indo na onda com um fone bacana. Cada um gosta do seu estilo de música e procura ouvir o que vai motivar ainda mais, pra se concentrar.

E antes do primeiro jogo contra o Grêmio?
Eu não tinha nenhuma música específica, porque era uma coisa que sempre acontecia, mas, ao mesmo tempo, eu nunca imaginei que ia acontecer tudo aquilo que aconteceu.

Mas, assim, lembrando da cena, tem alguma música que venha à sua cabeça? Tem várias músicas que daria pra citar: por exemplo, aquele diálogo do policial em "Qual Mentira Vou Acreditar?", dos Racionais ("O primo do cunhado do meu genro é mestiço, Racismo não existe, comigo não tem disso").
É difícil falar, porque é tanta música que eu gosto, escuto e tem temas parecidos, mas "A Vida é Desafio" é uma que encaixa pra muitas situações, principalmente essa. Depois do que aconteceu, eu escutei muito Câmbio Negro também. Tem muita música, não teve uma específica.

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E teve alguém do hip-hop que te ligou pra prestar solidariedade?
Sim, teve uma galera bacana. Acho que praticamente todos. Até porque eu não tenho rede social, não mexo com nada desses negócios, mas, através de amigos e de outras pessoas, acabaram chegando até mim. Então, praticamente todos acabaram abraçando também a causa, porque sabem da minha intenção e de como as coisas aconteceram. O Emicida, eu tenho falado com ele. É um cara bacana também que já fez uns vídeos legais, com umas entrevistas muito bacanas. Eu o acho um cara muito bacana, e [ele] tem me dado umas ideias muito boas sobre a visão geral da situação. Ontem, teve aqui o Batoré, o Batora da ConeCrew. Apesar de ter um estilo diferente, a origem é praticamente a mesma. Ele tem feito nos shows um freestyle sobre o assunto e me falou que o público tem aceitado e feito até um barulho.

No dia seguinte, a galera dos Racionais postou uma ilustração com uma foto sua com a camisa do Malcom X. Você tem lido as coisas que saíram?
Não muitas coisas, mas as coisas que eu acho que têm a ver, as coisas que estão abordando o assunto de uma maneira mais séria. Eu entendo o lado de quem trabalha com imprensa, porque o cara que está escrevendo é cobrado pra ter o resultado. E, às vezes, ele acaba escrevendo coisas que ele não queria - e, pelo emprego, o cara faz. Às vezes, o título é errado, eu não gosto, mas a matéria é bem feita. Só que muitas vezes, na pressa de ficar vendo muita coisa, tem muita gente que vê só o título e acaba formando a opinião na cabeça dela.

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Por que o hip-hop é tão importante para o negro no Brasil?
Foi. Eu não posso dizer que é ainda, mas como começou como uma forma de protesto que alcançava muita gente - mesmo não tendo o apoio da imprensa e da mídia. E quem tinha mais a protestar era o povo pobre, consequentemente uma maioria negra; acho que, por isso, acabou tendo essa raiz, esse lado mais forte, que hoje tem se desfeito, e eu acho muito legal que isso aconteça, porque o problema não é só da cor. Tem muitos outros fatores.

Você estava falando sobre a imprensa. Parece que os jornalistas estavam de prontidão para registrar o seu encontro com a Patrícia, mostrar o perdão e virar a página. Por que você não se prestou a esse papel?
Porque eu sabia que muita coisa que eu falasse seria usada contra mim. Tem quem me apoia, mas tem muita gente que não me apoia. Até mesmo negros que não me apoiam. Então, eu tinha que ter muito cuidado pra não dar esse tipo de brecha. Mesmo, às vezes, eu querendo falar. Se eu não falar pras pessoas certas, no momento certo, eu acabo prejudicando até a causa. Nem tanto por mim, porque eu tenho a vida praticamente resolvida, mas muita gente bacana me mandou mensagem, me ligou, me procurou e, quando me encontra na rua, fala sobre isso. Tudo isso acaba fazendo com que eu tenha mais cuidado também pra tomar essas decisões. Por isso, eu não tomo essas decisões sozinho, sempre tem o pessoal do Santos. A gente vê qual é o melhor caminho pra não ter problema, entendeu?

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Você destacaria algum jornalista ou algum veículo?
Talvez se eu falar de um, eu posso estar sendo injusto com tanta gente que escreveu, mas tem um em especial, que é um cara que eu era fã dele. Na verdade, ainda sou, porque o que o cara fez tá feito e ninguém tira, que é o Pena (o historiador Eduardo Bueno). Aquele que me xingou lá e falou aquelas coisas todas. Eu sou fã dele, por quê? Ele é um historiador fudido, um cara ferrado que tem aqui no Brasil sobre a construção e a história do país. Eu via muito, acompanhava os vídeos dele e esses negócios todos. E num dos vídeos, ele fala mais ou menos assim: 'Se a gente não quer cometer os mesmos erros que os nossos antepassados, a gente tem que conhecer a nossa história', entendeu? Aí, por paixão do futebol, uma paixão tola, ele me ofendeu e falou um monte de besteira, caindo em contradição com tudo aquilo que ele passa nos livros dele, que é livro escolar, livro didático e nos vídeos que ele faz.

Ele colocou as cores do time à frente do bom senso e de muitas outras coisas.
E um cara com a inteligência dele, com o preparo dele, não deveria ter feito isso. Porque se um cara desse pode fazer isso, imagina outra pessoa ignorante, que não tem o mesmo preparo que ele? E por que eu falo isso? E por que me cobraram muito esse negócio da punição, do perdão, de não sei o quê? Porque a gente já deixou passar muitas coisas. Sempre é no perdão: eu perdoo e fica por isso mesmo, e tudo mais. As coisas não funcionam assim, porque se a gente for deixar crescendo, for deixar crescendo, daqui a pouco vai ter cruz pegando fogo num lugar, vai voltar tudo de novo.

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Não é a primeira vez que você sofre preconceito em campo, né? Você comentou em uma entrevista que no Sul isso é quase normal, que você até comentava com os companheiros no vestiário. Como costuma ser o clima antes das partidas contra o Grêmio ou até contra o Inter? Você já vai preparado pra ouvir esse tipo de coisa?
Com a minha experiência, a gente vai pra ouvir de tudo. Não importa o que o torcedor fale, a gente vai fazer o nosso trabalho. Tanto é que, nos dois jogos que tiveram na Arena do Grêmio, eu fiz o meu trabalho normalmente, independentemente da situação toda que estava acontecendo, mas tem casos que a lei permite que você tome uma atitude, e aí eu acho importante tomar. Para, se não acabar, evitar crescer um movimento desse. E eu, naquele ponto, naquele dia, não tive medo de tomar uma posição.

Antes do jogo, você fazia o que os demais jogadores fazem, que é ignorar.
Na verdade, não é a maioria dos jogadores. O que acontece? O negro, desde a época da escravidão, foi doutrinado a quê? A não discutir, não reagir, fingir que não é com ele, achar graça do sarro, das piadas, porque assim ele vai estar inserido na sociedade, ele vai passar batido. Antigamente, ele não ia apanhar, não ia pro tronco e hoje ele mantém o emprego dele, ele mantém aquele círculo de amizade, que, às vezes, é até tolo sendo desse jeito. Sendo pacato, fingindo que não é com ele. Às vezes, até ele faz piada pra poder passar despercebido como se não fosse negro mais. O respeito vai além da cor; então, muita gente, por estar condicionada lá dos antepassados, dos avós, dos pais, veem dessa maneira. Porque o cara não consegue nem enxergar mais como racismo, como injúria racial. Ele não toma uma atitude nem tanto porque ele não tem coragem, mas porque ele já não entende que aquilo seja mais, ele não sabe mais. O pessoal de hoje em dia, os mais jovens, muitos não sabem nem o que se passou, por que que chegou. Hoje é até moda o cara falar: 'Eu sou negão, sou pagodeiro, sou do hip-hop e tal', mas não sabe todo o processo que levou pra chegar até ali.

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O que mudou nesse jogo? Foi a proximidade dessas arenas novas? Foi isso que te fez reagir?
Pensei depois com calma; realmente com essas arenas, não só naquele jogo do Grêmio, as ofensas, em geral, estavam muito próximas. E por mais que você seja profissional, que você já sabe que vai acontecer tudo aquilo, você se incomoda. Ninguém gosta de ser xingado, ninguém gosta de ser humilhado. Como tava aquele tipo de manifestação tão próxima e as pessoas ficavam me olhando, acho que aquilo foi me irritando e foi passando, e chegou uma hora em que não aguentei. Para a maioria das pessoas, eu exagerei, porque tadinha da menina e tadinho daqueles cinco. Mas não eram só os seis, os cinco. Era muita gente. Eram mais de mil pessoas. E eu falei: 'Pô, isso aqui não é do futebol'. Uma coisa é: eu tô lá no gol e eles estão me xingando, tentando me desestabilizar, mas agora o movimento que tava sendo criado atrás do gol ali era outro. Tanto que ficou comprovado no segundo jogo. Você entendeu? A torcida do Grêmio teve, não digo todos, mas a grande maioria teve uma oportunidade muito grande de mostrar que foi um fato muito isolado, e, mais uma vez, a ignorância mostrou pra todo mundo que não foi um fato isolado. Eles pensam daquela maneira mesmo.

O que fica muito claro é que você está preparado pra falar disso e, mais do que isso, está disposto a falar sobre o tema. Como você acompanhou o crescimento dessa história?
Foi difícil, porque o assédio foi muito grande. Logo depois do jogo, eu fui pro antidoping e [lá] tem TV. Nela, já tava repercutindo aquele negócio todo. Como é um assunto que, de certa forma, eu conheço bem, então pra mim foi mais tranquilo falar. O mais difícil mesmo foi conter a euforia da notícia. Porque muita gente queria a notícia, o ibope e tudo mais. Então foi mais difícil conter o assédio da imprensa do que falar, porque é como falar de futebol: é um tema que eu conheço.

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Quando começaram as ofensas, o que passou na sua cabeça? Você teve vontade de chorar, vontade de pegar alguém e capotar no soco? O que rolou?
Às vezes, se você não der uma de louco, você não é ouvido. Então, quando começou aquela manifestação, eu tive muita calma, não tava irado. Porque eu falei: 'Bom, na quantidade e no volume que tá, pelo jeito que tá acontecendo, vão filmar. E vai ter todo um processo pra poder resolver isso, pra poder culpar quem for culpado'. Então, eu tava muito tranquilo, porque eu tava me sentindo na razão.

As suas ações ali também sugeriam isso, né? O jeito que você apontava, como você gesticulava…
Mas aí o que acontece? Quando fui expor a situação para o árbitro, ele falou pra mim o contrário. Quando ele inverteu a situação e eu voltei pro gol de frente pro torcedor, eu vi que eles comemoraram.

Acharam que não ia dar nada.
Na minha cabeça, já veio assim: 'Pô, igual antigamente'.

Igual a um negro escravizado ou recém-liberto?
Isso, o cara tava certo, mas as pessoas diziam que ele tava errado e ficava por isso mesmo. Aí veio esse negócio na minha cabeça, e eu fiquei mais puto e revoltado por isso. Porque eu não ia sair do gol, ir lá no árbitro e levantar uma questão dessa do nada.

Depois disso, então eles continuaram mais ainda?
Sim. Tanto que as imagens que foram pegas, se eu não me engano, foram depois que eu falei com o árbitro, porque aí eles se sentiram. Tá liberado, se ferrou. Talvez por isso eu tenha perdido um pouco a linha.

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Você teve medo de apanhar ali?
De apanhar, não. Eu não me senti acuado.

E depois do jogo, você teve medo de alguma reação?
Eu fico mais receoso pela minha família, porque não dá pra gente medir o nível do fanatismo do torcedor. Não pode desacreditar de nada, só que a gente já toma os cuidados do dia a dia.

O que te incomodou mais: o que aconteceu em campo ou o ódio que muita gente incorporou depois? Muita gente falou que você estava tentando se promover com isso.
Bom, várias coisas me incomodaram. O que aconteceu no campo foi o que menos me incomodou, porque eu sabia que aquilo teria uma punição, aquilo ia ser resolvido, como tá sendo resolvido. O Grêmio foi punido, a torcida foi punida, as pessoas que foram flagradas ali estão sendo punidas. Se é leve, se não é a pena, se vai ser só chamada a atenção, se vai ser cesta básica, não compete a mim, não sou eu que resolvo. Uma das coisas que me incomodou mais é que muita gente tava me colocando como coitado. Em momento algum, eu falei ou me comportei como um coitado, como um cara que tava sofrendo, querendo me aproveitar da situação como um coitadinho. Tanto é que, até na entrevista do Fantástico , eu falei que pra mim é muito mais fácil. Tenho um bom emprego, tenho um carro bonitinho, tenho um salário bom. Agora, o problema é pros outros que não têm como se defender. Não têm como reagir, bater de frente. Então, me incomoda bastante essa situação. Se você não tem nada produtivo pra falar, não entra no assunto. Ou se vai entrar, pelo menos vê. Eu vi outros jogadores de futebol, que são amigos meus, fazendo comentários que não tinham nada a ver com a história. Vi treinador. Teve jogador que falou assim em programa de televisão: 'Pô, mas eu e os - não vou citar os nomes dos jogadores -, a gente se chama de macaco. Uma coisa é você ter afinidade e amizade e você brincar, outra coisa é você não conhecer a pessoa e usar isso pra diminuí-la. E, até nesse programa, ele falou assim: 'Ó, o apelido dele é Aranha, é pior do que macaco´. Não é. Porque que não é? Porque esse tipo de apelido era usado porque o negro não era considerado como ser humano, ele não era considerado gente. Ele era igual a um cachorro, às vezes até menos que qualquer animal, um porco. Agora o cara que escuta esse tipo de xingamento e acha normal e acha engraçado, esse cara tá errado. Esse cara não sabe da história dele. Outra coisa é você ter amizade, estar no círculo de amigos e você brincar um com o outro.

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Que ainda assim pode ser considerado mau gosto.
Mas é compreensível, porque você tem afinidade suficiente. Se eu tenho amizade com um cara branco e chamo: 'Ô, seu alemão', e o cara 'Ah, seu negão, seu tiziu'. É uma brincadeira, porque você tem afinidade com aquela pessoa.

Nas imagens do jogo, dá pra ver que alguns jogadores do Santos vão em sua defesa. Como foi o pós-jogo?
Depois do jogo, eu fui pro exame antidoping.

Aí separa, né?
Separa. Então, eu não tive contato. Fui ter contato depois só no hotel, bem mais tarde. O pessoal tava lá na janta comentando, mas não tinha - não tem - conhecimento de como as coisas funcionam, como é, como não é. Pra muitos, é assim: 'Ah, ele foi xingado e denunciou'. E aí eu não entro em debate, em querer dar aula de nada, porque eu não sei mais do que muita gente. Se eu falar que eu não sei mais que ninguém, eu tô mentindo, mas dava pra perceber que os caras tavam sentindo pelo que aconteceu comigo, que tavam preocupados e, mesmo sem entender bem os motivos, tavam do meu lado, me apoiando.

No time do Grêmio, tem o Zé Roberto, Fernandinho, Biteco, Wallace e outros jogadores negros. Como eles se comportaram depois? Alguém falou com você?
Não, não falei com nenhum deles. Não me procuraram também, não procurei nem saber nada. Até porque eles estão no dia a dia na cidade, e é aquele negócio que eu te falei do emprego, da convivência social. Às vezes, uma palavra de algum desses jogadores, a gente não sabe o que poderia acontecer. Tanto no trabalho quanto fora do trabalho, então não se manifestaram.

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Talvez por segurança?
Por segurança também.

No seu caso, foram indiciadas quatro pessoas, a menina (Patrícia Moreira) e mais três. Dava pra ter punido mais gente? Se você olhasse depois, você reconheceria mais pessoas que te ofenderam?
Não sei, tanto que na delegacia eu não quis. Mesmo o cara me mostrando fotos, eu não quis apontar ninguém, mesmo com alguns eu achando que lembrava, que era. Não quis apontar ninguém, porque não quis ser injusto com ninguém. Na minha cabeça, naquele momento, valia mais a ação de mostrar que aquilo era errado e que tem punição do que punir alguém especificamente. É que algumas pessoas foram muito infelizes de aparecerem nas imagens e pagaram o pato por geral.

O que você espera que aconteça com essas pessoas?
Bom, não sei o que vai acontecer. Se eu falar que eu espero que não dê em nada, eu tô mentindo; tem que ter a punição, porque é assim que as coisas andam. Não tem esse negócio de conscientização, porque todo mundo já é consciente do que pode e do que não pode. Todo mundo sabe que racismo é crime. É punição pra evitar a prática. Em momento algum, eu falei que a mulher era racista, sempre falei que ela teve uma atitude e foi flagrada. Não precisava eu dizer, todo mundo viu. Eu escuto muito: 'Ah, o Aranha ferrou a vida da garota'. Não, quem ferrou com a vida dela foi ela mesma. Tanto que ela mesma disse que, quando o irmão dela ligou, falou: 'Pô, que é que tu fez da sua vida?'. Não foi: 'Pô, você viu o que o Aranha tá fazendo com a sua vida?'. Isso foi palavra dela. Por isso, depois, eu falei: 'Ela tá dando entrevista, tá indo em programa de televisão e tá se complicando'. Ela errou lá; na mesma hora, vai na rede social, já pede desculpa, já resolve isso aí, cabô. Já ficou mais do que provado que ela não é racista, mas ela mesma disse que foi na onda e teve essa atitude e se ferrou, porque se todo mundo for usar a onda como desculpa pra fazer as coisas.

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Depois do jogo, rolou uma avalanche de ódio e foram muito agressivos com ela. Ameaçaram-na de estupro e teve até um incêndio em sua casa. O que você acha dessa intolerância?
Em todas as entrevistas que dei, fiz questão de dizer que um erro não justifica o outro e que a gente não poderia fazer justiça com a própria mão, porque estaríamos sendo errados também. Daria uma guerra. Se têm leis, é pra isso, pra gente não precisar fazer justiça com as próprias mãos. Achei de mau gosto, burrice da parte de alguns. E muitas das ameaças que ela tem recebido não foram por causa do racismo, da injúria somente; foi porque ela, numa entrevista numa emissora que tem uma audiência muito grande, falou que era Inter e se vendeu por uma bicicleta. Cê tá entendendo? Quando você não tem noção das coisas que você fala e vai despreparado na televisão pra falar. Aí você imagina: tanto o torcedor do Inter quanto o do Grêmio criaram uma birra com ela. Você não tem coisa boa pra falar, não fala.

Muita gente destacou a sua coerência no discurso; só que, hoje em dia, isso não é muito comum em jogadores no Brasil. Você se vê como uma exceção dentro do esporte?
Eu conheço vários caras bons de conversa, de entendimento.

Quem são esses caras?
Muita gente, cara. Mas o que acontece? É o que acontecia comigo: eu tenho recebido muitos elogios dessa parte, porque as pessoas ouviram e viram o Aranha fora do futebol. Fora do esporte. Não tem como eu, numa entrevista de esporte falando de futebol, falar de outras coisas. É por isso que não quis participar, não fazia sentido ir em programa de esporte falar de um tema que extrapolou, que não era mais de esporte. Não quero ser conhecido no esporte mais do que pelo o que faço dentro de campo, não dá pra misturar. Lógico que uma coisa tá ligada à outra, mas o foco principal não é o futebol. Uma coisa é você ir a um programa de televisão que não é um programa de esporte, em que eu não vou levar vantagem na minha carreira: pra mim, tudo bem. Até porque se você não explica, se você não fala, vem outro e fala besteira. E aí aquela besteira prevalece.

Que foi um pouco do que aconteceu no segundo jogo com os jornalistas tentando te pressionar a dizer que aquela era uma vaia comum, né?
Sim, mas só que a maioria ali é repórter de esporte. Apesar de ter formação, de ter estudo, eles estão preparados pra coisa de jogo. Só que o que acontece? Como o assunto não era do jogo, eu respondi de uma maneira que não era de jogo. E isso aí, às vezes, agrada uns e desagrada outros. No meio do futebol, no meio da mídia, você pode sofrer retaliação. Depois a sua nota no jogo pode não ser tão boa, a sua defesa pode não ser tão valorizada e o seu erro pode ser supervalorizado. Até nisso aí eu tive que pensar muito se eu ia aguentar.

Mas coincidentemente nos dois jogos contra o Grêmio você jogou muito bem. E a cada defesa que você fazia no primeiro jogo enfurecia ainda mais os caras, e no segundo jogo a mesma coisa. Nesse caso, não teria como diminuir a sua nota.
Era um jogo muito visado. Era o jogo da rodada por tudo o que tinha acontecido e porque era notícia, porque a gente vive hoje num momento em que a desgraça tá rendendo, a desgraça tá vendendo jornal e dando ibope, e, nesse momento, não tinha acontecido nenhuma desgraça maior, felizmente, pra cobrir aquilo. Então eu sabia que ia ser explorada aquela situação.

E no segundo jogo, a torcida te chamar de branquelo é tão racista quanto te chamar de macaco. Não é o que se fala, mas a intenção…
Isso, a intenção. Tem uma situação que define bem isso. No avião, teve uma mulher que falou pra um amigo meu: 'Pô, o Aranha achou ruim de terem chamado ele de macaco, mas o macaco é um bicho tão bonitinho'. Ele falou pra ela: 'Então tá, vamos começar de novo. Tudo bem, sua vaca, sua piranha, sua galinha? Você vai gostar?' Ela respondeu: 'Não, aí não'. 'Mas por quê? São animais bonitinhos também'. Não é o animal, é a maneira como você usa aquela palavra pra ofender alguém. Aí ela repensou. Às vezes, precisa ir alguém lá e mostrar o sentido certo das coisas para as pessoas não tomarem um rumo diferente.

Tivemos algumas declarações, digamos, infelizes. O Felipão falou, o vice-presidente do Grêmio foi irônico ao falar do caso, o Peninha, que você já citou também, foi infeliz e o próprio Pelé. Como você viu isso? Eu sei o quanto é difícil falar do Pelé sendo jogador do Santos, mas o que você achou?
Cada pessoa dessa é uma situação: no caso do Pelé, ele é um cara que eu conheço de ir na casa dele almoçar, posso dizer que a gente tem uma amizade. Mas o que eu entendi disso e até depois em conversa: ele achou, como eu também acho, que não era necessária aquela situação toda, e a situação tomou toda essa dimensão por causa das redes sociais e tudo mais. Se o árbitro tivesse me ouvido: 'Ó, para a partida, vai lá'. Ou relata na súmula, acabou. As pessoas seriam punidas, ia dar na mesma coisa sem todo o circo. Foi nesse sentido. Aí expliquei pra ele. Não é que briguei com torcedor, eu extravasei por tudo o que aconteceu. Só que ele não tava lá e ele não sabia de todos esses detalhes, e por isso ele deu aquela declaração. O Felipão, eu fiquei surpreso, porque logo depois a assessoria do Grêmio mandou uma carta assinada por ele em nome de todos os jogadores pedindo desculpa por tudo o que aconteceu, e logo depois ele falou aquilo. Ficou uma interrogação, mas cada um tem o direito de pensar o que quer, tanto é que não foi uma declaração dele, falaram que o ouviram falando. O vice do Grêmio é outro que perdeu uma grande oportunidade de se mostrar superior à situação. Ele poderia sair, tanto ele quanto o Grêmio, poderia ter saído muito bem dessa situação, aceitando o que aconteceu e se mostrando contra aquela atitude. E não foi o que eles fizeram; talvez por isso ficou tão ruim pro time e por isso também tomou essa proporção toda. Eles queriam lutar contra as imagens, contra o que todo mundo tava vendo.

E fora de campo: você costuma sofrer preconceito? Como ele aparece?Tem em todo canto, em todo lugar. Às vezes, a pessoa nem sabe que tá passando ou que está cometendo, mas acontece em todo lugar. Quando a pessoa entra numa loja de tênis e o atendente olha a sua roupa, olha o seu tênis e vai te atender de acordo com o que você tá vestindo.

Ou quando você entra no mercado e fica o segurança te seguindo.
Isso, são várias situações. Comigo acontece muito, como eu não vou muito em lugar público, em prédio, acontece de as pessoas não darem bom dia, de dificultarem a minha convivência no prédio até chegar ao ponto de eu querer mudar. Vaga de garagem, coisas pequenas que são dificultadas mesmo.

Da sua infância em Pouso Alegre até aqui, você tem ideia da quantidade de vezes que sofreu preconceito racial?
Ah, não tem nem como contar. Foram muitas vezes. De você tá vindo na calçada e a pessoa atravessar pro outro lado. E o mais engraçado disso, pra você ver como vai passando de pai pra filho pra neto e tal: muitas vezes, a pessoa que atravessava a calçada pro outro lado não tinha dinheiro nenhum, ela não era rica. Porque se fosse rica, ela não tava andando a pé ali, tava dentro do carro. Já é um hábito, um vício, um preconceito que ela carrega, às vezes sem saber que tá carregando. De atravessar a calçada, de segurar a bolsa. Às vezes de você sentar na poltrona de um ônibus e ficar dois, três bancos vazios do lado. Tem mil maneiras e, às vezes, eu nem culpo, porque a pessoa faz sem saber o que tá fazendo; algumas sabem o que estão fazendo, mas já é um vício.

Você acha que conseguiu ajudar nessa questão? Acha que mais gente terá consciência da postura?
Acredito que, depois daquilo que aconteceu, teve um debate. Esse debate foi geral, não foi na classe A, B, C. Foi com pessoas de todas as cores, de todas as religiões, todas as classes sociais. E, nesse debate, as pessoas vão relembrando aquilo que é correto e o que não é correto. 'Pô, será que eu tô fazendo alguma coisa que não tô percebendo? Pô, não cabe mais esse tipo de atitude que eu faço. Não vou fazer isso perto do meu filho, porque vai ficar feio'. Eu acho que [se] ganhou muito com isso daí e ganhou também em algumas entrevistas que eu dei, como essa que eu tô fazendo agora, porque quem lê vai começar a enxergar com outros olhos as coisas. Não tô dizendo que eu sou o dono da verdade, mas ele vai ter uma outra opinião, uma outra visão, e ele vai conflitar com os conhecimentos que ele tem e vai tirar as suas conclusões. Isso acaba ajudando no crescimento de todo mundo.