No sol a pino das 13 horas do último sábado de novembro, o povo da terra da pamonha se aglomerava no largo da Santa Cruz, próximo à sede da torcida Esquadrão, a organizada do Esporte Clube XV de Novembro – para os mais íntimos, o XV de Piracicaba. Confiantes com o favoritismo, a "maior do interior" prometia uma invasão a cidade de Araraquara, a 140 km dali, para prestigiar a final da Copa Paulista 2016 entre o XV, e o rival e anfitrião, Ferroviária.
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Com dois gols de vantagem no primeiro jogo, o XV estava com uma mão na taça. Mas, na Arena da Fonte Luminosa, o embate não foi nada fácil. Por noventa minutos – e mais uma disputa de pênaltis – sofrimento e a ansiedade tomaram conta dos quinzistas. Tropeçando feio no campo encharcado, os jogadores chegaram a tomar três gols e, quando tudo parecia perdido, no segundo tempo, após escanteio, um milagroso gol levou a decisão para os penais. No fim, ao converter quatro tiros, o XV conseguiu a tão sonhada vaga na Série D do Campeonato Brasileiro. Os torcedores, claro, foram ao delírio.
Antes da vitória, porém, uma série de desventuras e intempéries cruzaram o caminho da torcida. Pneu furado, chuva de granizo, muita bagunça, boa prosa, oração coletiva marcaram a história com final feliz. Tive a honra de participar das conversas e fotografar a dramática epopéia quinzista, detalhada a seguir.
A partida espremida
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Foi a partir do contato com Gema que entrei nessa trip futebolística rumo a final da Copa Paulista e acabei indo parar no ônibus número 1: o mais frenético e respeitado da caravana, lotado com os baderneiros-de-cara-feia-mais-coração mole que já conheci.
"Espero que não se importe com a falta de conforto e bagunça, o pessoal vai todo meio amontoado mas faz parte. Você vai gostar", explica o Gema, que mal sabia que era isso mesmo o que eu procurava. Entre as mais engraçadas paródias em cima de clássicos brasileiros, que ficavam entre Tim Maia e RPM, a lotação saiu de Piracicaba cantando com o "R" bem puxado os hinos tradicionais da torcida acompanhando os ritmos dos socos no teto do busão enquanto os mais empolgados cantavam com meio corpo para fora da janela.
Entre mulheres e homens, mães e filhos, casais e vovozinhos, a impressão que ficou nos primeiros 10 minutos era a de que, não importava o quão diferente fossem, nem de onde vinham, naquele momento eles eram quase parentes, amigos íntimos de longa data. E não demorou muito pra que eu entrasse numa roda e conhecesse algumas histórias.
"Entrei pra torcida faz um ano. Antes disso eu já acompanhava o time, sempre fui torcedor do XV. Mas quando entrei para Esquadrão a coisa mudou", conta Felipe Grisotto, de 32 anos. "Todo jogo é assim. A gente tem um objetivo em comum, que é voltar para a elite do futebol brasileiro. Isso que você vê agora é fruto da união pra viver o futebol além dos 90 minutos. O XV me influencia em tudo. No jeito que ando, que falo, que me visto. Faz parte da minha vida, né."
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Boa parte dessa referência que a Esquadrão representa para os torcedores, de acordo com Gema, foi construída com muito esforço. "Há um pouco mais de 10 anos o clube vivia uma fase péssima. Estava quase falindo. Ao mesmo tempo, aos meus 16 anos, eu tinha o sonho de ver uma torcida vibrante, do jeito que a história do time merecia. A gente se reuniu em umas 15 pessoas e começamos a fazer de tudo pra reverter esse cenário", lembra.
O líder da torcida reforça que as maiores ações e conquistas foram sempre voltadas para a política, como uma maneira de resgatar a tradição do time e melhorar a administração do clube. "A gente pressionava e intervinha de várias formas para que tudo começasse a andar", diz. "Fizemos rifa, feijoada – muita campanha para levantar a moral do time."Usando sua própria casa como sede, Gema lembra de agradecer seus pais. "Se não fosse por eles não existiria o que temos hoje. Temos um barracão agora, mas eles acreditaram e apoiaram as nossas ideias no começo. Com essa força, em 2003 passamos a viajar acompanhando o time, mesmo em uma quantidade pequena de torcedores", recorda.
Pneu furou? Abre a cerveja
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Tudo pronto e o motora botou todo mundo pra dentro – "fica tranquilo que agora vai". E foi. Mesmo com o velocímetro quebrado, travado no zero, dava pra sacar que o ônibus não passava dos 100 quilômetros por hora nem na descida. Com paciência, chegamos sãos e salvos ao encontro de todas as caravanas com a escolta da Polícia Militar. Foi o tempo de tirar a água do joelho e todo mundo já estava invadindo o município de Araraquara.
Bastante perceptível, o calor dentro e fora do bumba era o sinal claro de que ia cair um pé d'água daqueles. Minutos antes de chegarmos ao estádio rolou até granizo. A PM passeou um bom tempo com o comboio até a situação melhorar, dando voltas na região da Arena da Fonte Luminosa. O que não foi motivo pra torcedor algum perder a cabeça: eles estavam é se refrescando. Quanto mais água caía, mais gente abria a janela e gritava para avisar que era o XV quem estava invadindo a cidade.
No céu e nos rostos, muita, muita água
Em menos de 10 minutos de partida o sonho quinzista ameaçava se despedir. Kelvy marcou o primeiro gol da Ferroviária aos dois minutos numa sobra de escaneaio. Aos sete minutos, Matheus Pasinato, o goleiro do XV, foi posto à prova novamente e não conseguiu evitar o chute cruzado do atacante Bruno Lopes – foi um frango bem feio, o que irritou muitos torcedores. Cruzando a arquibancada, os murmúrios se repetiam: "não pode ser", "o XV não vai dar dessa de novo", "toda vez é a mesma coisa". O medo de perder outra vez uma final estava estampado na face de quem assistia e torcia pelo time de Piracicaba.
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Ignorando todas as condições desfavoráveis, um aglomerado em volta do Gema não parava de gritar. A força que o time precisava para ganhar vinha da voz, do coração e saia bem do meio da arquibancada, onde estava concentrada a Esquadrão. Logo após o intervalo, a difícil tarefa de incentivar o time naquela situação continuou no mesmo ritmo até sair o terceiro gol do adversário aos 23 minutos do segundo tempo. Em uma cobrança de falta, Zé Mateus, do XV, deu uma cabeçada mais que inoportuna na bola. Gol contra.
O desespero pairou. Teve bastante gente que encheu os olhos de lágrimas. No meio da multidão, estava o estudante Guilherme Passarelli, de 17 anos. "Já vi três finais, mas em 2008 assisti a derrota para o Sorocaba na final da Copa Paulista. Perdemos o título no último minuto de jogo com o Barão [de Serra Negra] lotadíssimo", conta Passarelli, que era criança na época, e foi chorando do estádio para casa sem parar. "Com o terceiro gol eu vi um flashback, senti o pesadelo da última final chegando perto", conta.
E foi bem assustador mesmo. A sensação de ver tanta gente chorando e se lamentando em uma comoção geral foi marcante. Achei que o XV faria mesmo o mais difícil – perder mesmo com gols de vantagem. Mas, como todo marinheiro de primeira viagem, minha opinião não merecia espaço e de repente a sinergia entre o povo de preto e branco ganhou força novamente, e as vozes se multiplicaram. De novo a Esquadrão esquentou a torcida, mas dessa vez com muito mais força – como quem usa seu último suspiro.
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"Às vezes sinto que baixa o santo em mim", brinca Gema, que estava em pé, em cima de um corrimão, apoiado em dois parceiros. Ele gritava: "agora é a hora da virada. O XV é o time da virada. Com o XV é assim". E entre o coro e o choro tinha também quem orasse. Ante a essa manifestação, uma onda arrebatadora atingiu a arena em favor do alvinegro.Aos 27 do segundo tempo, o zagueiro Rodrigo, do XV, fez de cabeça o gol de empate por soma de pontos nas duas partidas de final. Acompanhando os torcedores, o time não mediu esforços para resistir e fechar o gol até o fim, entregando a decisão do jogo para os pênaltis. Vinha mais sofrimento por aí.
Orações e pênaltis
Assim que a taça foi levantada na cerimônia de premiação, Celso Christofoletti, presidente-executivo do XV de Piracicaba, correu em direção a torcida e, em forma de reconhecimento e gratidão, arremessou sua própria medalha para quem quer que estivesse na arquibancada alvinegra. "Se não fosse a torcida abraçando o time nas horas mais difíceis não haveria vitória. Depois do terceiro gol eu fiquei desacreditado, mas não podia deixar a peteca cair", conta Guilherme Schmidt, 20, o Shime. "Se sentir acolhido por um bando de louco que acredita nas mesmas coisas que você, não tem preço. Esse jogo me marcou muito. Fiquei com o coração na boca, mas depois vi cenas de felicidade que nunca vou esquecer."
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Com o título da Copa Paulista 2016, o time ganhou acesso ao primeiro degrau de uma escada bem grande: a série D do Campeonato Brasileiro 2017. Ainda que na quarta divisão, o Nhô-quim fez a alegria da torcida, que já aguarda pelas viagens Brasil afora.***Confira, abaixo, mais fotos da epopéia da torcida quinzista: