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Como Estupros nas Universidades dos EUA se Tornaram um Escândalo

Apesar do recente destaque na mídia, os estupros nos campus universitários são bastante comuns há décadas. Então por que estão começando a se importar com isso só agora?
Zoe Ridolfi-Starr na Universidade de Columbia. Foto feita pela autora.

Não é nem meio-dia e Zoe Ridolfi-Starr já parece cansada. Sobrevivente de abuso sexual e principal reclamante de um caso federal contra a Universidade Columbia de Nova York por sua suposta má conduta em casos de violência sexual, ela se apressa a fim de se juntar a um punhado de colegas ativistas na praça central da universidade para um protesto – parte do evento nacional de abril Carry That Weight Together – que parece nunca começar.

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Câmeras de canais de TV cercam as mulheres. E, como sou uma mulher jovem ali, elas também cheiram minha saia. Para os homens que nos cercam, sou tão parte disso quanto Zoe e muitas das sobreviventes cujos nomes se tornaram símbolos da crise social do ano dos EUA. Simplesmente estando aqui, isso implica que fui estuprada no meu dormitório da faculdade.

Estatisticamente, a implicação, pelo menos na superfície, se aplica. Como dona de um bacharelado e de uma vagina, minha possibilidade de sofrer violência sexual num campus é de uma em cinco, segundo um estudo de 2007 amplamente citado – e frequentemente contestado – do Departamento de Justiça dos EUA. Como Columbia e pelo menos 100 outras instituições de ensino superior do país, minha universidade, a UC Berkeley, está atualmente sob investigação do Departamento de Educação do Escritório de Direitos Civis, já que também teria agido mal em dezenas de ataques do tipo. Como Columbia e outras da lista, essas escolas dependem de financiamentos federais, o que pesa na balança.

Pelo menos, em teoria.

Apesar dos protestos recentes por todo o país, especialistas acreditam que o estupro é lugar-comum nas universidades norte-americanas há décadas. Logo, por que os federais só notaram isso agora? E toda essa atenção vai resultar em alguma coisa?

"[Os federais] nunca colocaram sanções financeiras punitivas sobre as escolas, o que eles têm o poder de fazer", me disse Allie Rickard, outra ativista da Columbia. "Isso não é incentivo o suficiente para fazer as escolas mudarem proativamente suas políticas."

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Mas é aterrorizante imaginar o estupro como algo que tem sido muito comum na história humana: punição coletiva.

Em vez disso, o inquérito sem precedentes sobre universidades antigas e frequentemente decadentes inadvertidamente transformou estupro de um crime violento para uma questão de direitos civis, inchando seu impacto na porcentagem real de mulheres sobreviventes de estupro para aproximadamente 57% das estudantes, cujo direito igual de acesso à educação estaria sendo ameaçado.

"Há uma obrigação de direitos civis por parte das escolas, além de responsabilidade criminal em potencial" pelos estupros cometidos nos campi, explicou Lara Kaufmann, conselheira sênior do National Women's Law Center de Washington e especialista em ataques sexuais em universidades. "Estudantes estupradas por outros estudantes: esse tipo de trauma pode prejudicar muito sua capacidade de aprender e sua habilidade de funcionar num ambiente escolar; então, as escolas têm tomado medidas para abordar isso."

Quando essas medidas falham – como as sobreviventes dizem que geralmente acontece –, o retorno é um emaranhado de casos envolvendo uma emenda de 37 palavras de um estatuto educacional de 1972 dos EUA, o Title IX. O problema é que punições para os chamados violadores do Title IX, como estupradores "responsabilizados" por ataques nos campi, raramente são infligidas ou são extremamente leves, segundo ativistas e acadêmicos. Expulsões são raras – e até agora nenhuma escola perdeu financiamento em resposta à má atuação em casos de violência sexual.

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"Nenhuma pessoa, pelo que sabemos, foi expulsa por estupro", apontou a caloura de 19 anos da Barnard Julia Crain, cuja escola, afiliada à Columbia, está sob investigação federal. "Ouvimos falar em suspensões de um semestre, em ensaios reflexivos, mas nada muito além disso."

No entanto, a preocupação com condenações equivocadas, universidades injustamente rotuladas como "escolas de estupro" e punição extrajudicial aos acusados pesam tanto quanto os números altamente contestados de um para cinco do diálogo nacional. Emma Sulkowicz, a estudante da Columbia que carregou seu colchão azul pelo campus para protestar contra o modo como a universidade lidou com sua queixa de estupro, é uma santa entre os ativistas e uma sombra negra para aqueles que veem mulheres que rabiscam os nomes de seus estupradores em banheiros públicos como um esquadrão de linchamento misândrico.

Enquanto isso, estupro é uma das controvérsias mais comentadas nos EUA, gerando manchetes em publicações de âmbito nacional e pronunciamentos de ninguém menos do que o presidente Barack Obama.

A atenção do país "certamente criou uma onda", me confidenciou por telefone o porta-voz do Departamento de Educação, Jim Bradshaw.

Um observador casual pode ter a impressão de que estamos vivendo uma epidemia de estupro. Isso é especialmente verdade em Nova York, onde os governos municipal e estadual têm estudado legislações contra o abuso sexual, além de mais universidades estarem sob investigação por "má conduta baseada em gênero" do que em qualquer outro Estado do país.

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Na verdade, como fenômeno criminal, ataques sexuais em campi não são novidade nem uma especificidade geográfica: quando você tem milhares de relativos novatos sexuais em proximidade contínua e uma mistura de grandes quantidades de drogas, qualquer um que queira praticar um crime vai encontrar uma vítima.

"O foco da mídia cria no público a impressão de que há uma epidemia. Acho que não existe nenhuma prova de que seja esse o caso", frisou o dr. Cory Yung, pesquisador da Kentucky University School of Law, cujo estudo recente para a Associação Americana de Psicologia mostrou que as universidades têm um problema crônico no registro de estupros. De acordo com o dr. Yung, reportam-se 44% mais casos quando há investigação do governo federal do que nos períodos anteriores e posteriores a essas investigações. "Não acho que exista nenhuma razão para acreditar que essa é uma época mais perigosa do que dez, 20 anos atrás."

Colocando de outra forma, estupros no campus têm sido predominantes desde a invenção da internet. O problema é que ninguém estava falando sobre isso – pelo menos de maneira racional – até a era do Twitter.

"Há muitas sobreviventes que falaram publicamente sobre suas experiências, e isso tem sido incrivelmente empoderador para outras sobreviventes", argumentou Rickard. "Parte dessas sobreviventes têm chamado atenção para o fracasso estrutural e sistemático das universidades."

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A guinada no entendimento do estupro no campus de um trauma individual para um coletivo está no cerne da onda atual de ativismo, em parte porque essa é a única arma legal que as estudantes têm contra o ataque sexual dentro das universidades: o Title IX, que começou como uma Emenda de Educação em 1972.

Todos os casos do Title IX se baseiam na mesma teoria: ao fracassar em processar e punir adequadamente ataques sexuais, as universidades estão efetivamente negando às sobreviventes acesso igual à educação superior com base em gênero. (O Title IX também se aplica a homens, que também podem ser vítimas de estupro e abuso sexual, mas nos dois casos as mulheres são o padrão.)

"Só nos últimos dez anos vimos o início de uma tentativa de usar o Title IX para litigar e investigar estupros ou abusos sexuais", explicou o dr. Yung. "Levou um tempo para isso pegar impulso. Só há três anos isso se tornou base de investigação."

E as universidades também começaram a enquadrar abuso sexual nesses termos: Columbia, Berkeley e muitas outras escolas têm realizado revisões significativas em suas políticas nos últimos 18 meses, com a última garantindo estar "comprometida em fornecer um modelo nacional para as melhores políticas e práticas, a fim de ajudar a garantir que membros da nossa comunidade universitária se sintam seguras e respeitadas".

O problema é que casos de estupro raramente são claros, dizem os especialistas, o que torna os patamares já elevados para o processo em caso de estupro uma barreira quase impossível de se ultrapassar para as vítimas.

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"O fardo que um procurador tem de superar em casos de estupro é muito maior do que em outras ofensas criminais", reiterou o dr. Yung. "[Os júris] temem falsas acusações. Eles costumam acreditar que as mulheres são propensas a mentir sobre isso", uma percepção instigada pelo fetiche por testemunhas "perfeitas".

O pior: relatórios desacreditados – como a desastrosa história da Rolling Stone sobre a Universidade da Virgínia – têm uma cobertura desproporcional nas notícias e nas redes sociais.

Um problema subjacente é que a cultura dos EUA espera que estupro seja emocionante. Não é.

"Imagine o peso encarado para alguém iniciando [uma acusação de estupro]: não é algo fácil, não é lucrativo e pode ser muito humilhante – não há incentivo para se acusar alguém falsamente de abuso sexual, principalmente num campus", explicou Kaufmann, do National Women's Law Center. "Infelizmente, esses casos ganham muita atenção da mídia, e isso pode alimentar uma suspeita de que isso seja mais comum do que realmente é."

Epidemias são exóticas por definição. Uma endemia, por contraste, é determinantemente comum; por isso, é tão desconfortável contemplar isso no contexto dos estupros. É reconfortante pensar em estupro como um ato criminoso discreto, um horror causado de um indivíduo para outro, desencadeado por psicopatia ou intoxicação, descuido ou cultura, talvez uma reviravolta cruel do destino. É tentador pensar em vilões conduzidos ao ápice do mal por poder e privilégio, de conspirações criminosas levando o mais vil entre nós – caras de fraternidades, por exemplo – a satisfazer seus impulsos ainda mais vis.

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Mas é aterrorizante imaginar o estupro como algo que tem sido muito comum na história humana: punição coletiva. É terrível pensar nele como um fato institucional à espera de um quinto das mulheres que procuram ensino superior numa época em que elas já representam a maioria em escolas superiores – UC Berkeley, UNC, UVA e UT Austin, para citar algumas – e ficam menos de dois pontos percentuais atrás dos homens na Ives.

Naturalmente, nossa imaginação coletiva – sem falar no nosso sistema legal – ainda repudia que o estupro seja algo além de uma aberração, um golpe de azar de um em um milhão.

Na minha carreira de dez anos como repórter criminal, escrevi sobre uma dezena de casos de abuso sexual, mas cobri apenas duas condenações: um policial de Nova York (várias testemunhas o viram estuprar uma professora sob a mira de uma arma; além disso, ele estava "colocando os genitais de volta na calça" quando a polícia chegou) e um orientador hassídico sem licença (ele forçou uma paciente a realizar atos sexuais com ele dos 12 aos 15 anos de idade).

Esses casos compartilhavam um nível quase incompreensível de terror, um pré-requisito para nosso entendimento de estupro. Ainda assim, a defesa do último caso insistiu que a vítima tinha "experimentado algo em sua mente que não condizia completamente com o que realmente aconteceu"; mais tarde, ela manteve que a vítima inventou a coisa toda como vingança.

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"Isso sempre foi um fenômeno relativamente único em casos de estupro e abuso sexual", disse o dr. Yung sobre essa negação. "O fato simples é que temos essa perspectiva que se identifica demais com o acusado e parece totalmente insensível à vítima."

A dúvida lançada sobre sobreviventes nos processos é ainda mais clara na torre de marfim, na qual as relações sociais entre acusado e acusador podem ser complicadas e o ataque raramente é tão clássico como em Law and Order SVU. A história de Sulkowicz gerou milhares de artigos de opinião – muitos deles mais ansiosos com o destino de homens hipotéticos do que com o das mulheres reais envolvidas –, que vão continuar a ser publicados enquanto o suposto estuprador processa a Columbia e arrasta detalhes pessoais da vida dela com ele.

Essas batalhas públicas prolongadas são exatamente o que impede muitas sobreviventes de denunciarem os abusos, argumentam os ativistas, especialmente se a relação delas com o agressor for ambígua. Que Sulkowicz tenha denunciado e depois tornado público um relato que parece tão pouco com o estupro na Rolling Stone – e tanto com o que sabemos ser um estupro da vida real –, é o que a torna uma figura tão singular no debate atual.

Sulkowicz mantém que, em seu segundo ano na Columbia, seu suposto agressor repentina e violentamente a forçou a fazer sexo anal durante um encontro até então consensual em seu dormitório. Mas, de acordo com o processo, "quando eles ainda eram calouros, e antes de qualquer relacionamento sexual entre eles, Emma abordou o tópico de sexo anal com Paul em mensagens particulares do Facebook". Eles chegaram a citar parte da conversa:

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Emma:
fuck me in thebutt (me fode na bunda)
Paul:
eehmmaybenot? (talvez não?)
jk (brincadeira)
I miss your face tho. (mas sinto falta do seu rosto.)

Sulkowicz insiste que seu comentário foi tirado completamente do contexto.

"Quando era caloura, eu costumava usar a frase 'Me fode na bunda' significando 'Isso é muuuito chato'", ela me contou por e-mail, compartilhando uma versão mais longa da conversa pelo Facebook na qual o comentário claramente sugere uma menção sobre o fato de ter de acordar cedo. "Todo mundo diz coisas idiotas no primeiro ano. Com o tempo, tirei isso do meu léxico, mas ainda hoje digo coisas idiotas. Todo mundo diz coisas idiotas!"

A palavra "estupro" frequentemente é usada dessa maneira, apontou Sulkowicz.

"Ouço pessoas dizendo coisas como 'Essa prova me estuprou' ou 'Estuprando o replay' quando não querem dizer realmente que um estupro aconteceu", escreveu Sulkowicz. "Quando estou estressada, costumo dizer 'Meu Deus, me mata!'. Ou, quando alguma coisa é incrível, posso dizer 'Uau, isso me matou'. Em nenhuma dessas situações, estou pedindo para ser assassinada."

O suposto agressor de Sulkowicz foi considerado "não responsável" no processo levantado na escola, o que também aconteceu em dois outros casos envolvendo outros estudantes. Ele continua na Columbia e provavelmente vai se formar em algumas semanas. Ainda assim, a preocupação amplamente divulgada de que ele e vários homens estejam tendo as vidas destruídas por mulheres mimadas continua – apesar de todas as provas do contrário.

"Não temo que as pessoas estejam sendo atropeladas ou que o sistema esteja sendo excessivamente tendencioso contra o acusado, porque simplesmente não vemos isso", afirmou o dr. Yung. "Esse medo de falsas acusações, combinado a um conjunto de regras históricas [que tornam o estupro difícil de processar], preocupa as pessoas excessivamente nessa área… [mas] vemos pouquíssimas pessoas serem processadas. Nos campi, vemos menos pessoas ainda serem expulsas."

Um problema subjacente é que a cultura dos EUA espera que o estupro seja emocionante. Não é. Ainda assim, as câmeras aparecem farejando sangue, esperando pegar Sulkowicz arrastando seu colchão pelo campus ou Craing relembrando os detalhes de seu ataque aos prantos. A verdade é que violência é sexy, burocracia é chata. Ridolfi-Starr pode falar sobre o fracasso do sistema para as câmeras até ficar azul como o colchão de Sulkowicz, mas, pelo que a mídia sabe, estupro precisa de vítimas bonitas para vender.

Ainda estou sentada com outras ativistas na praça. Vejo um repórter de televisão falar com Ridolfi-Starr em frente às câmeras quando percebo que um fotógrafo de revista voltou sua câmera para mim. Olho para cima bem na hora em que ele aperta o obturador. Clique.

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Tradução: Marina Schnoor