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'Cada parte de mim mudou nas mãos deles': a história de uma ex-escrava sexual do ISIS

A invasão do vilarejo de Nadia Murad em Sinjar pelo ISIS foi o começou de vários meses de estupro, abuso e cativeiro. Agora, a yazidi está livre e faz um lobby feroz pela sobrevivência de seu povo.
Todas as fotos por Christopher Bethell.

Esta matéria foi originalmente publicada no Broadly.

Nadia Murad tinha apenas 19 anos quando seu vilarejo em Sinjar, norte do Iraque, foi capturado pelas forças do Estado Islâmico. "Eles chegaram em 3 de agosto e o emir do ISIS nos disse que se nos convertêssemos viveríamos, mas ninguém se converteu", ela começa.

"No dia 15 de agosto às 11 da manhã, as pessoas da área foram mandadas para a escola local, que tinha dois andares. Eles levaram mulheres e crianças para o primeiro andar, e os homens ficaram no térreo. Meus sobrinhos — estávamos tentando levá-los conosco. Eles fizeram os garotos levantarem os braços — se tivessem pelos [nas axilas] eles tinham que ficar no térreo, se não tivessem podiam subir."

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Murad, sua mãe e suas irmãs assistiram da janela, junto com centenas de outras mulheres e crianças do vilarejo yazidi de Kocho, enquanto o ISIS massacravam seus homens e garotos. "Podíamos ver lá fora — eles estavam atirando nos homens e também os decapitando. Também levaram alguns embora em ônibus."

"Meus seis irmãos morreram assim."

Entrevistando Murad, você rapidamente se dá conta que está registrando o testemunho de terríveis crimes de guerra. Os tradutores muitas vezes ficam emocionados demais para continuar. Os que falam kurmanji, seu dialeto curdo nativo, geralmente são da mesma comunidade yazidi decimada pelas mãos do ISIS.

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No dia 3 de agosto de 2014, as tropas curdas deixaram Sinjar e, nas palavras da princesa yazidi Oroub Bayazid Ismail, "nos deixaram à própria sorte". Nos dois anos seguintes, essa sorte envolveu a escravização de aproximadamente 6 mil pessoas, execuções em massa de milhares de homens e uma campanha nefasta de estupro e tráfico sexual. Um relatório da ONU de março de 2015 afirma que esses atos podem constituir genocídio contra o povo yazidi.

Murad estava entre as milhares de mulheres mantidas como escravas sexuais pelos jihadistas. Hoje, ela mora na Alemanha e testemunhou no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a tortura e abuso que sofreu como prisioneira do ISIS. Em janeiro, ela foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho na conscientização sobre o sofrimento yazidi.

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Antes que o ISIS invadisse Kocho, Murad vivia numa casa grande com sua mãe e 12 irmãos. Seu pai faleceu em 2003. "Quanto eu era bem mais nova, éramos muito pobres, mas quando meus irmãos começaram a trabalhar, a vida melhorou. Tínhamos um grande quintal — metade do quintal era nosso, a outra metade era dos nossos animais", ela lembra.

Murad perdeu algo em torno de um ano entre o ensino fundamental e o colegial, já que sua mãe não queria que ela viajasse desacompanhada até a cidade vizinha para estudar. Quando uma escola de ensino médio abriu em Kocho, ela frequentou as aulas até os 17. "História era minha matéria favorita — eu era muito boa em memorizar o que lia. Mas agora minha memória não é a mesma, eu confundo as coisas na minha cabeça."

Nadia Murad em Kosho, antes da invasão do ISIS. Foto cortesia de Nadia Murad.

A última memória dela da mãe vem daquele prédio escolar. "Não ouvimos mais notícias dela, ou das outras 80 mulheres mais velhas que foram separadas de nós depois que mataram os homens." A proteção de tela de seu celular — que está quase sempre grudado em sua mão — é uma foto da mãe vestida em trajes tradicionais para um festival yazidi.

"Quando Sinjar foi libertada, eles acharam uma cova com 80 mulheres, mas ela ainda não foi analisada — não fizeram investigações, então eles não sabem com certeza se ela estava lá." Até agora, investigadores da Yazda, um grupo formado pela diáspora yazidi e seus simpatizantes, verificaram 19 das 35 covas coletivas encontradas em Sinjar.

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Eles estimam que apenas 1.500 dos 6 mil restos mortais encontrados foram identificados, ou estão propriamente preservados.

Encontrei Murad pela primeira vez em julho passado, quatro meses depois que ela conseguiu escapar de seus captores em Mossul. Ela visitou o Reino Unido com duas outras ex-prisioneiras e a ex-parlamentar iraquiana Ameena Hasan Saeed, que a ajudou a fugir do Estado Islâmico. Falando anonimamente, ela descreveu em detalhes como foi abusada, estuprada e vendida entre as fileiras das tropas do ISIS, suportando oito meses em cativeiro e 13 donos que a mantinham trancada, faminta e desorientada.

Na época, ela me mostrou as marcas de queimaduras de cigarro feitas pelos soldados de seu primeiro dono, um comandante chamado Salman. Ele mandou seus homens a estuprarem coletivamente depois de sua primeira tentativa desastrosa de fuga. "Achei uma pequena janela, então subi e pulei por ela do segundo andar, mas os guardas de Salman me encontraram e me levaram de volta para ele. Eu podia ter morrido na queda, e depois de tudo, eu quis ter morrido."

Murad conseguiu fugir quando seu último dono, um motorista de ônibus do ISIS, foi comprar uma abaya para que eles pudessem viajar para a casa dele nos arredores de Mossul. Vendo a chance, ela saiu correndo e começou a bater em portas, finalmente encontrando uma família que a deixou entrar. Ela ficou com eles naquela noite, antes de fugir usando a identidade da filha deles para passar pelos primeiros postos de controle. Depois ela utilizou uma balsa para evitar as linhas de frente do ISIS e encontrou o irmão em Tel Afar, noroeste do Iraque.

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Após a fuga, ela morou em uma dúzia de campos de refugiados superlotados nos arredores de Dohuk, Curdistão. Sob uma cota especial gerenciada pelo governo federal de Baden-Wurtemberg, Alemanha, ela conseguiu um visto alemão em setembro do ano passado. Hoje ela mora numa casa confortável num local secreto perto de Stuttgart, junto com uma de suas irmãs. O programa incluía apoio psicológico para ex-prisioneiros, mas Murad parou depois de duas sessões.

"Ficar falando sozinha numa sala não vai me ajudar, nem a minha família", ela diz. "Minha outra irmã e meus três irmãos sobreviventes ainda estão no acampamento. As condições são ruins — comida pobre, sem água, sem eletricidade. Quatro cunhadas continuam com o ISIS, junto com os filhos. Falar com uma pessoa não vai ajudar nada disso."

Viajando com Murad Ismael, o cofundador e diretor do Yazda, ela passou os últimos três meses viajando pelo Oriente Médio, EUA e Europa, contando sua história para líderes políticos e fazendo lobby para que eles a apoiem. A partir disso ela se tornou a porta-voz do genocídio yazidi e uma figura-chave do movimento pela liberdade das estimadas 3.500 mulheres e crianças que ainda vivem como escravas sob a bandeira negra do ISIS.

Semana passada, a acompanhei enquanto ela contava sua história para um grupo de parlamentares chocados em Westminster. "Decidi falar em público porque quero contar minha história, quero contar o que aconteceu comigo e o que ainda está acontecendo com todas as nossas mulheres nas mãos do ISIS", ela me contou depois do encontro. "Aconteceu comigo. Fui vítima dessas atrocidades e aonde quer que eu vá as pessoas têm simpatia por mim, mas ainda não há um resgate em progresso."

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"Ela ficou muito famosa e pessoas a apoiam em toda parte, por ela ter passado por todas essas coisas que os yazidis tiveram que aguentar no último ano. Não sei como ela consegue ser tão forte, mas ela é e temos muito orgulho dela", diz Maher Nawaf, um ativista do Yazda do Reino Unido.

Murad até se tornou uma espécie de heroína popular, com fan art dela aparecendo na internet e grafitada em vários lugares do Iraque. Centenas de milhares de pessoas assistiram o vídeo viral dela falando no Conselho de Segurança da ONU. Na comunidade yazidi, há o sentimento de que ela experimentou várias facetas do trauma encarado pela minoria religiosa.

Fan art de Murad, tirada da página dela no Facebook. Imagens por Kamal Akharaqi e Al Amin, cortesia de Nadia Murad.

"O sobrinho dela — ela me mostrou uma foto dele — tem oito anos", diz Nawaf. "E o ISIS fez lavagem cerebral nele num acampamento para 'filhotes'. Ele estava ameaçando matar o próprio pai. Então ela passou por tudo que está acontecendo conosco — sua mãe e seus irmãos mortos, suas cunhadas ainda em cativeiro e os meninos da sua família foram sequestrados e treinados como assassinos pelo ISIS."

Apesar dos ativistas yazidis fornecerem informação detalhada da localização de muitos reféns, que ainda conseguem manter algum contato através de seus celulares, não houve tentativas de resgate pelas forças internacionais no Iraque ou tropas peshmerga.

Nesse vácuo, ativistas têm montado suas próprias redes de contrabando, trabalhando com taxistas disfarçados que se arriscam muito para tirar mulheres e crianças do território do ISIS, e cujo trabalho não sai barato. Resgatar o sobrinho de Murad que sofreu lavagem cerebral é algo improvável, mas há muitas pessoas de sua família estendida e amigos da comunidade que poderiam ser libertados, ela insiste.

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Fotos torturantes que mostram os prisioneiros ainda com vida e enviadas pelos soldados do próprio ISIS para as famílias, é o que a faz continuar. "Me mostraram uma foto de uma garota de 13 anos ontem", ela disse aos parlamentares do Reino Unido, "e eles a vestiram de maneira a apresentá-la sexualmente".

"Estou aguentando um dia de cada vez", ela me diz no dia seguinte, enquanto comemos kebabs no centro de Londres e ela me mostra fotos de entes queridos em cativeiro em seu celular. Relaxando entre a equipe do Yazda, ela diz que gosta de escrever os discursos, mas que ainda luta para encontrar palavras que descrevam o que ela passou. Nos divertimos com a louca variedade das obras dos fãs dedicadas a ela.

"Me sinto muito velha agora. Tenho 21 anos — sim, sei que sou jovem. Mas parece que cada parte de mim mudou nas mãos deles: cada fio do meu cabelo, cada parte do meu corpo ficou velha. Fiquei gasta pelo que eles fizeram comigo, e agora sou diferente de todas as maneiras. Nunca imaginei que essas coisas pudessem acontecer, e não consigo descrevê-las de um jeito que você consiga entender."

Ela está concorrendo com o Papa Francisco, o time de ciclismo feminino afegão e o economista de desenvolvimento sustentável Herman Daly ao Prêmio Nobel. Ela não consegue se imaginar ganhando ainda, mas é graciosa sobre a indicação, e sorri timidamente quando a parabenizo pela conquista.

"Tenho muito apoio do mundo todo. E sei que ser indicada para um Prêmio Nobel é uma coisa muito boa. E claro que isso ajudaria muito na minha causa para libertar os que ainda estão em cativeiro. Mas mesmo se eu ganhar o Nobel, vou recebê-lo com o coração partido."

Tradução: Marina Schnoor

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