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Como Ayn Rand se tornou a ‘Pixie Dream Girl’ Sociopata dos Líbers

Um dos maiores talentos de Rand não está apenas como a mãe suprema do Objetivismo, mas também pela capacidade de fazer o papel da 'garota descolada' nas mentes masculinas permeadas por repulsa e desejo contra às mulheres.
Ilustração por Heather Benjamin.

Ideal, de Ayn Rand, já era uma peça ruim. Agora, é um romance pior ainda. Na introdução do livro, que foi lançado postumamente no começo do mês (a versão em peça foi publicada décadas antes e montada em 1989), Leonard Peikoff, o herdeiro da escritora, proclama: "Ideal, nas duas versões, tem uma história, mas não, na definição de AR, um enredo".

Isso é parcialmente verdade: Ideal não tem um enredo, muito menos uma história. São coisas que acontecem e personagens que falam alguma coisa, mas mesmo o termo "personagem" parece generoso para o que é essencialmente um nome numa página, cada um seguido por uma descrição superficial de duas frases. É difícil caracterizar o livro como "literatura", já que parece ter sido escrito fora de qualquer tradição na qual as palavras sejam cuidadosamente selecionadas e tratadas com arte para formar uma narrativa interessante.

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Como muito do trabalho de Rand, Ideal é principalmente um mecanismo através do qual é apresentado um conjunto de afirmações filosóficas simplistas em causa própria. É menos um romance e mais uma lista de ideias, do tipo que um calouro maconheiro rabiscaria em sua primeira aula de filosofia política: as pessoas são hipócritas, religião é ruim, socialismo é uma merda. Apesar de que até mesmo um calouro maconheiro evitaria frases como "Ele sentiu que havia algo – no fundo de seu cérebro, atrás de tudo que ele pensava e tudo que ele era – que ele não sabia, mas ela sim, e ele queria saber, e imaginava se poderia saber, e se deveria e por que queria isso".

Para ser justa com Rand, ela sabia que o livro era ruim – tão ruim que nunca o publicou, preferindo trabalhar o texto no palco, uma forma na qual isso era ligeiramente menos ruim. Mas há fãs modernos e raivosos de Ayn Rand dispostos a "descobrir" um novo título – e, apesar da descrição do próprio Peikoff disso como "juvenília", agora o texto está disponível para quem quiser ler suas (graças a Deus, breves) 125 páginas.

Os devotos de Ayn Rand podem não ser grandes intelectuais, mas sua lista de leitura é um pouco mais sofisticada que, digamos, Adios America: The Left's Plan to Turn Our Country into a Third World Hellhole (o último de Ann Coulter) ou 'Don't Make Black Kids Angry': The hoax of black victimization and those who enable it (de Colin Flaherty). Eles querem ficção, mas numa versão da Fox News: bocados rasos e facilmente digeríveis, que confirmam sua visão de mundo e sua suposta superioridade. Para os acólitos de Rand, Ideal pode não ser A Revolta do Atlas, mas é uma leitura auxiliar – como ler o twitter de Ted Cruz quando você não pode ir ao comício do Tea Party.

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Ideal é a história ("história") de Kay Gonda, uma atriz loira e frágil acusada de matar seu amante. Fugindo da polícia, ela visita seis homens numa noite, fãs que escreveram cartas para ela. Um por um, eles prometem protegê-la, traindo então sistematicamente Gonda e, segundo implica Rand, seus próprios ideais. Não há complexidade narrativa ou emocional aqui. Não está claro o que Gonda oferece a nenhum desses homens além de uma linda tela em branco onde eles podem pintar seus desejos (na sutileza típica de Rand, um dos homens é um artista que literalmente pinta imagens de Kay Gonda).

Não fica claro por que os homens escreveram para Gonda, exceto pelo fato de que todos eles são caricaturas tristes procurando algum tipo de sentido: temos um suburbano com uma esposa irritante e uma sogra que o atormenta, um caipira analfabeto, um artista pretensioso, um pregador sem sorte, um playboy falido e um jovem recentemente desempregado à beira da mendicância (na peça, Rand trocou o caipira por um esquerdista de sindicato). A grande revelação do final e a tentativa meia-boca de reviravolta não dão certo. O livro acaba. O leitor não sente nada – nem mesmo o alívio ou a satisfação de ter completado um projeto. A emoção mais forte que se pode tirar de Ideal é "Acabei de ler um negócio".

Mas o que torna Rand interessante nunca foi seu trabalho, que é universalmente mediano. Mas as reações ao trabalho dela, especialmente dos homens brancos socialmente desajeitados, que parecem ser desproporcionalmente atraídos pelo libertarianismo e de quem Rand é tipo uma mascote. A visão randiana do mundo é impiedosa, cruel. "Onde há uma careta de aversão para um desfavorecido, o fantasma de Rand paira próximo", escreveu Elizabeth Bruening no The New Republic.

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Veja também: careta de aversão para mulheres, encarnada muito bem pela análise de Milo Yiannopoulos de Ideal para a VICE. Yiannopoulos presta pouca atenção no livro em si e começa reclamando que os mesmos liberais que imploram por mais escritoras e protagonistas mulheres não dão valor para Rand. Ele consegue trabalhar com referências a Beyoncé, E. L. James e, numa parte particularmente estranha, Gamergate. Ele deseja aparentemente usar a oportunidade para rotular as ameaças de morte recebidas pela desenvolvedora de videogames Anita Sarkeesian como "críticas" e dizer que as pessoas também falavam mal de Ayn Rand por causa de sua vida sexual.

Um dos poucos trechos do enredo ("enredo") de Ideal apontados por Yiannopoulos é a cena de estupro, que ele descreve como um "pseudoestupro", um encontro "consensualmente ambíguo", que "o movimento feminista autoritário moderno" se recusa a acreditar que "pode ser excitante para as duas partes". É assim que o "pseudoestupro" acontece: a personagem principal Kay Gonda está na cama tentando dormir; enquanto isso, o fã dono da casa onde ela fica está bêbado e, mesmo tendo concordado em dormir no sofá, decide entrar no quarto.

Lê-se: "Por que ele deve se importar com o que vai acontecer depois? Por que ele deve se importar com o que ela vai pensar dele?"

"Ela estava deitada vestida na cama dele, com uma das mãos pendurada na beirada, branca na escuridão. Ela virou a cabeça, e ele conseguiu adivinhar os olhos dela no borrão pálido do seu rosto. Ela sentiu os dentes dele afundarem em sua mão.

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Ela lutou ferozmente, seus músculos tensos, duros, agudos como de um animal.

'Fique parada', ele sussurrou com sua voz rouca na garganta dela. 'Você não pode pedir ajuda!'

Ela não pediu ajuda…".

Rand pode não ser a escritora mais habilidosa, mas nada nessa passagem é ambíguo. Esse com certeza não é um exemplo de um "encontro íntimo ideal", a não ser que seu encontro íntimo ideal seja um estupro – e não um "pseudoestupro", um estupro mesmo. Como as pessoas leem a cena diz mais sobre o leitor do que sobre a própria Rand, o que também explica a importância exagerada dada à obra dela.

Talvez o maior talento de Rand não seja seu status como a mãe do Objetivismo, mas sua habilidade de bancar a Garota Legal, mesmo postumamente, na mente de homens que veem as mulheres tanto com desejo como com repulsa. Você não é misógino se sua heroína é Ayn Rand, e ela é o escudo e a espada definitivos para as discussões iniciadas pelo tipo de cara que adora a escritora. Ayn Rand não ia ligar se você a chamasse de vadia na internet. Ayn Rand não ia achar que é estupro segurar a mulher e enfiar o pau nela sem permissão. Ayn Rand provavelmente beberia uísque, jogaria beerpong e teria mais amigos homens, porque garotas fazem muito drama. Ela é a Pixie Dream Girl Sociopata.

É difícil defender qualquer mérito de publicação de Ideal, exceto talvez por ele criar outra oportunidade para fãs de Ayn Rand discutirem Ayn Rand – e, desta vez, a transformar numa proteção contra as harpias feministas cujas ideias estão prevalecendo, principalmente entre jovens mulheres que não estão frequentando em massa reuniões líbers.

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Para o tipo de homem que prefere mulheres unidimensionais, Rand é uma figura conveniente de moralismo simplista – um moralismo que só funciona para aqueles em posição de experimentar o mundo como um lugar fundamentalmente justo. Para o tipo de homem que prefere mulheres como acessórios, ela oferece uma corroboração conveniente de alguém que não é um homem branco, o que ajuda caras brancos a defenderem o próprio caso político. Para o tipo de homem que prefere que mulheres sejam ideias em vez de pessoas reais e complicadas, que podem falar por si mesmas, Ayn Rand também está convenientemente morta.

Você pode até dizer ela é ideal.

Jill Filipovic é uma jornalista e advogada de Nova York. Ela também está no Twitter.

Ilustração por Heather Benjamin. Siga-a no Instagram.

Tradução: Marina Schnoor