Como filmar policiais no Brasil
Foto: Guilherme Santana/ VICE

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Como filmar policiais no Brasil

Antes de sacar o seu espertofone do bolso, seria prudente ter em mente algumas observações importantes.

Era uma noite tranquila de verão quando acabou a luz na favela da Palmirinha, no Rio de Janeiro. Allan Souza de Lima, de 15 anos, conversava com os amigos na rua enquanto os filmava com o celular. Brincando, um deles começa a correr e os outros vão atrás. Em segundos, diversos tiros são desferidos por policiais militares. Allan cai no chão com o celular na mão, que continua gravando. É angustiante ouvir seus gemidos antes de morrer. Próximo a ele, o colega Chauan Jambre, que levou um tiro no peito, reza: "Me ajuda, Jesus". O vídeo, posteriormente, serviu para desmentir a própria Polícia Militar, que além de plantar duas armas na cena do ocorrido, justificou que os adolescentes haviam entrado no meio de um tiroteio. De maneira despropositada, Allan filmou não só a própria morte como também a prova do crime cometido pelos PMs.

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As câmeras de celular têm ganhado novos significados no que concerne à atuação da polícia – não só no Brasil. Recentemente, o registro das mortes de Philando Castile e Alton Sterling, dois homens norte-americanos negros, incendiou o debate acerca da violência policial nos Estados Unidos depois que imagens de celular viralizaram na internet.

Há algum tempo, com as reportagens "Na Favela da Maré, um celular põe mais medo que um fuzil" e "Cariocas estão usando o WhatsApp para denunciar assassinatos cometidos por policiais nas favelas" explicamos como essas denúncias passaram a retratar a rotina violenta de quem mora em comunidades periféricas, geralmente disputada por facções criminosas e pela polícia.

É o caso do Coletivo Papo Reto, que utiliza o audiovisual para garantir direitos e contradizer o que a grande mídia diz a respeito da periferia. "O uso do celular para filmar violência policial dentro das favelas se tornou um meio de sobrevivência", afirma o repórter fotográfico Carlos Cout. "A polícia, hoje, tem mais medo de uma câmera do que de uma arma de fogo. Eles sabem que, se fizerem algo de errado, alguém pode e vai estar filmando tudo."

Durante as Jornadas de Junho, em 2013, pelo menos, essas mesmas câmeras foram vitais para a denúncia de abusos de poder protagonizadas pela Polícia Militar de diversos estados brasileiros. Um dos casos emblemáticos foi o do repórter Piero Locatelli, que acabou detido por portar vinagre (ingrediente que aplaca o mal estar provocado pelo gás lacrimogêneo) em São Paulo. Com o celular, ele registrou toda a abordagem policial, que chega a ser tragicômica para quem assiste.

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Outra grande repercussão foi o vídeo de uma estudante de letras da USP que levou um soco de um policial durante uma manifestação em 2015. Neste e em outros casos menos ou mais graves, o registro em vídeo tornou-se prova cabal do abuso de poder.

Fato é que, muitas vezes, policiais não recebem bem o fato de celulares serem apontados em suas direções. Caso vivido pelo carioca Ricardo Abreu que, diante da abordagem violenta de um PM durante um protesto no Rio de Janeiro, começou a filmá-lo. "Desliga essa porra", grita o policial. "Pra me filmar, tem que me pedir."

Mas o que diz a lei brasileira? Policiais podem ser filmados? Antes de sacar o seu espertofone do bolso, seria prudente ter em mente algumas observações importantes que a VICE Brasil colheu com especialistas e mastigou pra você.

Qual tipo de câmera usar?

Foto: Guilherme Santana/ VICE

Nas devidas proporções, um celular chama menos a atenção do que uma câmera profissional. De acordo com uma pesquisa divulgada pela Nielsen Ibope no final de 2015, 61% dos brasileiros tem smartphone. Ou seja, na emergência, vale apelar para o bichinho, visto que as câmeras atuais contam com resolução e captação de áudio satisfatórias pra esse tipo de registro.

No momento de gravar o vídeo, é importante que você mantenha o celular na horizontal para facilitar a visualização posterior. Pra quem não é nenhum Ingmar Bergman dos enquadramentos, vale baixar aplicativos que te forçam a gravar na horizontal, como o Horizon, para iOS e Android.

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Uma opção também é utilizar o Facebook Live, ferramenta que permite a divulgação do vídeo ao vivo.

Qual tipo de situação você pode filmar?

Aparentemente, todas. Não há nenhuma lei brasileira que impeça um cidadão – seja ele jornalista ou não – de filmar uma ação policial que acontece em local público. "Não existe uma regulação a respeito disso, mas entendemos que as práticas policiais tanto podem ser observadas quanto registradas por câmeras", detalha Tania Pinc, major da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, doutora em ciência política e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mas existem poréns. "Às vezes, pode acontecer de uma cena de crime ter o acesso vedado à imprensa."

Foto: Felipe Larozza/VICE

Para o editor de fotos e fotojornalista da VICE, Felipe Larozza, caso o vídeo tenha o teor de denúncia, é importante também se ater a detalhes. "Filme a identificação do policial no uniforme, os números laterais que ficam na viatura e também a placa do carro", recomenda.

Cobrindo manifestações intensamente desde as Jornadas de Junho, Larozza pontua que a discrição é uma ferramenta importante. "Se estiver em um protesto, tente se disfarçar no meio dos manifestantes e filme discretamente. Porque se os policiais perceberem que você está gravando, a atitude deles será diferente."

E se um policial disser que você não pode filmá-lo?

Muitas vezes, os próprios policiais - ou até seguranças - tentam impedir que câmeras registrem suas ações, como foi o caso recente envolvendo jornalistas no metrô do Rio de Janeiro. "A ausência de uma regulação clara, às vezes, acaba gerando essas condutas", justifica a major Tania Pinc.

Portanto, é preciso se cercar de cuidados. "No mundo ideal, você conversaria com o policial, diria que você tem esse direito e pediria pra falar com o comandante da operação. Mas nós não vivemos no mundo ideal", pondera o advogado e mestre em direito constitucional pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Hugo Albuquerque.

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"Tente acalmar a situação, dissimule um pouco, volte a gravar. Mas sempre tomando muito cuidado", orienta o advogado. "Você pode ser vítima de abuso de poder, de abuso de autoridade, de violência do Estado. Tome cuidado porque não vivemos um momento normal no país. Acho que isso está claro desde 2013."

Veja também: Fotos inéditas das Jornadas de Junho 2013

Como você deve se portar?

Tente não interferir muito na cena (isso pode ser punk conforme o que você está vendo). Mantenha uma certa distância ou use o máximo do zoom que conseguir. Seja o mais discreto possível. Avalie o quanto você vai se arriscar pra conseguir aquela imagem. Não agrida verbalmente os policiais. Explique o que você está fazendo e, se necessário, se identifique.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Outro fator é que, em momentos de perigo ou excitação, nosso corpo fabrica adrenalina, fazendo com que o coração acelere, o corpo trema e transpire. Ou seja, se o bicho pegar, aja como se fosse uma mistura de domador de leões com monge budista.

E se o policial pedir para que você delete o vídeo?

É importante trabalhar com essa hipótese e estar preparado caso aconteça. Para o advogado Albuquerque, a escolha é sua: "Você deleta se quiser. Mas você não tem obrigação de deletar e, caso isso aconteça, procure manter a calma, deixe o vídeo no celular e discuta isso na delegacia de polícia".

Se a acusação for de uma filmagem indevida, vá ao DP. "Não deixe ninguém remover o vídeo e, claro, comunique imediatamente o seu advogado ou um defensor público", pontua o profissional.

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Aliás, está aí outra coisa importante: salve o número da defensoria pública do seu estado na agenda do celular. Você nunca sabe quando a merda irá bater no ventilador e você irá precisar de um advogado sem ter de tirar dinheiro do bolso.

E se você for detido por ter feito um vídeo?

Foto: Guilherme Santana/ VICE

"Mantenha a calma, não brigue, não erga o tom da voz", afirma Albuquerque. "Saiba que você tem esse direito. E, naquele momento, você pode ser coagido a apagar o vídeo, mas você só apaga o vídeo se você quiser."

Provavelmente você será levado para um DP. Lá, você vai precisar de um advogado. Portanto, a dica do telefone da defensoria continua valiosa.

Reiterando: o risco é sempre por sua conta. Avalie se vale a pena de acordo com a situação.

Como você deve divulgar o vídeo que fez?

Dependendo do material que você tiver colhido, as redes sociais e o YouTube podem ser o primeiro passo. Caso o conteúdo do vídeo seja extremamente relevante, vale entrar em contato com agências de notícia (aqui uma lista com as principais) ou diretamente com os veículos.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Outra questão é a exposição. Uma manifestação política é diferente de uma abordagem em meio a uma avenida ou no meio de uma comunidade, por exemplo. É preciso ser ponderado quanto ao objetivo do vídeo. Se você filmar uma pessoa sendo revistada e divulgar esse material, expondo outro cidadão, terá de arcar com as consequências legais, como ser processado. "Se você está denunciando uma abordagem violenta num determinado contexto de abuso de autoridade, você, na verdade, está denunciando um crime. Mas é uma fronteira sempre muito tênue. É arriscado. Você pode estar comprometendo a operação e pode estar expondo a pessoa que foi abordada. É preciso fazer essa ponderação", considera o advogado.

Tome cuidado com a edição do seu vídeo. Ela pode incriminar um policial ou um cidadão inocente. Qualquer coisa que não tenha contexto é perigosa.

Uma opção complementar é baixar o aplicativo ainda em construção NósPorNós, criado pelo Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro. Disponível somente para Android, a ferramenta recebe denúncias de violência policial em formato de áudio, vídeo, foto e também escrita. Por enquanto, funciona somente no Rio de Janeiro, mas outros estados já estão articulando sua viabilização.

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