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Como troquei meu CRM pelo jornalismo freelancer

Direito, medicina, aracnoidite... Jornalismo?!?
Foto: Phalinn Ooi

Foto via Flickr.

Mais ou menos nessa época do ano, em 2004, eu me postava à frente do mural de uma universidade, procurando meu nome na lista de aprovados no vestibular de medicina. Cinco minutos depois, de joelhos no chão, óleo de cozinha no cabelo e farinha na boca, tentava assobiar o Hino Nacional. Feliz da vida. (Não consegui.) Eu havia sido aprovada.

E o que você sabe sobre vocação e carreira aos dezessete anos que te dá aval para tomar uma decisão desse calibre? Bom, o que eu sabia: E.R. — ou Plantão Médico — era uma série legal, com gente bonita que parecia muito inteligente falando coisas complicadas e salvando vidas a granel. (Não existia House nem Grey's Anatomy na minha época.) Eu sabia também que meu pai era médico e ganhava um dinheiro bem decente. Sabia, inclusive, que ele e minha mãe ficariam muito contentes caso eu decidisse seguir por esse caminho.

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Mas eu era boa com as palavras, apaixonada por literatura e leitura em geral, então decidi prestar vestibular para direito — me disseram que era uma carreira que envolvia muita leitura, escrita e dava algum dinheiro. Àquela altura da minha vida, foi o suficiente para me convencer. Passei. Uns meses depois, fui informada de que prestaria medicina, também. Um colega de sala havia feito a minha inscrição a pedido dos meus pais, escondido de mim. Até falsificação de assinatura rolou. Meu ano letivo já tinha acabado, eu não tinha compromissos, então fui lá e fiz a prova. Não estava tão empolgada assim com a perspectiva de cursar direito, de qualquer forma. Medicina seria uma opção a mais — uma que me traria o orgulho dos meus pais e algum prestígio da sociedade. Além disso, biologia era uma matéria que eu achava divertida e entendia sem precisar me esforçar muito.

A festa dos amigos e familiares foi tão grande que, de repente, essa parecia a opção certa para mim. "Se acham que eu devo cursar, acham uma carreira tão linda, tão nobre… eles não podem estar todos errados, né?" E foi o que bastou para que eu embarcasse no que seria uma das experiências mais sofridas da minha vida.

Não é necessário dizer que, desde o início, me senti um peixe fora d'água. Meus colegas ficavam felicíssimos quando tínhamos alguma aula prática operando ratos ou cachorros, ou quando éramos convidados — mesmo nos primeiros anos — a assistir procedimentos no centro cirúrgico do hospital. Nada disso me empolgava. Eu não entrava em ligas e não me oferecia para monitoria. Só estudava porque precisava passar nas provas e queria trazer boas notas para casa, afinal, eu tinha um certo orgulho (secreto) da pecha de nerd que carreguei por toda a vida. Passava e contava regressivamente: "uma a menos".

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Fui em alguns congressos com meus amigos, mas raramente aparecia nas palestras. Bastava por o pé em São Paulo para automaticamente me enfurnar nas livrarias do Conjunto Nacional e sair só três dias depois, com livros que nada tinham a ver com medicina. Olhava para a construção imponente que abriga a Faculdade Cásper Líbero e suspirava. "Que vontade de estudar ali."

Lá pelo meio do curso eu já havia decidido que medicina não era para mim. Mas já era tarde demais para abandonar. Eu deveria pelo menos pegar o diploma antes de me enveredar por outro caminho, porque, caso esse segundo não desse certo, eu teria onde me apoiar. Além disso, quis evitar o conflito horroroso que se daria entre mim e meus pais.

Eu já sabia o que queria fazer, também. Queria escrever. E jornalismo era uma carreira que eu contemplava desde os tempos de colégio, mas, toda vez que conversava com estudantes do curso ou profissionais da área, todos me falavam em crise e me desaconselhavam fortemente a cursar. "Não faça. Continue na medicina e você será mais feliz" — perdi as contas de quantas vezes ouvi isso de jornalistas. Então descartei a opção e, na área de humanas, fiquei com o direito.

Mas o que eu estava cursando era medicina. O meu último dia no hospital foi um dos mais felizes da minha vida. Tinha acabado. Acabado para sempre.

Pena que a alegria durou bem pouco: três dias antes da formatura, caí na escada da minha casa e fraturei o cóccix. E nesse instante — eu ainda não sabia — se iniciava a fase mais difícil da minha vida, que se estende até hoje. O ano era 2010 e a fase da doença crônica oficialmente começava.

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Durante os cinco anos seguintes, passei por cinco cirurgias. Houve um erro médico na última, que me causou uma doença incurável chamada aracnoidite adesiva. Essa doença é bastante debilitante, principalmente por causar dor incapacitante. Algumas pessoas ficam também paraplégicas, mas não foi o meu caso. A questão é que sinto dor 24 horas por dia, 7 dias por semana e só consigo obter algum alívio quando estou deitada ou sentada numa cadeira reclinável. O médico que me causou essa lesão me abandonou. Parou de me responder mensagens e me atender ao telefone.

Se eu já não me interessava muito pela medicina antes desse calvário, depois, passei a sentir repulsa. Por hospitais, médicos, farmácias, remédios. Tudo que me remetesse à perspectiva de que tenho uma doença grave, incurável e causada pelo erro de um médico.

E foi então que surgiu a ideia. Gosto de escrever, sempre quis trabalhar escrevendo e tinha uma história bem peculiar para contar. Contatei a Superinteressante — através de e-mails que encontrei na própria revista — e eles se interessaram pela minha escrita e pela proposta de pauta (o meu calvário como doente crônica). Escrevi meu primeiro texto jornalístico remunerado. Fiquei radiante. O feedback, inclusive, foi excelente. Muitos pacientes de dor crônica me contataram dizendo que se viram no meu texto. Conheci gente muito bacana e com histórias comoventes.

Uma semana após a publicação desta, ofereci outra ideia, ainda na área de saúde/medicina. Também acatada. Fizemos o segundo. O terceiro. Estou trabalhando na edição de um quarto. E assim tem ido. Hoje, não me arrependo de forma alguma de ter cursado medicina. Foi uma experiência pela qual eu precisei passar e que, de quebra, me colocou em uma posição capaz de fazer jornalismo bem informado e aprofundado a respeito de um assunto. Eu não tenho a formação jornalística técnica, mas tenho aprendido algo na prática e não descartei a ideia de fazer uma faculdade — ou alguns cursos livres — na área.

Por um caminho torto e sofrido, consegui finalmente encontrar algo que faço bem e gosto muito de fazer. E não tenho nenhuma intenção de parar.