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De Coração de Mãe Não se Tira Nenhum

Mães de Maio: ouvir de suas bocas sobre filhos conjugados no passado, o presente de indiferença e a esperança pro futuro é uma experiência bem transtornadora.

Na quarta-feira o movimento Mães de Maio, formado em 2006, lançou seu segundo livro. O grupo é uma rede de parentes buscando justiça nos casos de mortes e desaparecimentos de filhos ou relativos vítimas da onda de violência em São Paulo naquele ano de fundação.  Só lembrando, em pouco mais de uma semana daquele mês, 493 pessoas morreram em todo o Estado. E, envolvendo foras da lei ou não, a maioria dos casos foi arquivada sem conclusão. Seis anos depois, em evento no Sindicato dos Jornalistas seguido de homenagem no SESC Consolação, o tomo foi dedicado também aos recentes casos de baixas nas periferias registrados nos últimos meses — hoje a causa envolve indignados não só daquela geração de aflitas, como também das mais recentes. Atualmente, cerca de 50 familiares participam no coletivo, que, aliás, aproveitou a cerimônia para avisar que estão começando a articular candidatura para prêmio Nobel da Paz.

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O volume, impresso em mil exemplares e de maneira totalmente independente, chama Mães de Maio, Mães do Cárcere – Periferia Grita. Traz, em suas 358 páginas, prefácio do Dexter, depoimentos de parentes cujos familiares foram assassinados e textos de gente do calibre do Sérgio Vaz, Kaskão (Trilha $onora do Gueto), Ferréz, André Caramante e muito mais balas, além de documentos. Nas palavras da coordenadora das Mães de Maio, Débora Maria da Silva, “é uma AR-15 periférica apontada pra cara do Sistema”. Ela era uma das tais mães que estavam presentes no dia, grande parte vinda de Santos para a coletiva. Ouvir de suas bocas sobre filhos conjugados no passado, o presente de indiferença e a esperança pro futuro é uma experiência bem transtornadora.

Ednalva Santos, 53, cozinheira, moradora de Santos. Seu filho Marcos Ribeiro Filho morreu no dia 14 de maio de 2006 na zona noroeste da Baixada Santista, aos 26 anos. 

VICE: Qual foi o seu caso?
Ednalva: Foi no dia 14 [de maio de 2006] mesmo, Dia das Mães, que mataram meu filho. Ele passou o dia todo junto comigo, depois pegou a filha e foi levar pra mãe dela. Depois foi pra casa de um amigo combinar de surfar no dia seguinte. Ele trabalhava, mas estava de férias. Quando ele estava na casa desse amigo jogando vídeo game começou a passar polícia, aí o amigo dele falou que era melhor ir embora. Ele falou: “Eu não devo nada pra polícia”. E ficou. Nisso que ele ficou, aquele carro de polícia que estava rondando parou de passar e encostou um carro preto e duas motos. Chamaram o amigo dele pra fora. Não o surfista, um outro que também estava lá. Esse menino supostamente tinha matado um policial, mas depois nós descobrimos que não tinha sido ele. Mas estavam procurando ele, só como ficou testemunha, eles acharam bem matar também os que viram eles matarem o menino. Deram oito tiros nesse menino que morreu. O outro também levou oito tiros, mas se fingiu de morto (hoje tá paraplégico). E deram nove tiros no meu filho, na cabeça, no coração e na perna, pra ele não correr. Daí eles cataram as cápsulas todas do chão, veio uma ambulância, pegaram o corpo do meu filho já sem vida. No hospital falaram que ele chegou em estado deplorável. Também, né, com nove tiros de .40. Não tinha nem como não ter chegado.

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E como a senhora ficou sabendo dessa história toda?
Testemunha que falou. E ameaçaram minha testemunha também, e ela não depôs mais a meu favor. Com medo, né, de represália? Prenderam ele, bateram nele… Falaram que se ele dissesse que tinha sido a polícia eles iam acabar com a raça dele. Aí fiquei sem testemunha e o caso foi arquivado. Todos esses casos [da época] foram arquivados. É por isso que a gente pede a federalização das investigações [uma das reivindicações do grupo é que a Polícia Federal passe a averiguar esses acontecimentos]. Recolheram tudo e não fizeram mais nada.

Ele tinha alguma passagem pela polícia?
Não tinha nada. Ele estava se formando. No passado ele não quis estudar, né, mas na época ele tava terminando o colegial. Trabalhava numa grande papelaria da Baixada Santista. Era o cão fiel do dono, que gostava muito dele. E ele era um bom surfista. [Risos] Ele queria ser campeão de surfe. Hoje ele estaria com 32 anos. Deixou uma filhinha que agora tá com 7 anos. Ia fazer um ano quando ele morreu. O negócio dele era surfar e curtir a filha dele.

Falam que instinto materno é uma coisa muito forte. A senhora sentiu alguma coisa no dia em que…
Senti. Na noite que ele morreu eu deitei, fechei os olhos e vi uma luz muito forte. E essa luz foi se apagando. Se apagando, se apagando, se apagando. Na hora em que essa luz se apagou, o celular da minha filha tocou. Eram as amigas dela avisando que ele tinha sido baleado. Foi uma coisa muito estranha. E depois… Ele morreu num domingo, só que o enterro foi na terça-feira. Porque o pai dele, de quem eu sou separada e mora em Tocantins, estava vindo pra velar o corpo – e colocaram formol no corpo dele pra conseguir esperar. E nessa noite em que ele foi enterrado eu estava dormindo e sonhei que ele veio me avisar que ele estava num lugar muito bom, que estava bem, e que não era pra eu chorar por ele. E pra avisar as tias, de quem ele era o maior xodó, meu filho mais velho.

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Você tem medo de sofrer retaliações?
Eu já fui presa. Meu companheiro também, ficou três meses e oito dias preso. Eu fiquei oito dias, porque a Defensoria Pública e a Débora [Maria, coordenadora do Movimento] fizeram a minha defesa e conseguiram me libertar. Fui forjada de drogas. Denúncia anônima, aquela que não aparece ninguém. A polícia entrou no bar do meu companheiro, que já tem mais de 20 anos e é onde eu trabalho faz seis, e eles entraram lá procurando drogas. Falei que não tinha nada disso lá, só comida, bebida – tudo, menos droga. Aí um policial militar, que estava sem a identificação, perguntou meu nome. Eu falei: “Qual é o seu? Você não está se identificando”. Ele: “Meu nome não interessa”. “O meu também não”. “Mas a senhora não é a que faz acusação sobre PM ter matado seu filho?”. Respondi: “Sim, sou eu mesmo, e eu não vou parar de acusar vocês, porque eu tenho testemunhas”. “Mas a senhora tem que parar com isso, de falar que polícia que fez isso”. Terminei: “Tá bom, amanhã eu acuso você na Corregedoria. Já peguei o número da viatura e vou ir dizer que você veio me ameaçar”. No dia seguinte, 20h, entrou a Civil no meu bar. Procurando drogas, dizendo que tinha drogas… Pegaram um saco, enfiaram um monte de drogas dentro e falaram que era nossa. Aí simplesmente me algemaram e levaram eu, meu marido, dois fregueses que estavam lá. Pra dar formação de quadrilha, que mais de três pessoas é isso. E nisso ficaram três meses presos. Mas o Ministério Público inocentou a gente. Agora eu estou processando a Polícia Civil. Antes era só a Militar, agora a Civil entrou no jogo.

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A senhora odeia a polícia?
Eu tenho medo da polícia. Me ameaçaram, apontaram dedo na minha cara, já me seguiram. Só que eu não saio mais à noite, não vou pra um baile, não vou pra festa. Não vou pra lugar nenhum. Só saio acompanhada de casa. Fico presa dentro de casa e trabalhando.

Vera Lúcia dos Santos, 57, moradora de Santos. Sua filha Ana Paula, grávida de nove meses e uma semana, morreu aos 20 anos junto do marido no dia 15 de maio de 2006.

VICE: O que aconteceu com a sua filha?
Vera: Eles foram buscar fruta pra fazer vitamina pra ela, que ia fazer a cesárea no dia seguinte, e não voltaram. Nem ela, nem ele – e o bebê não sobreviveu. Ia se chamar Bianca. Foi grupo de extermínio. Diz que é acerto de conta, que é o Comando [Primeiro Comando da Capital]. O Comando não é. Quem passou na rua escutou os nomes que estavam sendo gritados. Porque ela arrancou o capuz dele [do atirador], e por isso acharam que ela tinha que morrer. Ela nunca tinha tido passagem pela polícia. Ele quando era menor tinha tido acho que duas, mas quando conheceu minha filha, que estavam se casando, virou gente… Ele tava trabalhando, carteira assinada.  Aí arquivaram o processo por causa de testemunha. Mas quem vai testemunhar? Agora vem o Natal, e quem eu vou abraçar? Seis anos que na minha casa não tem Natal, não tem Ano Novo, não tem nada. Nem o direito de ir e vir mais.

Por que te prenderam?
Quando ia fazer três anos [do ocorrido] a Polícia Civil invadiu a minha casa dizendo que eu era a dona do bairro, que eu tinha drogas… E simplesmente do nada quebraram a minha casa inteira e me levaram. Fiquei três anos. Depois disseram que acharam a minha moto cheia de drogas, e nunca mais me mostraram a moto ou me apresentaram as drogas. O juiz se apegou ao valor da moto. Só que ele esquece que quando a moto sai da loja é um valor, e depois que passa um tempo o valor é outro totalmente diferente. Aí me sentenciou a quatro anos e dois meses, e eu fiquei dois anos e nove meses. Saí assinando e encerraram. Não sou mais ré primária.

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Mas a senhora estava acusando policiais?
Com certeza. Eu sou de bater de frente, não de correr. E quando alguém pergunta, eu digo que foi. Só não tenho nomes, que eu também não vou dar um tiro no meu próprio pé porque tenho mais gente na minha família. Se fosse só eu, dane-se. Mas que foi, foi. Todo mundo sabe que foi. Tinha mais de 200 pares de ouvidos escutando tudo. Então não tem como falar que foi engano. Só que testemunhar ninguém vai. Chegou a sentir algo estranho no dia do acontecido?
Sim, eu ouvi tudo da minha casa. Ninguém mais ouviu. Ouvi os tiros e ouvi os gritos, e não foi nem perto de casa. Não dava pra ouvir. Aí quando chegamos lá já tinham tirado os corpos do local, pra não ter perícia. Eu ainda olhei, pelo tanto de sangue pensei: ‘Ah, deve ter sido de raspão, né? Era uma mulher grávida”. Quando cheguei na Santa Casa tava todo mundo morto. Por que a polícia nunca investigou? Por que tiraram o corpo do lugar? Uma mulher grávida não justifica matar. Ela não oferecia risco nenhum pra eles.

Qual o seu sentimento pela polícia?
Infelizmente eu tenho pena deles. Eu tenho pena. São uns coitados. Não tem nem como odiar.

Solange Prudes de Moura Queirós, 45, voluntária, moradora de São Paulo. Seu filho Sidney morreu graças a um caso acontecido na antiga Febem, hoje Fundação Casa, em 6 de setembro de 2003, aos 18 anos.

VICE: O que aconteceu com o seu filho?
Solange: Meu filho foi parar na Febem com 16 anos por causa de um roubo. Ele era dependente químico. Ficou lá um ano, três meses e vinte dias. Como tava tendo muita rebelião e os meninos não tinham atendimento nenhum, eu consegui uma avaliação psicológica pro meu filho dentro do Fórum. E no dia que ele apareceu no Fórum, estava todo arrebentado. Aí ele fez uma denúncia no Ministério Público pela prática de tortura pelos funcionários da Febem. Um mês e pouco depois ele apareceu numa cela em chamas. O que alegaram foi que ele coagiu um professor de informática a entregar um isqueiro pra ele, e que foi com esse isqueiro que ele tacou fogo na cela. Tem essa versão da Febem que ele praticou suicídio, mas tem a versão de mães que tinham filhos lá dentro e me contaram que naquela manhã ele foi espancado porque ficou bravo com os funcionários por não terem deixado ele acender um cigarro, depois foi levado à enfermaria, sedado e colocado no castigo, onde aconteceu isso. O mais engraçado é que quando teve a audiência pra saber o que aconteceu, primeiro, na delegacia, foi o professor de informática, que levou quase um mês pra dar o depoimento de que levou o isqueiro. Depois o depoimento foi que esse isqueiro nunca apareceu. Ele foi queimado dia 20 de agosto de 2003, e faleceu dia 6 de setembro de 2003.

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E o caso ainda está sendo investigado ou tá parado?
Eles colocaram como suicídio. Pro Estado, todo mundo que morre em instituição do Estado é suicídio. Nunca eles são os culpados. Nunca existe culpado, só os familiares e a próxima vítima. Mas aí eu processei o Estado, e ganhei em primeira, segunda, Superior Tribunal de Justiça. Ganhei em todas as instâncias, mas é aquela história: você ganha e não leva, porque vai pra precatórios. A única coisa que eu consegui receber foi a pensão de um salário mínimo.

Como você ficou sabendo do acontecido?
Na Febem você fica preocupado 24h por dia. Ainda mais naquela época. Quando me ligaram, era oito e pouco da noite, falando que tinha um assunto grave com o meu filho. Que era pra eu estar lá de manhã. Nem dormi. Quando cheguei lá fizeram todo um circo, reuniãozinha, aí me chamaram. Estava diretor, uma trupe toda. Aí me falaram: “seu filho pegou fogo”. Eu tinha imaginado várias coisas: briga entre adolescentes, um monte de coisas… Mas como assim meu filho pegou fogo? Disseram que aconteceu uma briga entre funcionários, aí levaram ele pra tomar um sedativo e descansar, e que depois ele pegou e tacou fogo nos colchões e pegou fogo. Eu vi ele dia 16 de agosto, quatro dias antes de ser queimado. Ele me mostrou o funcionário que tinha espancado ele. Falei: “aguenta, Sidney, falta pouquinho pra você sair”. O [relatório] conclusivo dele estava no Fórum só esperando a assinatura do juiz pra ele sair.

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Maria Helena Teles de Pina, 55, dona de casa, moradora do Gonzaga, Santos. Seu filho José Rodrigo de Pina Júnior morreu no dia 7 de outubro de 2012, aos 25 anos, no bairro da Vila Matias.

VICE: O que aconteceu com o seu filho?
Maria: O que aconteceu foi que meu filho estava sentado na porta de uma lanchonete jogando vídeo game, a rua cheia, todo mundo conversando, brincando, bebendo… Aí passou uma moto e em seguida um carro preto. Desceu, pegou logo um que estava na beira da calçada. Aí começou um corre-corre e infelizmente meu filho correu pra um beco sem saída. Levou um tiro nas costas, aí chegaram mais perto e deram na nuca. Mataram oito numa noite só. Eu estava dormindo, tinha colocado o celular pra despertar de manhã pra ir trabalhar na eleição. Aí deu o primeiro toque no meu celular. Como ele sempre esquecia a chave, eu fui na varanda pra ver se era ele. Chamei o nome dele duas vezes: “Júnior, esqueceu a chave?”. Mas ninguém respondeu e eu voltei pro quarto. Quando eu cheguei no quarto tocou o telefone da sala. Era uma ligação do telefone do meu filho, que eu vi o número. Falaram: “Vem pra rua, tia, que aconteceu uma desgraça”. Até então eu estava pensando em outra coisa, né? Atropelamento, briga – coisas desse jeito. Do jeito que eu estava fui pra lá. E lá encontrei ele estirado já no chão.

Ele tinha passagem pela polícia?
De jeito nenhum. Ele estudava, trabalhava com informática. Tenho os antecedentes aqui e tudo.

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E as investigações, como estão?
Primeiro que eu não fui chamada. Eu que fui lá me apresentar. Aí pegaram o meu depoimento, mas eu não sabia nada, não estava presente. Os que sabem, os que viram, que foram convocados, nada viram e nada sabem – que não pode se falar. Mas você sabe que é aquela investigação que nunca vai chegar a lugar nenhum. Eu corri atrás das pessoas, de nomes… Testemunhas têm muitas, mas ninguém quer se apresentar.

Desconfia de quem tenha sido?
Poder dizer eu não posso, mas que não é segredo pra ninguém que tem grupo de extermínio, tem. Justamente no dia que ele morreu, duas horas antes tinham matado um policial na ponta da praia. Quer dizer, se ele soubesse que tinha acontecido esse fato não teria ninguém na rua. Com certeza a rua estaria deserta. Porque é hábito. Se matam policial ninguém sai. Esse negócio que dizem de toque de recolher, não é toque de recolher. Simplesmente é medo do povo de estar na rua. Não tem mais aquele negócio de ficar em barzinho na rua. Principalmente quando acontece um fato desse, aí a rua fica aquela coisa sinistra.

A senhora tem medo de continuar mexendo com isso?
Eu temo mais pela minha filha. Porque quando mata um filho mata a mãe também. A gente fica vazia. Medo deles? Se eles chegarem e me derem um tiro vai ser só mais uma. Eu conto com as Mães de Maio, que se eu estiver com elas eles sabem que vai ficar ruim pra eles. Então… Medo eu não tenho não. Só não cito nome porque infelizmente ninguém quer ser testemunha de nada. Mas se tivessem brecado esses crimes em 2006, não estariam acontecendo esses agora. Mas já existe nome de suspeito, existe o suspeito, existe tudo. E não é um sozinho, né?

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O que ele gostava de fazer?
DJ. A vida dele era ser DJ. Ele gostava de tudo que era tipo de música. Ele ficava muito em casa, no computador, tinha muitos amigos. Adorava fazer música. Era um garoto do bem. O que me conforta é que ele era uma boa alma. Se meu filho fosse bandido, acho que seria do destino ou a cadeia, ou o cemitério. Mas mesmo que seja bandido, ninguém tem direito de tirar a vida de ninguém. Isso é errado. Se ele tivesse em alguma infração, que pegassem ele, que prendessem… Mas eu tenho certeza de que não estava, e todos os que estavam ali conheciam ele também. E o caso não foi caso de batida policial, né? Foi caso de extermínio mesmo. A moto só passou pra dar o aval, depois veio o carro preto.

A senhora se incomoda de falar sobre isso?
Olha, eu já repeti isso tantas vezes. Agora que eu comecei a fazer tratamento estou conseguindo digerir. Psicólogo e psiquiátrico. E tomando remédio. Antes eu não saia de casa, parecia um bicho. Ainda mais que no dia do enterro dele o secretário [de Segurança Pública] publicou que todos os que morreram eram bandidos. Meu filho não era bandido. Tirei os antecedentes criminais dele na hora. E mesmo que fosse, não tinham o direito de matar. Aí eles ficam nessa de facção criminosa contra policial. Mas eu pergunto pra você: a facção criminosa tem lá os códigos deles, do tipo se alguém deve eles julgam e matam. Mas eles não saem fuzilando o povo. Qual é a intenção deles em sair fuzilando? Eles iam ganhar o quê com isso? Agora pela morte de um policial corrupto, sem vergonha, que estão endeusando, que plantava o terror na cidade. Eu acho que não vale a pena isso.

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No dia do acontecido você chegou a sentir alguma sensação estranha? Alguma coisa fora do comum aconteceu que mexeu com seu instinto materno?
Quando meu celular tocou, eu fui na varanda e vi que não era ele… Tanto que quando ligaram eu perguntei: “mataram meu filho?” Na hora a gente já percebe, o instinto de mãe é… Mas ainda vai na esperança de estar no hospital, no resgate… Sabe?

Tem alguma data que seja mais insuportável que outras?
Eu ainda não pensei nessas épocas não. Ainda estou pensando no agora. Finais de semana têm sido muito difíceis. Esse final de semana eu não falei com ninguém, não saí com ninguém. Aliás, desde o dia do fato eu não voltei mais pra minha casa. Minhas filhas que foram lá, desmontar o quarto dele e distribuir as coisas. Eu e meu marido, o pai dele, estamos morando com uma delas, mas procurando um apartamento pra me mudar. Mas final de semana é uma saudade… Tipo, você é um rapaz que acho que já viajou. Que sentiu saudades da sua mãe. Mas aquela saudade que sabe que quando você vai voltar pra casa, você vai abraçar a sua mãe. Agora imagina você sentir uma saudade e saber que não vai mais ver. Eu já enterrei meu pai e minha mãe, mas não queria ter enterrado um filho. De jeito nenhum. Isso que tá sendo difícil. É uma dor que não tem como explicar. Não tem como explicar. Você não come, não dorme… Tem que viver dopada dia e noite. Terrível.

Tem medo de sofrer retaliações por estar envolvida nessa luta?
Medo eu não tenho. Vou morrer? Já estou morta, praticamente.

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Nair Ferreira, 57, dona de casa, moradora do Jardim Castelo, Santos. Seu filho Marildo, 33, foi morto em São Vicente.

VICE: Qual foi a história do seu filho?
Nair: Meu filho foi morto no dia 7 de dezembro de 2006. Tá fazendo seis anos. Ele foi morto sentado, sem direito nenhum a… Eles dão como resistência, né? Disseram que ele era bandido e traficante, mas ele não era bandido nem traficante. O depoimento de um dos delegados disse que ele atirou contra a polícia. Depois ele mudou. Eu fiz questão de fazerem o exame residuográfico, e ficou provado que ele não atirou contra ninguém. E a posição que eles dizem que meu filho supostamente estaria com uma arma não é de ataque. Eles mesmos reconstituíram o crime e cometeram esses erros. Ele nem tinha arma. Foi um teatro forjado. Meu filho estava documentado. Estava com a moto parada perto de onde ele foi morto, no lugar em que ele estava construindo a casa dele, no Dique Sambaiatuba, em São Vicente. Foi às 7h15 da manhã. Deram três tiros no meu filho. Um no pé, outro no peito e outro de cima pra baixo. O caso do meu filho é júri, porque tem nome e sobrenome do policial. Não fui eu quem dei nome pra ninguém, a própria polícia deu o nome de quem matou meu filho. Era Polícia Civil, mas não estava fardado. A última frase do meu filho foi: “Vocês vão me matar? Eu sou pai de família.” Eles disseram: “Pai de família também morre”. Mataram porque quiseram. Muitas pessoas viram. Mataram ali e tiraram logo do local, porque deixaram muito vestígio.

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Mas por que a senhora acha que pegaram seu filho?
Nesse lugar tinha uma blitz. Muitos que estavam ali correram. Meu filho não.  Ele não devia nada. Tanto que na porta do hospital entregaram os documentos dele e a chave de casa. Então, quer dizer, se meu filho era traficante, que levassem preso e averiguassem tudo isso. Mas ele saiu morto do local.

Você odeia a polícia?
Não. Ódio não faz parte do meu vocabulário. Eu quero justiça. Esse mau policial não deveria estar trabalhando. O dever dele é preservar a vida. E o policial disse que a vida dele estava em risco pra matar o meu filho. Nós precisamos que esses maus policiais sejam banidos da polícia, e que se coloquem pessoas capacitadas pra cuidar da população. Mas eu não tenho ódio de ninguém. Ele [o policial suspeito] veio na minha porta. Eu conheço ele, a minha família conhece a família dele. Ele chegou na minha porta pra dizer que não foi ele quem matou meu filho. Mas é o nome dele que consta. Eu falei: “Não tema. Se não foi você, vai pagar quem fez”. Mas pagar na Justiça. Quando acontece uma coisa dessas na sua casa, você não confia mais em ninguém. Você é agredido moralmente desde que põe o pé no hospital pra ver o corpo do seu filho. Você é humilhado, porque eles querem dizer que seu filho é bandido. Mas nunca foi e nunca tirou a vida de ninguém.

O seu caso já tem um tempo, mas vai completar data redonda agora. Tem algum dia, que seja Natal, aniversário ou qualquer outro que seja mais difícil suportar?
É difícil todo dia. Só que eu tenho boas lembranças do meu filho. E se é pra dizer que uma pessoa que vai cedo embora é porque era boa, então esse era o meu filho.

Chegou a sentir alguma coisa estranha no dia que seu filho morreu?
Dois dias antes, justamente, eu tive um sonho. Ele estava no lugar onde ele ia morar, um policial tinha parado e ele e estava com uma arma apontada pra cabeça dele. Eu falava “não, por favor, não”. Aí a polícia veio e pôs a arma na minha cabeça. Eu comecei a rezar e falei que bom que vai ser eu. Só que quando avisaram na minha porta que ele tinha sofrido um acidente, eu achei que fosse um acidente de moto. Mas era tiro, realmente.

Chegou a contar pra ele desse sonho?
Não. Não contei pra ele porque eu não imaginava. Mas ele teve também, antes de morrer, um sonho em que ele estava entrando nesse beco onde ia morar. Ele entrava no beco e via um corpo no chão. Quando ele viu o corpo no chão, ele ficou assustado. E meu pai, que já é falecido, chegava pra ele e falava “vem que eu te escondo”. Ele contou isso pra um amigo do estúdio, e esse amigo me contou. O amigo disse que ele falava: “Que sonho estranho. Será que eu vou morrer?".

Alguma coisa mais que queira falar?
Eu fiz um ano de Direito pra tentar mexer com o caso dele, mas comecei a ficar doente e não pude mais pagar a faculdade. Eu já estava pensando em escrever sobre a história dele antes de sair esse livro. Esse livro, aliás, é um grito de alívio. Mas tem uma coisa que eu acho interessante que é: dia do enterro, meu outro filho que contou, tinha o balcão com o jornal contando o caso do meu filho. Com a foto dele, anunciando que ele tinha morrido. O cara do cemitério falava: “Tá certo, atirou contra a polícia tem que morrer mesmo”. Meu filho ficou tranquilo. Quando o rapaz veio atender, meu filho falou: “Eu vim tratar do enterro dele”, apontando pra foto do jornal. Ele não falou nada. Passaram-se nove meses, e esse meu filho calhou de estar no estúdio [de tatuagem]. Parou uma moto na frente e chamaram ele. O moço falou: “Eu estava te procurando mesmo. Desde aquele dia eu passo aqui direto pra te pedir desculpas. Porque eu não sei se numa situação inversa eu teria a calma e tranquilidade que você teve comigo. Me perdoe”. Porque foi provado que meu filho não era bandido.

Débora Maria da Silva, 53, moradora da Baixada Santista. Seu filho Edson Rogério Silva dos Santos, gari havia sete anos, foi morto aos 29 anos de idade.

VICE: Em resumo, como foi a história do seu filho?
Débora: Meu filho morreu no dia 15, o dia que parou São Paulo. E o caso do meu filho foi um caso muito emblemático. Na manhã eu recebi o telefonema de um policial da família, dizendo que era pra avisar as pessoas de bem que não eram pra elas estarem nas ruas. Que quem estivesse na rua era inimigo da polícia. Enfim, quando foi a noite, mataram meu filho. De lá pra cá a gente pediu as imagens da câmera de monitoramento do posto de gasolina onde ele foi abordado, fizemos várias intervenções. Pedi os cinco eixos principais da investigação, que são: quem eram os policiais que estavam trabalhando, quais eram as viaturas, que tipo de armamento eles estavam usando, quantos projéteis foram deflagrados na noite e qual o percurso. E a gente viu uma contradição de quem conduz o B.O. pra delegacia, que foi o policial. Ele faz uma ocorrência dizendo que foi chamado via Copom pra atender uma ocorrência de homicídio. Depois quando foi chamado na delegacia pra depor e falaram que a mãe estava acusando policiais militares, ele mudou a versão de um boletim de ocorrência que ele fez. Dessa vez falou que foi chamado pra atender uma ocorrência de acidente de moto. O frentista do posto de gasolina narra tudo, falando que foram duas viaturas, falando que meu filho chegou no posto empurrando a moto por ter acabado a gasolina… Ele conta passo a passo. Eu pedi as imagens do posto pra saber se quem abordou meu filho foi o mesmo que registrou a ocorrência, que é a suspeita. Eles apagaram a fita do posto de gasolina. Aí o que que aconteceu: várias contradições recheadas no inquérito. Meu filho foi enterrado com um projétil na cervical. Um projétil é uma peça fundamental num crime de execução sumária. Pra você ver como as investigações são falidas. O exame pericial é um exame fascista. Porque a própria PM participa. Ela interfere nos exames cadavéricos, no relato, no diagnóstico. Enfim, eles pegaram e enterraram meu filho com um projétil. Essa foi uma das pautas que eu grifei pra pedir o projeto de federalização das investigações.

Você odeia a polícia?
Olha… O que eu sinto por eles não é pena. O que eu sinto é que é uma guerra de pobre com pobre pela corrupção. Eles reclamam de serem mal aparelhados e mal remunerados. Pode dar um caminhão de dinheiro, mas a cultura da corrupção ninguém tira mais deles. E não tem como o governo controlar, porque o governo tá com o rabo preso com a instituição policial. Senão eles tomavam as medidas cabíveis. O governo obrigou esses homens a irem matar os próprios vizinhos, os próprios amigos periféricos – que muitos desses policiais moram nas periferias. Dali pra cá o governo perdeu o controle. Então não dá pra ter raiva deles. Porque eles também são vítimas desse sistema corrupto e autoritário. A dor da mãe deles é a mesma dor das Mães de Maio. A gente não pode ter ódio, porque senão a gente não evolui. No começo eu tinha um ódio muito grande, mas como a gente vê que é um sistema, a gente tem que derrubar o sistema. E quando a gente derrubar o sistema você vai ver que a gente tem uma polícia comunitária, uma polícia preventiva… Uma polícia unificada. A gente quer uma polícia preventiva, não uma polícia corrupta. A gente pode mudar esse sistema. Mas jamais eu tenho raiva de quem matou meu filho. Porque eu sei quem foi, mas nunca aponto o dedo na cara de quem foi. Porque ele sofre mais do que meu filho que já foi. Essa cultura de violência, não adianta você ter isso.

Dizem que o instinto materno é uma coisa inexplicável. A senhora chegou a sentir alguma coisa estranha no dia em que mataram seu filho?
Uhhh! Sim. Foi uma das maiores visões que tive. Lá pelas 13h eu comecei a sentir cheiro de… Pensa assim: teve uma matança, o chão tá quente, o sangue cai e você começa a sentir um cheiro de salmoura. Aquele sangue. E aquele sangue me sufocava. Comecei a sentir cheiro de carne com sangue. Às 22h ele chegou. E eu achava que era pro filho da minha vizinha, que era envolvido. Só que eu sentia cheiro de carne com sangue. Meu filho estava em casa dormindo, depois de trabalhar. E ai quando ele chegou pra pegar um remédio, que tinha deixado na minha casa no dia das mães. Quando ele foi embora acabou a gasolina, e nisso ele parou no posto. E foi assassinado. Quando eu senti o cheiro do sangue meu filho estava dormindo. No dia seguinte eu escutei a morte do meu filho na rádio polícia. Você quer dor pior do que essa? O dom de uma mãe é sentir a morte do filho.