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Fotos

Dr. Stanley Burns, o Homem por Trás da Série “The Knick”

Conheça o oftalmologista de Nova York que possui o maior acervo de fotos médicas históricas.

Arquivo Burns (todas as fotos cortesia de Arquivo Burns). 

Stanley Burns tem a maior coleção de fotos médicas de valor histórico. Esse oftalmologista e historiador nova-iorquino reuniu mais de 1 milhão de imagens, que, agora, vêm sendo usadas na primeira temporada da série do Cinemax/HBO The Knick. Dirigido por Steven Soderbergh e estrelada por Clive Owen, o programa (cujo último episódio da temporada foi ao ar no dia 17 de outubro, nos EUA) mostra o hospital ficcional Knickerbocker na Nova York de 1900 – ou seja, nos primórdios da medicina moderna. Usando sua vasta coleção e seu conhecimento especializado no campo (ele já publicou 44 livros e mais de mil artigos sobre fotografia médica antiga), Burns forneceu muita informação inspiradora para a trama, garantindo a precisão histórica da série.

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Dr. Burns e Clive Owen no set de The Knick. Foto por Mary Cybulski/Cinemax. 

Andar pelo Arquivo Burns, em sua casa, na East 38th Street, em Manhattan, seria como explorar a biblioteca do Congresso se ela fosse mantida por um cientista louco. Fotos emolduradas cobrem quase cada centímetro das paredes, incontáveis livros se acumulam nas prateleiras, escadas e, às vezes, até no chão e muitas das salas parecem ter sido perfeitamente preservadas por cem anos.

“Olha”, ele afirmou enquanto me levava a uma sala no terceiro andar decorada com móveis antigos imaculados, “é como se você estivesse entrando no The Knick”.

VICE: Por que você começou a juntar essa coleção?
Stanley Burns: Bom, sempre fui um historiador, sempre me interessei por história. E sou historiador há mais de 50 anos. No meio dos anos 70, um amigo me apresentou os daguerreótipos médicos; quando chequei a história, vi que a escrita não combinava com a história visual. Então, percebi que tinha de coletar fotografias, porque a evidência de uma foto original é irrefutável – verdade irrefutável. Especialmente em fotografia médica; quando você tem uma imagem cirúrgica, vai haver uma legenda dizendo que o médico está fazendo tal e tal operação, mas isso não descreve os sapatos, a camisa, o que há no chão, os tipos de baldes, o que eles estão jogando nos baldes, nada disso. Uma fotografia dá uma extensão de informação que você não tem num registro escrito. Dizem que uma foto vale mil palavras. Mas em cada centímetro de uma fotografia há mil palavras.

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Daguerreótipo de 1845 do livro em produção Stiffs, Skulls & Skeletons

Como você mantém o controle de todas as suas fotografias?
Tenho meu próprio sistema na minha cabeça. A ideia é que sei onde tudo está e posso colocar minhas mãos nisso. Outra coisa que você precisa saber é que não preciso dormir. Quatro horas por dia é tudo de que preciso, a não ser que eu tenha um grande tema – aí preciso de muito pouco sono. E eu sempre tive dois empregos: trabalho oito horas como médico e oito horas como escritor.

E ainda sobram quatro horas.
E eu uso isso para pensar no que vou escrever no dia seguinte. Tenho problemas para dormir em épocas como essa, porque está tudo na minha cabeça e eu quero tirar.

Uma transfusão de sangue braço a braço. 

Como você conseguiu comprar tantas fotografias?
Eu estava interessado no fato de que isso estava disponível. As pessoas descrevem minha coleção como se fosse 1902 e eu decidisse pegar todo o meu dinheiro e comprar cada Picasso que eu conseguisse. Em três anos, ela foi reconhecida pela Time como a mais importante coleção histórica emergente. Quando percebi que podia comprar tudo, foi isso que fiz, porque isso não era algo apreciado na época. O custo foi viável. Escrevi 44 livros, e, enquanto cada livro era escrito, eu não podia mais comprar as fotografias sobre as quais escrevi. Elas ficam muito caras de repente. E eu não coleciono arte, música ou esportes.

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Por que não?
Porque todo mundo tem isso. Todo mundo coleciona essas coisas, geralmente como um investimento ou algo para mostrar às pessoas num museu. Minha história da fotografia é a história da fotografia usada pelas pessoas e profissionais.

Universitários afro-americanos, por volta de 1895. 

Então,é como uma história da fotografia popular.
Sim! Em outras palavras, como usamos isso em combate, nas notícias, como usamos isso para nos registrar. Eu nunca tinha mencionado isso antes. Mas essa é minha história da fotografia: fotografia definida pelas pessoas que a usavam. Tipo, como os afro-americanos usam isso? Minha coleção de fotografias de afro-americanos é das classes média e alta do século 19, sobre a qual você não ouve falar. Porque quando as pessoas escrevem sobre a história dos negros, eles querem o herói ou o oprimido. Foi assim que chegamos ao [personagem do The Knick] Algernon. Eles vieram aqui, e lá estava isso.

Um cirurgião negro demonstra patologia para outros médicos, Paris, por volta de 1905. 

Quando você vê isso, você tem o seu programa. Você sabe que é verdade. Sabe, sem essa fotografia, eu podia te contar o que aconteceu, mas você não ia acreditar em mim. Eles olham com admiração para esse médico negro, um bando de médicos brancos. É por isso que coleciono fotografias e estou muito feliz agora, porque posso ver essas fotos ganharem vida na tela.

Seu interesse em fotografia médica veio por ser médico ou por apreciar fotografia?
Bom, foi mesmo da medicina. É poder contar a história da medicina, porque, no século 20, os médicos nos fizeram uma promessa e cumpriram, e essa promessa era uma vida longa e saudável. Em 1900, a expectativa de vida era de 47 anos. As pessoas esperavam morrer jovens, elas viviam com a morte; era muito comum. Elas não esperavam passar por uma operação e sobreviver. E, até onde eu sei, a parte ruim disso é que a morte está tão distante das nossas vidas agora que não esperamos que um cara de 96 anos morra: você quer fazer um transplante de coração nele.

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Ambulância do hospital Bellevue com funcionários, por volta de 1895. 

Qual o valor de ter a morte mais em nossa consciência na sua opinião?
Porque o que você espera que seja sua vida é diferente – quer dizer, essa é realmente a coisa mais importante. O que os médicos fizeram com todas essas descobertas foi afastar a morte. Por exemplo, eu vivo nesta casa, e uma das salas, eu sempre explico, se chama parlor. Bom, em 1910, ele tiraram o termo parlor do Ladies Home Journal. Eles não aceitariam uma foto de uma casa que dissesse “parlor”. O parlor tinha de ser chamado living room [sala de estar] – o que era o exato oposto de parlor, que era a sala da morte – para se livrar da ideia de morte. E, então, parlor se tornou funeral parlor [funerária]. Porque muitos funerais eram feitos em casa, no parlor, a sala principal da casa. Na época em que o programa se passa, a morte era uma parte ativa da vida. Você não esperava viver muito e nem podia esperar morrer rapidamente se estava morrendo.

Enfermaria, hospital de Nova York, por volta de 1905. 

O que te atrai nessa época da história da medicina?
Isso me atrai, porque foi a primeira vez em que as pessoas puderam ir a um médico e saber que seriam ajudadas e curadas. Antes de 1890, boa sorte. Pense no presidente Garfield! Vamos falar sobre isso. Ele foi baleado em 1881. Ele foi baleado aqui, a bala se alojou em sua espinha, perto do músculo. Como ele morreu? O médico colocou as mãos sujas nele, procurando pela bala, e abriu sua ferida. Era um corte grande que simplesmente infeccionou. Ele morreu uma morte horrível e dolorosa. Era a filosofia da época, a de que você tinha de tirar a bala, mas eles deviam tê-lo deixado em paz. Isso foi em 1881, ele era o presidente dos Estados Unidos e os melhores médicos vieram colocar as mãos nele. Dez anos depois, ele teria uma chance de ter sobrevivido.

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Cirurgia cerebral, por volta de 1920. 

Então,o que mudou durante o período em a série se passa?
O que estamos vendo no programa são todas as grandes invenções que estavam ocorrendo. Vamos ver a diferença entre cirurgia antisséptica e cirurgia séptica, vamos ver que uma pessoa pode carregar uma doença e te matar, mas não ser afetada por ela. Era um conceito que as pessoas não entendiam antes dessa época. Esse foi o grande período na história da medicina, e [William Stewart] Halsted, em quem [o personagem de Owen] Thackery é baseado, plantou os princípios da cirurgia moderna que continuam sendo seguidos hoje.

William Halsted na inauguração do anfiteatro de operações do Johns Hopkins, 1904. 

Você estava bastante envolvido com as especificidades da série?
Sim! Clive fez aulas particulares, mas todos os outros enfermeiros e médicos vieram aqui e eu os ensinei como operar. E, quando terminamos, ele sentiram que provavelmente essa foi a coisa mais valiosa que eles tiraram do programa, porque, em qualquer emergência, eles vão saber como suturar ou como amarrar. A parte legal é que os atores foram melhores que estudantes de medicina. Eles levaram muito a sério aprender a lidar com pinças e coisas assim. E todos esses princípios ainda se aplicam hoje. Todo médico faz isso do mesmo jeito, sem usar instrumentos avançados.

Dr. Burns e Clive Owen no set de The Knick. Foto por Mary Cybulski/Cinemax. 

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Qual foi seu envolvimento no set de filmagem?
Eu ia ao set de três a cinco vezes por semana. Vou te dar um exemplo. É interessante, porque no primeiro dia eu causei um pequeno tumulto. Íamos fazer a primeira operação – você viu isso no primeiro episódio –, eu entrei lá e eles tinham colocado uns 100 médicos no público; eu disse: “Isso está errado, não podemos filmar assim”. Eu disse ao Steven [Soderbergh]: “Se o Martin Scorsese te convidasse para assistir-lhe filmando, ele ia te colocar na fileira de cima? Não. Ele ia te colocar perto perto dele, na fileira de baixo”. Eles tinham colocado todos os médicos bonitos na frente e os velhos atrás, mas a realidade é que os médicos mais velhos estavam sempre mais perto dos cirurgiões. Então, eles pararam a cena e mudaram tudo. Porque, do outro jeito, as pessoas iam ligar e dizer: “Ei, isso não está certo!” E, acredite em mim, ficou certo; trabalhamos muito, muito duro para fazer o programa o mais preciso possível.

Cena cirúrgica: Dr. William Rodman operando, Filadélfia, 1902. 

O que você gostaria que a série comunicasse ao público?
Meu objetivo de vida é popularizar a história da medicina e mostrar os grandes avanços que ela tem feito, e conscientizar o público sobre como era naquela época, porque não temos memória da dor. Se as mulheres tivessem memória da dor, elas não teriam outro filho. Temos sempre de esquecer as coisas ruins. Você perguntou como consegui minhas fotos. As pessoas queriam se livrar das fotos de tratamentos ruins, resultados ruins, pacientes ruins. Quando você percebe que está fazendo algo errado, quantas fotos você quer por perto? É assim que a medicina é, e é assim que o mundo é. Então, com The Knick, tentei mostrar algumas das coisas incríveis que estavam acontecendo naquela época, mostrando ao mesmo tempo algumas coisas que deram errado. O principal é que os médicos, e as pessoas em geral, 100 anos atrás eram tão inteligentes, criativos e inovadores [quanto hoje], mas trabalhavam com um conhecimento e uma tecnologia inferiores. Então, eles fizeram o que podiam para ajudar e curar. Olhamos para trás, isso e aquilo estava errado; garanto que, daqui a 100 anos, eles vão olhar para trás e dizer a mesma coisa sobre nós. Não tenho dúvida. Mas isso é algo que quero que o programa comunique.

Acho que podemos dizer que eles não teriam conseguido sem você.
Parece que sim. O Steven sempre diz isso. Eles teriam conseguido, só não seria tão espetacular quanto é.

Giancarlo T. Roma é um escritor e músico que vive no Brooklyn. Siga-o no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor